terça-feira, 26 de março de 2013

Baixas de conflito

blog do sakamoto
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15/05/2006 - 16:23

Baixas de conflito

O tráfico de drogas, que vem crescendo rapidamente desde a década de 80 nas grandes cidades brasileiras, é a maior causa de morte entre os jovens nas periferias. A batalha acontece longe dos olhos da classe média e da mídia, que só eventualmente dão atenção ao problema
texto e fotos: Leonardo Sakamoto | Categoria(s): Reportagens
Arquivo Repórter Brasil – Matéria publicada em novembro de 2005
"Primeiro, foi meu irmão mais velho. Tinha uns 16 anos. Ele estava passeando com um amigo – que era irmão de um cara com envolvimento no tráfico – quando foram parados por quatro "pés-de-pato" [justiceiros]. Disseram que tinham um assunto para tratar com o amigo do meu irmão e que ele podia ir embora. Mas ele ficou, só queria ir se o amigo fosse também. Então, foram levados para o alto de um morro. Meu irmão tomou uns oito tiros, no peito, na cabeça. O outro, fingiu-se de morto e sobreviveu. Com meu segundo irmão, foi diferente. Ele tinha 19 anos, era do tráfico, tinha homicídios nas costas. Amanhã, faz um ano e mês… Contou para a menina que ele estava ficando o lugar aonde ia se esconder, pois a polícia estava fazendo uma varredura na favela. Mas ela traiu meu irmão. A polícia foi direto lá. Ele se entregou, mas a polícia não quis saber. Eu não sei te informar bem a história, mas foi algo forjado pela polícia mesmo. Atiraram pelas costas, argumentando que tinha reagido, depois colocaram dentro do camburão e rodaram. Bateram nele. Quando chegou no hospital já estava praticamente morto."
De tempos em tempos, a violência causada pelo tráfico de drogas retorna com força ao noticiário, normalmente no momento em que ela desce o morro ou foge da periferia das grandes cidades. Como aconteceu em meados de 2005, quando os confrontos entre policiais e traficantes na favela da Rocinha, no município do Rio de Janeiro, bloquearam importantes vias de circulação. Longe dos olhos da classe média, porém, essa batalha urbana não pára de produzir seus mortos. Anônimos, como os dois irmãos de Cláudio*, sobrevivente de uma favela de São Paulo.
 
Desde 1996, a Caminhada pela Vida e pela Paz reúne milhares de moradores da Zona Sul de São Paulo, que protestam contra a violência
Drogas matam. Mas os óbitos por overdose ou em decorrência de crimes cometidos sob a influência de entorpecentes ilegais são a minoria dos casos. Registros policiais mostram que há mais homicídios relacionados ao consumo excessivo de álcool – que é uma droga permitida – do que a qualquer outra. A forma como o tráfico se organizou é a principal razão dessa guerra, cujas baixas normalmente são homens, jovens, pobres, moradores de comunidades carentes, envolvidos direta ou indiretamente nesse contexto. Em outras palavras, na maioria das vezes, matam-se mutuamente. Não são os únicos envolvidos nesse sistema, mas compõe a parte visível e descartável.
Infelizmente, falta consenso sobre o número de mortos nesse conflito. Há diferentes pesquisas que atribuem ao tráfico de 12% a mais de 50% do total de assassinatos de cidades como o Rio e São Paulo, dependendo da metodologia adotada. Mas todos os estudos são unânimes em afirmar que o problema é grave e está crescendo principalmente entre os mais jovens.
Algumas estatísticas relativas à 2004 ajudam a ver as conseqüências disso. Os homicídios de pessoas entre 15 e 24 anos representaram quase 35% do total no município de São Paulo ao mesmo tempo em que 93% dos assassinatos foram do sexo masculino, de acordo com dados da prefeitura. Em 2004, no Estado do Rio de Janeiro, menores de idade eram 60% do total de pessoas presas por envolvimento em drogas e 18% por envolvimento com armas.
Outro dado vem de Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), sobre o bairro da Cidade de Deus. O lugar tornou-se conhecido mundialmente após o filme homônimo de Fernando Meirelles, no qual a própria favela é a protagonista da história. Lá, em torno de 380 pessoas – das quais 77 menores de idade – estavam envolvidas nesse tipo de crime em 2001 (o que representava menos de 1% da população do bairro) . Em um período de 13 anos, 722 jovens dessa comunidade morreram na guerra do tráfico, ou seja, a quase substituição completa e por duas vezes de todos os traficantes.
