carta maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21752&utm_source=emailmanager&utm_medium=email&utm_campaign=Boletim_Carta_Maior__18032013
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Ditadura na Amazônia – memória de uma mulher da frente de batalha
A professora de Ciência Política da Universidade Federal do Pará Hecilda Veiga foi presa e torturada nos quartéis do regime quando estava grávida de cinco meses. Ela havia ajudado a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos e militado no PCdoB e na Ação Popular. “Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos”, admite. Agora, ela conta sua história.
Lilian Campelo e Rogério Almeida*
Belém – O estafe político ideológico estadunidense exerceu papel decisivo no século passado no processo de instalação de estados de exceção em países da América Latina. No continente a Argentina passa a limpo o período ditatorial, e puniu e continua a julgar os responsáveis pela violação de direitos humanos.
No dia 12 de março deste ano condenou à prisão perpétua Reynaldo Bignone, o último presidente da ditadura militar (1976-1983). O ex-presidente foi condenado por crimes contra a humanidade cometidos no centro clandestino Campo de Mayo. Junto com Bignone irão cumprir a mesma pena os ex-militares Omar Riveros, Luis Sadi, Eduardo Oscar Corrado e Carlos Tomás Macedra.
O Chile tenta fazer o mesmo caminho, mas tem enfrentado resistência. O Brasil instalou em maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com vistas a apurar no prazo de dois anos as violações dos direitos humanos no período da ditadura civil militar (1964-1985). E, como no Chile, há situações de tensões, a exemplo do atentado a bomba ocorrido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do estado do Rio de Janeiro, no dia 07.
A Guerrilha do Araguaia, ocorrida no fim dos anos 1960 e nos anos iniciais de 1970, no sudeste do Pará e norte do Tocantins (antigo território de Goiás), com abrangência até o oeste do Maranhão é o caso mais significativo na Amazônia. O episódio foi protagonizado por militantes do PC do B. Um Grupo de Trabalho (GT) foi constituído dentro da CNV para investigar o caso. Cláudio Fonteles, José Carlos Dias e a psicanalista Maria Rita Khel são os responsáveis pelas investigações, enquanto Pedro Pontual e Vivien Ishaq os encarregados pela pesquisa.
Entre os militares o major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) desponta como o de maior visibilidade na repressão aos guerrilheiros e simpatizantes locais ao movimento e religiosos alinhados à Teologia da Libertação da região, entre eles o padre Roberto de Valicourt. Helenira Rezende de Souza Nazareth, Luisa Augusta Garlippe, Maria Lucia Petit da Silva e Suely Yuniko Kanayama, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha foram algumas das mulheres do PC do B tombaram em combate com o Exército.
Amazônia integrada
O contexto político, econômico e social é conhecido como integração da Amazônia ao resto do país. Naquele momento, em 1971, o decreto de nº 1.164 federalizou 100 km das terras consideradas devolutas das rodovias federais em construção e as projetadas. A militarização da Amazônia engendrou um mundo de quartéis na região.
Polos de produção baseados em madeira, pecuária e mineração regiam o cenário econômico, que buscou incrementar a instalação de empresas do Centro Sul do país a partir de uma política de incentivos fiscais, o braço civil do regime, sem falar na grande mídia e setores da Igreja Católica, em particular Dom Alberto Ramos, arcebispo de Belém da época, e responsável por artigos contra os comunistas no jornal ‘Voz de Nazaré’. O acreano tenente coronel Jarbas Passarinho, ex-governador do Estado e ex- ministro é considerado um personagem central da condução da ditadura no estado, e o responsável pela deposição do governador Aurélio do Carmo, que será homenageado numa cerimônia na Assembleia Legislativa no dia 18. Ironia? Passarinho é conterrâneo do ambientalista Chico Mendes. Ambos nasceram na mesma cidade, Xapuri.
