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Paulo César Carbonari
54 3045-3277
FSP, Ilustríssima, 03 de março de 2013
Helio Schwartsman
Paulo César Carbonari
54 3045-3277
A
COVARDIA DO EXEMPLO
Christian
Dunker analisa o embate entre Calligaris, Safatle, Coelho e Schwartsman sobre a
tortura e o pensamento moral
“A linguagem é a casa de
tortura do Ser”
Slavoj Zizek
Christian Ingo Lenz Dunker
A recente discussão sobre o valor dos dilemas para
o desenvolvimento do pensamento moral, envolvendo Contardo Calligaris, Vladimir
Safatle, Marcelo Coelho e Hélio Schwartsman surpreende antes de tudo pela
civilidade das abordagens respectivas e pelo cruzamento elucidativo de perspectivas.
Contrariamente ao jornalismo cultural amorfo e à crítica social de costumes de
ocasião a controvérsia em pauta mostra como a ética e a política são terrenos
no quais emitir ideias e defender posições compromete indelevelmente os
envolvidos. Resumir posições e retomar argumentos fica um tanto mais perigoso
depois desta afirmativa, mas aqui vai.
Contardo, em sua coluna “Para que serve a tortura?”,
postula que a tortura é um meio eficaz para obter confissões. Há contexto, como
a inquisição, nos quais ela funciona mais como exercício sádico do que forma
genuína de obter a verdade. Seria o caso também da “tortura psicológica” que
eventualmente os adultos perpetuam contra crianças em nome da educação. A
humilhação envolvida neste tipo de confissão gera uma posição de resistência
inútil para o desenvolvimento moral. Mas existiriam situações nas quais a
ponderação sobre a aplicação da tortura seria pertinente? E aqui vem o exemplo,
ilustrado por personagens como Capitão Nascimento e Jack Bauer, com o objetivo
aparente de nos levar a pensar um caso limite. O tema da tortura
mostra-se então apenas um caso extremo da tese de que nosso raciocínio moral
depende de nossa capacidade de levantar, suportar e ponderar a partir de
dilemas.
Toda vez que nos afastamos irreflexivamente de um
dilema por mera adesão a princípios, neste caso: “tortura nunca mais”,
nos impedimos de exercer a dúvida, a incerteza e a crítica que nos levam à
construção da liberdade e autonomia e à renúncia da minoridade baseada na
obediência a cartilhas. O exercício sobre dilemas, refratários a regras de ação
convencionais, opõe-se a confirmação de certezas que pré-decidem como se deve
agir em qualquer universo contextual. Já em outros trabalhos Contardo tem
insistido na referência à Kolhberg, filósofo piagetiano da década de 1930 que
estudou o desenvolvimento moral a partir do método dos dilemas e da separação
entre moralidade convencional, baseada na adesão a costumes e autoridades
externas, em contraste com a moralidade pós-convencional, determinada pela
capacidade de questionar a aplicação a regra ao caso. Exemplo: um pai deve
decidir se assalta ou não uma farmácia para obter o remédio imprescindível para
a sobrevivência de seu filho. O princípio “não roubar”, opõe-se à
contingência de que o filho depende do remédio e ao fato de que o pai ama seu
filho. Esta abordagem procede por estudo de casos, não por meio de modelos
experimentais, como a teoria dos jogos que utiliza amplamente o dilema dos
prisioneiros para pensar modelos de decisão. Kohlberg estuda a natureza da
oposição entre princípios e circunstâncias de forma correlata ao tipo de
pensamento e ao estágio de eticidade envolvido. Seu método privilegia o
processo de decisão, não a alternativa final tomada pelo indivíduo. Exemplo: se
alguém pode alterar o curso de um trem de tal forma que este em vez de
atropelar cinco pessoas ou mate, digamos, mil pessoas, ele deve ou não agir
para mudar a rota do trem, aumentando assim sua reponsabilidade nestas mortes?
Seguindo adiante no método de generalização de
dilemas, Contardo coloca a seguinte opção: “se alguém sabe onde está uma
criança aprisionada, que vai morrer asfixiada se o tempo avançar, esta pessoa
deve ser torturada para que salvemos a criança?” O experimento mental
assume que a tortura é eficaz para produzir confissão e que não existe dúvida
de que o torturado sabe onde está a vítima.