"Não é uma guerra no sentido formal, mas tem níveis de guerra", explica Marianna Olinger, pesquisadora do projeto COAV (Crianças e Jovens em Violência Armada Organizada), ao analisar a situação carioca. Facções como o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e o Amigos dos Amigos são grupos criminosos e não têm objetivos políticos ou anseios de tomar o governo, muito menos criar um "Estado paralelo". Pelo contrário, eles se valem da falta de uma presença do Estado e criam um "poder paralelo" em um determinado território para proteger o seu negócio.
Não é o consumo de drogas pelos envolvidos que levam a matar os rivais e sim uma questão muito mais racional: o comércio. No capitalismo, toda a expansão de mercado é conflituosa. Quando se abre uma loja em um bairro, os que lá já estavam estabelecidos podem se sentir prejudicados. Ainda mais quando os forasteiros trazem produtos melhores e a preços mais baixos. Se a concorrência é agressiva e chega a tal ponto que a convivência pacífica torna-se insustentável, pode-se apelar à Justiça, que decidirá quem tem razão na disputa. Mas o que fazer quando se vive em um sistema ilegal, condenado pela própria Justiça? A solução é ter o maior poder bélico possível para fazer valer o seu ponto de vista sobre o demais, sobre a polícia, sobre os moradores de determinada comunidade.
É necessário controlar-se – por bem ou por mal – um território. "No comércio, nenhum atacadista vai vender para alguém que não tem como pagar. Nesse sentido, uma das garantias que o traficante pode dar é ter um território consolidado, seguro para estocar a mercadoria e vender à sua freguesia. Teoricamente, quanto mais território um grupo possui, mais bocas [pontos de venda] ele terá e, conseqüentemente, mais freguesia e poder", explica Thiago Rodrigues, pesquisador da PUC-SP e coordenador do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina.
Favela de Paraisópolis, encravada no coração do Morumbi: desigualdade
Formas da violência
Um marco para a escalada da violência ligada ao tráfico de drogas no Brasil é a chegada da cocaína em quantidade e a preço baixo da Bolívia, Colômbia e Peru na década de 80. Antes disso, o comércio da maconha era bem mais pacífico, sem grandes estruturas de distribuição ou de controle territorial. Assaltantes de banco e outros criminosos do Comando Vermelho – primeira grande facção criminosa do Rio de Janeiro nascida nas celas do presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande – começaram a se estruturar. Quadrilhas proprietárias de pontos de venda se uniram nessa espécie de "federação", para defender seus interesses e garantir a segurança. O negócio encontrou um grande público consumidor, prosperou e cresceu.
Vale aqui uma ressalva importante. Não é exatamente a pobreza que gera a violência do tráfico. Este se beneficia de um ambiente em que a população foi esquecida pelo governo e pela sociedade, no qual os serviços públicos são precários, o acesso à Justiça é difícil e as forças de segurança agem muitas vezes como aqueles a quem deveriam combater.
Em um local onde a realidade está em construção, é mais fácil impôr as próprias regras. De acordo com Guaracy Mingardi, um dos diretores do Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), "o tráfico para ser violento depende da desorganização local e da ausência do Estado". Dá como exemplo de região com tráfico e com índices mais baixos de violência a "Cracolândia", na região central de São Paulo.
Os bairros que conseguiram manter organizações sociais foram os menos afetados. "Líderes comunitários não podem impedir a venda da droga, mas podem impor limites, como fazer com que um traficante não fique na porta de um morador vendendo droga sem que o morador permita", explica Alba Zaluar.
As pesquisas do Laboratório de Economia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), coordenadas por Samuel Kilsztajn, identificaram três tipos de origem de assassinatos relacionados com o tráfico. A primeira é através do não cumprimento das regras internas da quadrilha. Por exemplo, desrespeitar uma decisão de superiores ou delatar algum companheiro. "Há casos em que um traficante deu um cheque sem fundo para pagar dívidas de drogas e foi jurado de morte. Sua mãe tentou quitar o débito, mas os outros traficantes disseram que queriam era a vida dele. Tornou-se uma questão de fazer valer o regimento interno", explica Kilsztajn. Na prática, é a pena de morte instituída. "Pra sobreviver, tem que usar a cabeça. Senão, vai para a cadeia ou para o inferno", afirma Ricardo*, que foi gerente de uma boca de drogas em uma favela de São Paulo.