CNV no Pará
No Pará as atividades da CNV iniciaram em agosto do ano passado com a realização de uma audiência pública em Belém, e outra na região do Araguaia. Em novembro do ano passado e no começo deste ocorreram visitas de campo à região no sudeste do Pará para ouvir camponeses e indígenas Suruí. Na ocasião foi criada a Associação de Torturados na Guerrilha do Araguaia (Atga). Paulo Fontelles Junior, ex-vereador pelo PC do B em Belém é um dos membros da CNV no estado. O ativista é filho do ex-deputado estadual e advogado Paulo Fontelles e da professora Hecilda Veiga. Ambos militaram em defesa dos direitos humanos.
Hecilda Veiga – uma das mulheres no fronte
Ela tem pouco mais de um metro e meio. Corpo franzino e cabelos ralos. O físico frágil não a impediu de integrar um grupo de ativistas em defesa dos direitos humanos em Belém, capital do Pará, no período conhecido como de exceção na história política brasileira (1964-1985). O raciocínio articulado que recompõe com entusiasmo fatos históricos, ganha forma a partir de uma voz suave.
Ao lado de outras mulheres como Marga Rothe, Eneida Guimarães, Rosaly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, Isabel Cunha, a professora do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hecilda Mary Ferreira Veiga ajudou a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), e militou no PC do B e na Ação Popular (AP). Num instante em que o PCdoB e a AP rivalizavam a hegemonia da esquerda com o PCB.
Além de Hecilda e seus pares mais próximos, é conhecida na história do Pará a atuação do ex-deputado e escritor Benedito Monteiro, o professor e escritor Joao de Jesus Paes Loureiro, Cláudio Barradas, Ronaldo e Ruy Barata e Raimundo Jinkings contra o regime. A pessoa que se depara com a educadora nos corredores da UFPA não imagina as agruras que a mesma passou nos cárceres durante a ditadura militar.
“Eu acho que meu coração ainda é de estudante, como diz a música de Milton Nascimento.” Assim a professora começa a narrar a experiência que viveu durante o período da ditatura civil militar. Antes, tira da bolsa um lenço branco decorado nas bordas com pequenas flores coloridas. Põe em seu colo, lugar mais acessível às mãos, que livres poderá usá-lo caso precise.
O narrar da história se faz a partir da construção de fatos. É um desenrolar de lembranças de homens, mulheres e crianças que fazem parte desse enredo, mas o que se observa é que o protagonista da memória oficial, ao longo de muito tempo, teve um narrador, a figura masculina.
Elas não são de Atenas
“Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. A música de Chico Buarque, em tom irônico, demonstra como a sociedade define o papel da mulher. Ao longo dos tempos, elas foram relegadas ao anonimato e ao esquecimento, o que se observa em um dos episódios mais recentes e brutais da história brasileira.
Mulheres que transgrediram a ordem e o progresso ditado pelo governo foram torturadas. Por serem mulheres, as torturas tinham o objetivo de degradar a alma feminina. O corpo nu ficou à mercê do torturador, as humilhações, a violência psicológica e sexual não pouparam mães, freiras, jovens, nem mesmo grávidas.
Sim, grávidas. Foi o caso da paraense Hecilda Veiga. “Quando fui presa, minha barriguinha de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à Delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer.”
O testemunho está no livro “Luta, substantivo feminino”. A obra faz parte do relatório “Direito à memória e à verdade”, realizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres. Nele, há histórias de vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditatura militar e o testemunho de 27 sobreviventes que narram com coragem os horrores que sofreram nos porões da ditatura.
Hecilda Veiga lutou contra o regime juntamente com seu esposo Paulo Fontelles, assassinado em 11 de junho de 1987, a mando da União Democrática Ruralista (UDR). Paulo, nessa época, advogava as causas camponesas e estava à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no sul do Pará.
Marido e mulher eram militantes na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O casal foi para Brasília, onde ficaria mais próximo dos acontecimentos políticos. Ela estudava Ciências Sociais, ele Direito na Universidade de Brasília (Unb). Mas, em outubro de 1971, foram presos. Neste ano, começou a história de coragem e luta pela dignidade humana não só de Hecilda, mas de muitas Marias, Anas, Lúcias, Teresas...