A controvérsia que se seguiu parece assumir como
ponto de partida que os exemplos nunca são indiferentes. A tese lacaniana de
que não há metalinguagem aplica-se aqui mais como consideração ética, ou
meta-ética, do que como regra cognitivo-epistemológica. O método dos dilemas é
basicamente um método em torno do uso e extensão de exemplos, a forma e
conteúdo pelos quais decidimos a aplicação do caso à regra. Daí que quanto mais
complexo, paradoxal e impensável o dilema maior a divisão subjetiva,
consequentemente maior imersão ética e autonomia. Mas em alguns casos a posição
ética não consistiria exatamente em recusar o dilema? Em sua discussão
sobre o fundamentalismo, com Ives Gandra Martins, Contardo dá um bom exemplo
disso:
O processo de generalização, tão caro à epistemologia
construtivista, sinaliza uma evolução rumo à “universalização” da moralidade.
Portanto, de onde advém a eticidade da recusa de certos dilemas. O dilema não é
indefinidamente generalizável e detectar o limite e as razões de sua
generalização, o coeficiente de “elasticidade” do exemplo, constitui outra face
do progresso da moralidade.
A resposta de Vladimir Safatle
consiste em uma crítica ao uso de situações experimentais deste tipo para
pensar a moralidade. A suposição de que a tortura é uma técnica eficaz de
extração da verdade afasta muito da situação real de tortura, na qual muitos se
calam. Ainda, a escolha de dilemas não é destituída de finalidade e
efeitos políticos. Todo dilema contém a suspeita de uma enunciação
interessada. Daí que para indicar o limite de elasticidade deste dilema
Vladimir pergunte: “um Estado que recorre sistematicamente à tortura deve
ser salvo?”. Nisso ele não trai as razões do método de
Kohlberg-Contardo, ou seja, ele exagera a generalização do dilema para mostrar
sua contradição. Questão de Método, o título da coluna, não parece ser
uma alusão ao texto de Sartre, mas uma crítica à dissociação entre forma e conteúdo,
enunciado e enunciação, instrumentos e fins éticos, princípios e exemplos, tema
sobejamente tratado pelo método dialético no qual Contardo e Vladimir se
formaram. A expressão irônica que considera os “paradoxos morais de
laboratório” um falso problema, critica a escolha do exemplo questionando a
neutralidade do exemplo e sugerindo que o paradoxo deve ser pensado junto com a
contradição na abordagem do raciocínio moral.
Contardo e Vladimir partem de fontes e formações
intelectuais bastante próximas: a psicanálise e a filosofia, Lacan e a teoria
crítica, Hegel-Kant e a crítica da cultura pós-estruturalista, a esquerda
“esclarecida” e não a direita “pirotécnica”. Assim como o psicanalista defende
a importância da dúvida e do dilema, o filósofo vem insistindo sobre a
necessária insegurança ontológica dos juízos morais[1] e a existência de atos
morais para além da lei[2]. Para a psicanálise a divergência tem uma inflexão
clínica e politica. Podemos esperar uma moralidade pós-convencional de alguém
que passa por uma psicanálise? A teoria do reconhecimento (em teoria social),
ou a teoria do narcisismo (em clínica), deve admitir uma diferença entre
moralidade (convencional) e eticidade (pós-convencional)? Em outras palavras,
se os processos de individualização (lógica formal da decisão) e as
instituições reais nos quais eles se dão (circunstâncias reais), reúnem-se na
determinação do exemplo, apelar para a força do exemplo, seja como imitação,
seja como problema, esconde a verdadeira questão, ou seja: se é possível pensar
a ética sem a política?
A tortura é um caso limite para nossas regras
pré-constituídas de pensar, mas também um exemplo político. O impacto moral do
exemplo muda se o consideramos do ponto de vista do Estado, que pratica e
sanciona a tortura, ou do indivíduo que se vê diante desta opção, por e com
seus próprios meios. Aliás, este é o objeto da tese de Contardo sobre a
perversão social como montagem perversa, ao modo dos carrascos voluntário de
Hitler[3]. Portanto, é claro que o texto de Contardo não advoga o uso da
tortura, mas o direito e o benefício de refletir sobre ela. Esta é a função do
crítico social e do teórico da cultura, ainda mais quando este é um
psicanalista.