A segunda forma é através da briga de gangues por território. Há alguns anos, uma quadrilha foi expulsa por outra mais forte do Jardim Ângela, bairro periférico do município de São Paulo, e se instalou em Parelheiros, a quilômetros dali. Para desocupar a nova área, foi matando os traficantes locais um a um. A regra é que o mais forte (e mais armado), prevalece. A terceira e última são os confrontos com a polícia, que podem acontecer tanto na tentativa de captura de traficantes e no desmantelamento da rede de tráfico quanto no acerto de contas pelo não pagamento de propinas a agentes corruptos. No caso "dona Vitória" – a senhora que filmou durante anos o tráfico de drogas da janela de seu apartamento no Rio de Janeiro – foi descoberta a participação de nove policiais.
"Já dei R$ 5 mil para policial livrar a minha cara", explica Ricardo. "Ficam recebendo por semana, por quinzena. Assim deixam a gente livre. Mas se a grana acabar, mandam tudo pra cadeia."
Todo mundo ganha
Nascido no Piauí, Ricardo veio para São Paulo há sete anos, mas já trabalhava no tráfico em sua terra natal, buscando maconha em uma cidade e entregando em outra. Há algum tempo, seu grupo tomou uma favela após disputa com rivais. "Foi conquistada a custo de vidas, guerreado. Hoje, aqui tudo é união." Mas a boca, que vende crack, cocaína e maconha, já teve dias melhores segundo ele. O mercado consumidor é grande, mas a concorrência também.
Os altos lucros do tráfico vêm exatamente de sua ilegalidade. O produto acaba adquirindo um preço maior, pois nele estão embutidos os riscos do investimento, das possíveis perdas, das propinas. A estrutura visível do tráfico que envolve de "aviões" (que levam pequenas quantidades de droga para os vendedores e clientes), "fogueteiros" (que avisam da chegada de droga ou de rivais através de fogos de artifício), soldados, "vapores" (vendedores) até gerentes e donos são sua parte mais conhecida. A ponta de um imenso iceberg.
Cemitério São Luiz, para onde vão muitos dos jovens, mortos pela violência do tráfico, no Capão Redondo (ao fundo), em São Paulo
Traficantes das facções criminosas do Rio de Janeiro e o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, costumam ir buscar a droga fora do país para vender aqui. Já o comércio internacional é realizado por quatro grandes grupos (africanos, árabes, asiáticos e sul-americanos/europeus) que utilizam o Brasil como rota de passagem para a África, Europa e América do Norte e também comercializam com traficantes locais, como explica o delegado Ronaldo Urbano, coordenador geral de Prevenção e Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal.
Através da "lavagem de dinheiro", os recursos dos grandes traficantes são legalizados. Nos últimos tempos, tem havido um esforço de instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público para atacar essa estrutura através do corte de seu financiamento. "Temos traficantes sendo investigados com mais de 100 milhões de dólares em bens acumulados. Quanto maior seu poder aquisitivo, melhores advogados pode contratar, melhor sua rede de influências", completa Urbano.
Hotéis, bingos, postos de gasolina são utilizadas nessa "lavanderia" por ter uma movimentação de difícil controle. Fazendas e gado também são uma opção de traficantes, como Leonardo Mendonça, que investiu na pecuária do Sul do Pará. Lojas de veículos e outros imóveis foram a escolha de Naldinho, de Santos (SP), caso que envolveu Edinho, filho de Pelé. Uma outra forma de limpar o dinheiro é através da compra de bilhetes premiados de loteria através de informação passada de dentro de órgãos públicos sobre os ganhadores.
"Hoje, a ênfase ainda é na apreensão da droga e do traficante", lamenta Elvécio Barbosa, promotor de justiça do Gaepa, órgão do Ministério Público de São Paulo que atua no combate a esse crime. Investigações são longas, mas produzem resultados de impacto sem tantas trocas de tiro.
Apesar do tráfico concentrar renda em uma comunidade (poucos são os envolvidos com o crime, menor ainda o número dos que realmente lucram), o seu dinheiro ajuda a esquentar a economia formal. Isso vai das roupas de grife compradas pelos jovens traficantes até a indústria de armas.