Naquele momento havia um interesse e curiosidade em tudo que acontecia. Havia uma atmosfera contra as condições coloniais em vários cantos do mundo, e pela ampliação dos direitos civis. Havia substância. Preocupava-se com um caminho para uma revolução brasileira. Em Brasília causava estranheza para o pessoal que a gente da Amazônia conhecesse a última canção do Chico Buarque. Os debates eram candentes e acalorados. Tive dificuldades em voltar para a universidade a experiência do cárcere. As coisas que sofri e vi foram terríveis.
1971 – prisão em Brasília
“Fomos convidados pela direção do partido para ajudar a oxigenar a luta. Morávamos na própria universidade, num alojamento destinado a casais. Não tardou, eu e o Paulo assumimos a condição de lideranças para reavivar os centros acadêmicos livres. As medidas encaminhadas pelo professor Darci Ribeiro haviam sido refreadas, e parte do quadro de professores demitida, e outra seguiu para o exílio no exterior” rememora Veiga.
A professora pondera que em Belém ocorria uma gravitação de pessoas em torno da Faculdade de Ciências e Letras da UFPA, e que havia uma série de representações estudantis em Belém que agitavam a mobilização em oposição do regime. “A Escola Paes de Carvalho tinha tradição de pessoas articuladas, entre elas recordo da Zélia Amador, Cristóvão, Pipira (Medicina), Mauro Brasil, Ubiratan Barbosa. Promoveram ocupações de alguns prédios públicos aqui em Belém em protesto contra a violência da ditadura. Neste momento recuperamos o Centro popular de Cultura (CPC),” recorda.
Sobre a prisão e tortura, em relato publicizado na internet, a professora narra que:
“Fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.
Noutro momento ilustra que “Eles nos mantinham
acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à 'tortura cientifica', numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.”
“As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei, encerra Hecilda.”
Lenço branco
Contar o que foi 1968 faz parte da memória coletiva. Enfrentar o passado é o primeiro passo para que a sociedade entenda os fatos ocorridos e, assim, não permita que crimes contra a humanidade voltem a acontecer, argumenta Hecilda.
“Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos. Mas eu acho que é preciso que a gente conte tudo isso para que não se repita mais. Poxa, quantas vidas interrompidas! A vida de uma geração. Até hoje fico muito comovida quando ouço a música 'Coração de estudante': ‘Podaram seus momentos, desfiaram seus destinos’. A sensação que eu tenho até hoje é essa, de que eu estou correndo contra o tempo, por que eu tive a minha vida acadêmica interrompida. Eu concluí meu curso depois de 15 anos. E, apesar disso, eu ainda posso dizer ‘ah, eu sobrevivi’, mas quantos outros não sobreviveram?”
Hecilda Veiga hoje é professora de Ciência Política na UFPA, local em que, por coincidência ou não, iniciou a carreira de militante antes de ir a Brasília, em 1968. Como ela, muitas mulheres lutaram e buscaram um país mais justo para todos os brasileiros, especialmente para as mulheres.
Hoje, ela conta sua história. Outras tiveram destinos parecidos, como Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da “Casa da Morte”, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. E, ainda, outras tiveram suas vidas interrompidas durante um dos momentos mais obscuros da história brasileira, como a sindicalista rural Margarida Maria Alves, morta em 1983 na Paraíba por pistoleiros, a mando de fazendeiros da região.
O que tiramos de tudo isso? Que os direitos das mulheres no Brasil foram conquistados em meio à luta, à dor e resistência e, em muitos casos, sob julgo e morte. O que moveu essas mulheres? O espírito de transformação, da indignação ante a barbárie e a injustiça. E de todas essas histórias ficará o ensinamento da professora Hecilda: é preciso contar sempre, para que episódios como esses nunca mais se repitam. Ao final, a professora devolveu o lenço à bolsa. Não precisou usá-lo.