Contudo, não seria a escolha do exemplo, o momento
de sua colocação e, principalmente, o método de tratamento uma proposição de
alta periculosidade política? Operação similar a propor plebiscito sobre a pena
de morte (falando em dilemas), como método de escolha livre, no contexto de
massas enfurecidas sedentas de vingança. Ora, o contexto não é obscuro e
indeterminado: Abu Ghraib, Guantánamo, a guerra ao terror, e
particularmente o filme textualmente mencionado “A Hora mais Escura” de
K. Bigelow. Neste sentido o benévolo convite: vamos dar uma chance aos
vilões, olhar as coisas do ponto de vista de Jack Bauer, surge como ponto
de vista alternativo ou como regra?
Aqui as teses de Kohlberg são suplementadas pelos
desenvolvimentos de Kahneman que mostram como nós representamos nossas escolhas
morais de modo muito diferente da maneira como efetivamente agimos. Isso
duplica o problema: há princípios de ação, cartilhas, imperativos universais
(reais e imaginários) e há circunstâncias de ação, casos, particularidades
concretas (reais e imaginárias). Há dilemas, há falsos dilemas e
há também os dilemas forçados. Recado inevitável: o colunista não
advoga que analisar um dilema moral implique sancionar a alternativa binária
dos termos na qual a situação se apresenta (entre preto e branco há os 50 tons
de cinza).
Contudo, assim como existe um infinito dentro do
dilema há um infinito fora do dilema. A relação entre a conjectura e
o mundo real pode ser, ela mesma, real e desencadear efeitos no mundo
real. Para tanto basta admitir que existem dois tipos de hipóteses:
aquelas que afetam as condições de sua enunciação e aquelas que não
afetam suas próprias condições de enunciação. Por exemplo, levantar a hipótese
da existência de um planeta para além de Plutão e que ele influencia a órbita
dos outros planetas conhecidos não afeta, em tese, as condições da enunciação.
Ele não transforma ética, política ou moralmente aquele que enuncia a
hipótese[4]. Mas há hipóteses que transformam quem as enuncia e corrompem a
situação de enunciação na qual elas emergem. Aliás, esta é uma das maneiras de
definir o inconsciente. Um sonho, um chiste, um sintoma podem ser lidos como
hipóteses que alteram o sujeito que as enuncia. É como dizer, no interior de
uma relação amorosa: “suponhamos que você esteja me traindo”.
Inevitavelmente esta “hipótese” transformará a relação no interior da qual ela
é proferida. Isso pode representar um incentivo à vida de fantasia do
casal, mas certamente implica admitir que a relação entre hipótese moral
levantada e posição desejante ou política dos envolvidos não é de separação
metodológica garantida por alguma instância de metalinguagem. Ou seja, o
problema não é a cartilha explícita e monótona das injunções morais, mas sua
relação com a cartilha particular representada pelas perguntas morais no
contexto parcial, ainda que insabido, de sua própria enunciação. É a nossa “hiddden
agenda” (a cartilha escondida), por vezes contrária às intenções
declarativas. Ela decorre tanto da divisão subjetiva induzida pelo dilema,
quanto da posição no mundo real do exemplo escolhido. Como se pode perceber a
questão agora assume implicações imediatas para a crítica cultural quando se
escolha uma obra ou outra para o comentário ou para a crítica.
A transformação pragmática da enunciação pode
acontece em dilemas de escolha do tipo: de que lado você está? Dos que usam
cartilhas que torturam o pensamento, tais como militantes, patrulhadores, em
geral de esquerda, que não admitem que certos temas sejam colocados em questão,
ou dos liberais independentes dispostos a enfrentar de peito aberto qualquer
assunto? Como observou Marcelo Coelho, nem
todo dilema é produtivo do ponto de vista do raciocínio moral, e eventualmente,
um dilema será mal colocado de forma a induzir uma transformação pragmática,
por exemplo: Brasil: ame-o ou deixe-o. Ou seja, não seria uma covardia
deixar que o exemplo “fale por si mesmo” para depois sugerir que ele está sendo
mal interpretado?