De acordo com relatório, divulgado em junho, do Escritório contra Drogas e Crime das Nações Unidas, o mercado de drogas ilícitas movimentou cerca de 322 bilhões de dólares em 2004. Para o Fundo Monetário Internacional (FMI), esse comércio representa de 2% a 5% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) internacional. Parte desse dinheiro sofre lavagem e entra no sistema financeiro, podendo virar investimentos, tornando-se parte da economia legal. Isso realimenta o sistema do tráfico, que continua ativo e forte. O combate dessa estrutura depende, portanto, de um complicado concerto internacional, devido ao interesses envolvidos, que vão além da saúde pública.
A guerra de fora
O governo do presidente norte-americano Richard Nixon cunhou a idéia de "Guerra às Drogas", motivado pelo problema dos soldados que voltavam do Vietnã viciados em heroína. O termo foi retomado, anos mais tarde, por Ronald Reagan, mas, de acordo com Wálter Maierovitch, ex-secretário nacional antidrogas e juiz aposentado de São Paulo, com outras intenções: "O que ele queria na verdade era combater o comunismo. Com isso, a droga passou a ser um pretexto para intervenções em outros países". Após o fim da Guerra Fria, o instrumento continuou sendo utilizado como uma bandeira de ataque às drogas e de defesa mundial da saúde pública. "Mas por trás dessa bandeira, há o interesse no petróleo colombiano, por exemplo. Hoje, essa política é um biombo para esconder interesses estratégicos, geopolíticos e econômicos."
Ele denunciou ações ilegais da Drug Enforcement Administration (DEA), órgão norte-americano responsável pelo combate às drogas, em território brasileiro. "O que eles faziam aqui e ao que eu me opus quando era secretário? Espionagem e cooptação financeira de delegados. A DEA é composta de gente tão bandida quanto os traficantes."
O governo brasileiro tem seguido o modelo norte-americano, adequando-o à nossa realidade. Aqui, há mais energia gasta em ações de repressão ao consumo do que em prevenção educativa, de combate ao tráfico de varejo do que em desmantelamento de esquemas de lavagem. Como se viu acima, os jovens traficantes são a parte visível e menor desse sistema e enfrentá-los é equivalente a enxugar gelo. Vale lembrar também que drogas acompanham a humanidade desde o seu início e que é impossível acabar com uma demanda por decreto. Talvez a melhor experiência disso seja a "Lei Seca", que vigorou nos Estados Unidos, entre 1920 e 1933, proibindo a comercialização de bebidas alcoólicas. A venda continuou de forma ilegal, propiciando lucros e poder para o crime organizado, eternizando figuras de gangsters, como Al Capone.
A liberação das drogas eliminaria o tráfico e diminuiria a violência? Antes de mais nada, há duas coisas diferentes: a descriminalização – em que o usuário não é mais tratado como criminoso – e a legalização – em que a droga ganharia um status semelhante ao que hoje têm o álcool e o tabaco. Para essa pergunta, não há consensos. Boa parte dos entrevistados afirmam que isso poderia diminuir a estrutura do tráfico e, conseqüentemente, o número de mortos. Alguns concordam com a descriminalização, como já acontece em outros países (ver box). Mas a maioria absoluta acredita que é impossível a legalização das drogas, principalmente da cocaína, crack e heroína, considerando-se o atual nível de informação da população. Isso poderia causar um grande problema de saúde pública.
Atacar a estrutura do tráfico e sua sustentação, o que inclui também o comércio ilegal de armas, é uma saída. Porém, será inócua se o Estado não se fizer presente e se não houver mudanças estruturais que garantam dignidade para os moradores e outras opções de vida para os que saem em um busca de um lugar no mundo todos os anos.
"Um jovem que entra para um grupo criminoso pensa bastante antes de fazer isso e toma a decisão por falta de opções", lembra Marianna Olinger, do Viva Rio. Mais do que uma escolha pelo crime, é uma escolha pelo emprego e pelo reconhecimento social. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que o dinheiro entra de forma rápida. Dessa forma, pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média que querem o tênis novo que saiu na TV. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia. E uma vez dentro desse sistema, terá que agir sob suas normas. Matando e morrendo, em uma batalha que para cada baixa, fica uma família. Como a de Cláudio.
"Lá em casa a gente tem um problema sério. Minha mãe bebe e fala para mim que é hábito, mas acho que já gerou um vício. A todo momento, ela lembra deles, mas quando está bebendo é que ataca mais a saudade. Embriagada, às vezes, ela chama pelos meus irmãos… Aí eu penso que eles estão justamente ali. Uma coisa doida."
(*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
(Reportagem também publicada na revista Caminhos da Terra.)

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