*Lilian Campelo é jornalista; Rogério Almeida é autor do livro Pororoca pequena – marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de Cá\2012 e anima o blog Furo. Entrevista: Lilian Campelo e Luena Barros (jornalistas) Dilermano Gadelha (estudante de jornalismo da UFPA).
No dia 12 de março deste ano condenou à prisão perpétua Reynaldo Bignone, o último presidente da ditadura militar (1976-1983). O ex-presidente foi condenado por crimes contra a humanidade cometidos no centro clandestino Campo de Mayo. Junto com Bignone irão cumprir a mesma pena os ex-militares Omar Riveros, Luis Sadi, Eduardo Oscar Corrado e Carlos Tomás Macedra.
O Chile tenta fazer o mesmo caminho, mas tem enfrentado resistência. O Brasil instalou em maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com vistas a apurar no prazo de dois anos as violações dos direitos humanos no período da ditadura civil militar (1964-1985). E, como no Chile, há situações de tensões, a exemplo do atentado a bomba ocorrido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do estado do Rio de Janeiro, no dia 07.
A Guerrilha do Araguaia, ocorrida no fim dos anos 1960 e nos anos iniciais de 1970, no sudeste do Pará e norte do Tocantins (antigo território de Goiás), com abrangência até o oeste do Maranhão é o caso mais significativo na Amazônia. O episódio foi protagonizado por militantes do PC do B. Um Grupo de Trabalho (GT) foi constituído dentro da CNV para investigar o caso. Cláudio Fonteles, José Carlos Dias e a psicanalista Maria Rita Khel são os responsáveis pelas investigações, enquanto Pedro Pontual e Vivien Ishaq os encarregados pela pesquisa.
Entre os militares o major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) desponta como o de maior visibilidade na repressão aos guerrilheiros e simpatizantes locais ao movimento e religiosos alinhados à Teologia da Libertação da região, entre eles o padre Roberto de Valicourt. Helenira Rezende de Souza Nazareth, Luisa Augusta Garlippe, Maria Lucia Petit da Silva e Suely Yuniko Kanayama, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha foram algumas das mulheres do PC do B tombaram em combate com o Exército.
Amazônia integrada
O contexto político, econômico e social é conhecido como integração da Amazônia ao resto do país. Naquele momento, em 1971, o decreto de nº 1.164 federalizou 100 km das terras consideradas devolutas das rodovias federais em construção e as projetadas. A militarização da Amazônia engendrou um mundo de quartéis na região.
Polos de produção baseados em madeira, pecuária e mineração regiam o cenário econômico, que buscou incrementar a instalação de empresas do Centro Sul do país a partir de uma política de incentivos fiscais, o braço civil do regime, sem falar na grande mídia e setores da Igreja Católica, em particular Dom Alberto Ramos, arcebispo de Belém da época, e responsável por artigos contra os comunistas no jornal ‘Voz de Nazaré’. O acreano tenente coronel Jarbas Passarinho, ex-governador do Estado e ex- ministro é considerado um personagem central da condução da ditadura no estado, e o responsável pela deposição do governador Aurélio do Carmo, que será homenageado numa cerimônia na Assembleia Legislativa no dia 18. Ironia? Passarinho é conterrâneo do ambientalista Chico Mendes. Ambos nasceram na mesma cidade, Xapuri.
CNV no Pará
No Pará as atividades da CNV iniciaram em agosto do ano passado com a realização de uma audiência pública em Belém, e outra na região do Araguaia. Em novembro do ano passado e no começo deste ocorreram visitas de campo à região no sudeste do Pará para ouvir camponeses e indígenas Suruí. Na ocasião foi criada a Associação de Torturados na Guerrilha do Araguaia (Atga). Paulo Fontelles Junior, ex-vereador pelo PC do B em Belém é um dos membros da CNV no estado. O ativista é filho do ex-deputado estadual e advogado Paulo Fontelles e da professora Hecilda Veiga. Ambos militaram em defesa dos direitos humanos.