Além da benéfica divisão do sujeito, expressa pela
moral provisória da modernidade, devemos acrescentar a igualmente perturbadora
intromissão do objeto patológico, que nos leva a pensar, naquele momento, naquele
contexto específico, no exemplo do torturador. O caráter indissociável entre
forma universal (ou indefinidamente generalizável) do problema e conteúdo
particular de sua enunciação (ou o exemplo em si) é um dos motivos que
já levaram Contardo, em outros momentos, a aproximar os juízos estéticos dos
juízos morais, a desfazer da separação entre ética e moral, constituindo ainda
uma regra de ação clínica óbvia para qualquer psicanalista: os exemplos
nunca são meros exemplos. As ilustrações dizem sempre mais ou menos do que
o texto. Quem dá o exemplo já está prescrevendo seu contexto de aplicação.
Chegamos assim a uma espécie de critério não normativo de responsabilidade
intelectual.
Marcelo Coelho percebeu
com clareza este ponto ao passar da alternativa entre “laboratório-neutro” ou
“política-interessada” para a oposição entre ficção e vida real. O caso do
Estado de terror baseia-se no uso controlado do “exemplo” como norma e a
tortura como “método de governo”. Ele também questiona a noção de generalização
indicando que o exagero não é um mero erro cognitivo. Ele fornece vários
“contra-exemplos” da generalização de dilemas ao absurdo como o canibalismo nos
andes ou a tortura ao torturador. Lateralmente, ele infiltra a questão da
“influência” da televisão, do poder de indução da realidade gerado pelos “meros
exemplos”, agora considerados em sua vertente de conjecturas ficcionais
“institucionalizada”. A ideia de explorar o raciocínio moral a partir de mundos
possíveis não é indiferente ao tipo e conteúdo exato do “mundo possível” que é
escolhido. Mais uma vez bate à porta a intrusão do político no interior do
universo da ética.
A posição de Hélio Schwartsman,
opondo historicamente, em matéria de ética, deontologistas e
consequencialistas, acompanha a crítica de Safatle e Coelho mostrando como a
posição experimentalista, principalmente quando ela adere ao consequencialismo
“puro”, em filosofia moral, nos expõe a contra-exemplos: o “quase” desastre
nuclear de Three Mile Island, o “improvável” mentiroso kantiano, o
incesto “secreto” entre irmãos. O método das comparações, por trás dos dilemas
presume que temos como resolver cognitivamente o peso dos valores. No entanto,
como tornar comensurável a dor de cabeça em cinco milhões de pessoas ou duas
pernas quebradas? Ou seja, o valor de aprofundamento moral dos dilemas
requer que eles sejam pensados no quadro de identificações.
Contardo responde a estas
objeções reforçando a dimensão metodológica do dilema como formato
padrão da experiência moral moderna. A tortura funcionaria por
pressupostos: não se assalta alguém que você acha que não tem dinheiro, não
há dilema se você não pressupõe que assaltar é errado. O potencial
emancipatório dos dilemas, contra a alienação minorizante das cartilhas, ocorre
porque a identificação induz o essencialismo moral. O homem-cartilha, que
pretende universalizar aquilo que na verdade são apenas disposições
particulares de gosto ou inclinação, evita os dilemas. O intrigante nesta objeção
é que ela remete justamente à tradição kantiana-piagetiana que pretende
encontrar regularidades, quando não universalismos morais, no sujeito (a famosa
tese de que em todas as culturas e épocas partilham da geometria de Euclides e
da moral de Kant):
“ (…) um sujeito concreto não tem os direitos
humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será
porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu
colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso,
porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi
torturado pelos pais.”
Ou seja, que as disposições morais têm uma história
na qual os exemplos são articulados, por identificação, com princípios
definindo o ato moral. Os exemplos tem uma história, eles se inscrevem
em uma narrativa que os ultrapassa como indivíduos. Dissociar exemplos (como a
tortura) de seus contextos de uso (como a guerra ao terror); assim como
desligar a ficção (da onisciência do torturador) da realidade (na qual a
tortura é aplicada independente de sua eficácia) não é um erro diante de
cartilhas universalistas, é um erro diante das próprias premissas assumidas.