Hecilda Veiga – uma das mulheres no fronte
Ela tem pouco mais de um metro e meio. Corpo franzino e cabelos ralos. O físico frágil não a impediu de integrar um grupo de ativistas em defesa dos direitos humanos em Belém, capital do Pará, no período conhecido como de exceção na história política brasileira (1964-1985). O raciocínio articulado que recompõe com entusiasmo fatos históricos, ganha forma a partir de uma voz suave.
Ao lado de outras mulheres como Marga Rothe, Eneida Guimarães, Rosaly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, Isabel Cunha, a professora do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hecilda Mary Ferreira Veiga ajudou a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), e militou no PC do B e na Ação Popular (AP). Num instante em que o PCdoB e a AP rivalizavam a hegemonia da esquerda com o PCB.
Além de Hecilda e seus pares mais próximos, é conhecida na história do Pará a atuação do ex-deputado e escritor Benedito Monteiro, o professor e escritor Joao de Jesus Paes Loureiro, Cláudio Barradas, Ronaldo e Ruy Barata e Raimundo Jinkings contra o regime. A pessoa que se depara com a educadora nos corredores da UFPA não imagina as agruras que a mesma passou nos cárceres durante a ditadura militar.
“Eu acho que meu coração ainda é de estudante, como diz a música de Milton Nascimento.” Assim a professora começa a narrar a experiência que viveu durante o período da ditatura civil militar. Antes, tira da bolsa um lenço branco decorado nas bordas com pequenas flores coloridas. Põe em seu colo, lugar mais acessível às mãos, que livres poderá usá-lo caso precise.
O narrar da história se faz a partir da construção de fatos. É um desenrolar de lembranças de homens, mulheres e crianças que fazem parte desse enredo, mas o que se observa é que o protagonista da memória oficial, ao longo de muito tempo, teve um narrador, a figura masculina.
Elas não são de Atenas
“Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. A música de Chico Buarque, em tom irônico, demonstra como a sociedade define o papel da mulher. Ao longo dos tempos, elas foram relegadas ao anonimato e ao esquecimento, o que se observa em um dos episódios mais recentes e brutais da história brasileira.
Mulheres que transgrediram a ordem e o progresso ditado pelo governo foram torturadas. Por serem mulheres, as torturas tinham o objetivo de degradar a alma feminina. O corpo nu ficou à mercê do torturador, as humilhações, a violência psicológica e sexual não pouparam mães, freiras, jovens, nem mesmo grávidas.
Sim, grávidas. Foi o caso da paraense Hecilda Veiga. “Quando fui presa, minha barriguinha de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à Delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer.”
O testemunho está no livro “Luta, substantivo feminino”. A obra faz parte do relatório “Direito à memória e à verdade”, realizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres. Nele, há histórias de vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditatura militar e o testemunho de 27 sobreviventes que narram com coragem os horrores que sofreram nos porões da ditatura.
Hecilda Veiga lutou contra o regime juntamente com seu esposo Paulo Fontelles, assassinado em 11 de junho de 1987, a mando da União Democrática Ruralista (UDR). Paulo, nessa época, advogava as causas camponesas e estava à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no sul do Pará.
Marido e mulher eram militantes na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O casal foi para Brasília, onde ficaria mais próximo dos acontecimentos políticos. Ela estudava Ciências Sociais, ele Direito na Universidade de Brasília (Unb). Mas, em outubro de 1971, foram presos. Neste ano, começou a história de coragem e luta pela dignidade humana não só de Hecilda, mas de muitas Marias, Anas, Lúcias, Teresas...
Naquele momento havia um interesse e curiosidade em tudo que acontecia. Havia uma atmosfera contra as condições coloniais em vários cantos do mundo, e pela ampliação dos direitos civis. Havia substância. Preocupava-se com um caminho para uma revolução brasileira. Em Brasília causava estranheza para o pessoal que a gente da Amazônia conhecesse a última canção do Chico Buarque. Os debates eram candentes e acalorados. Tive dificuldades em voltar para a universidade a experiência do cárcere. As coisas que sofri e vi foram terríveis.
1971 – prisão em Brasília
“Fomos convidados pela direção do partido para ajudar a oxigenar a luta. Morávamos na própria universidade, num alojamento destinado a casais. Não tardou, eu e o Paulo assumimos a condição de lideranças para reavivar os centros acadêmicos livres. As medidas encaminhadas pelo professor Darci Ribeiro haviam sido refreadas, e parte do quadro de professores demitida, e outra seguiu para o exílio no exterior” rememora Veiga.
A professora pondera que em Belém ocorria uma gravitação de pessoas em torno da Faculdade de Ciências e Letras da UFPA, e que havia uma série de representações estudantis em Belém que agitavam a mobilização em oposição do regime. “A Escola Paes de Carvalho tinha tradição de pessoas articuladas, entre elas recordo da Zélia Amador, Cristóvão, Pipira (Medicina), Mauro Brasil, Ubiratan Barbosa. Promoveram ocupações de alguns prédios públicos aqui em Belém em protesto contra a violência da ditadura. Neste momento recuperamos o Centro popular de Cultura (CPC),” recorda.
Sobre a prisão e tortura, em relato publicizado na internet, a professora narra que:
“Fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.
Noutro momento ilustra que “Eles nos mantinham
acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à 'tortura cientifica', numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.”
“As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei, encerra Hecilda.”
Lenço branco
Contar o que foi 1968 faz parte da memória coletiva. Enfrentar o passado é o primeiro passo para que a sociedade entenda os fatos ocorridos e, assim, não permita que crimes contra a humanidade voltem a acontecer, argumenta Hecilda.
“Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos. Mas eu acho que é preciso que a gente conte tudo isso para que não se repita mais. Poxa, quantas vidas interrompidas! A vida de uma geração. Até hoje fico muito comovida quando ouço a música 'Coração de estudante': ‘Podaram seus momentos, desfiaram seus destinos’. A sensação que eu tenho até hoje é essa, de que eu estou correndo contra o tempo, por que eu tive a minha vida acadêmica interrompida. Eu concluí meu curso depois de 15 anos. E, apesar disso, eu ainda posso dizer ‘ah, eu sobrevivi’, mas quantos outros não sobreviveram?”
Hecilda Veiga hoje é professora de Ciência Política na UFPA, local em que, por coincidência ou não, iniciou a carreira de militante antes de ir a Brasília, em 1968. Como ela, muitas mulheres lutaram e buscaram um país mais justo para todos os brasileiros, especialmente para as mulheres.
Hoje, ela conta sua história. Outras tiveram destinos parecidos, como Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da “Casa da Morte”, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. E, ainda, outras tiveram suas vidas interrompidas durante um dos momentos mais obscuros da história brasileira, como a sindicalista rural Margarida Maria Alves, morta em 1983 na Paraíba por pistoleiros, a mando de fazendeiros da região.
O que tiramos de tudo isso? Que os direitos das mulheres no Brasil foram conquistados em meio à luta, à dor e resistência e, em muitos casos, sob julgo e morte. O que moveu essas mulheres? O espírito de transformação, da indignação ante a barbárie e a injustiça. E de todas essas histórias ficará o ensinamento da professora Hecilda: é preciso contar sempre, para que episódios como esses nunca mais se repitam. Ao final, a professora devolveu o lenço à bolsa. Não precisou usá-lo.
*Lilian Campelo é jornalista; Rogério Almeida é autor do livro Pororoca pequena – marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de Cá\2012 e anima o blog Furo. Entrevista: Lilian Campelo e Luena Barros (jornalistas) Dilermano Gadelha (estudante de jornalismo da UFPA).
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