Em sua reposta ao dualismo entre cartilhas e
dilemas, Vladimir Safatle volta a
insistir que a decisão moral individual sempre carrega mais e menos
“homúnculos” do que gostaríamos. Matar Bin Laden em nome da segurança ou
da vingança é uma coisa, matar Bin Laden como exemplo, de que a regra
tácita do jogo tolera a tortura e a ilegalidade, são duas situações diferentes.
O efeito “força de lei” ou “dilema concreto” não se aplica apenas ao código
jurídico e abstrato. Há um conjunto de consensos que definem a forma
como aplicamos a lei e como julgamos seu conteúdo moral. Um bom dilema
perturba nosso sistema de identificações, mas um dilema melhor ainda, nos
apresenta um fragmento de real como impossível. Ele nos transforma não apenas
quando o resolvemos, mas quando nós o enunciamos. Não seria este o caso da
moralidade pós-convencional?
___________________
Christian
Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da
USP
Notas
[1] Safatle, V. (2012) Grande Hotel
Abismo: para a reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins
Fontes.
[2] Safatle, V. (2002) “Um ato para além da
lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano”. In Vladimir
Safatle, Um Limite Tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise.
Unesp, São Paulo.
[3] Calligaris, Contardo Luigi (1993) Recherche
sur la perversion comme pathologie sociale. La passion de l’instrumentalité,
thèse pour le Doctorat Nouveau Régime en Lettres et Sciences Humaines,
Université de Provence Aix-Marseille I.
[4] Claro que se pode dizer que esta é uma
condição contextual. Na Idade Média ou entre os Astecas uma afirmação
cosmológica deste tipo pode adquirir alta densidade moral e política. Isso
apenas comprova a ideia de que exemplos e enunciações são covariantes e que a
tensão entre forma e conteúdo é um elemento essencial do dilema moral.
Ontologia e ética não estão tão dissociados quanto gostaríamos.
FSP 21/02/2013
- 07h12
PARA QUE
SERVE A TORTURA?
Contardo Calligaris
A tortura tem, no mínimo, três fins não
excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem
assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3)
tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de
seus cúmplices etc. Será que a tortura consegue tudo isso?
1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador,
a tortura funciona, sempre.
2) A Igreja Católica, por séculos, torturou
pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos
para que confessassem suas teologias desviantes.
Essa tortura era tão violenta quanto a que fora
praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era
diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à
religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos
eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a
"confissão" não evitava uma morte excruciante.
Será, então, que a tortura funciona para arrancar
confissões?
Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou
filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se
contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela
reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto
que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais
repreensível do que a besteira inicial.
Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou
sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço
de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes.
Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as
crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador. Elas
fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria
subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do
acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a
história delas.
Claro, se você insistir, ameaçando a criança com
punições cada vez mais requintadas, a criança talvez "confesse", mas
a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá
culpado do jeito que o acusador pede. Em suma, a tortura para obter confissões
é um desastre.
Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura
seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa
prática, "racional", para aboli-la, além do horror que ela inspira em
qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses
vingativos).
3) Infelizmente, esse argumento
"racional" só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do
acusado. Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices,
paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente
morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona.
O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os
"interrogatórios" brutais do agente Jack Bauer, na série "24
Horas", funcionam. E, de fato, como lembra "A Hora Mais Escura",
de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de
suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar
e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram,
acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e
incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura,
nos interrogatórios, não é infrutuosa --se quisermos condená-la, teremos que
produzir razões diferentes de sua inutilidade.
Para se declarar contra o uso da tortura no caso
deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os
homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo
politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática
(como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor
forma de educação moral.
Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em
um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o
sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não
existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar.
Você faz o que?
Disponível em www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/1233770-para-que-serve-a-tortura.shtml
FSP 26/02/2013
- 03h30
QUESTÃO
DE MÉTODO
Vladimir Safatle
A filosofia moral, vez por outra, se vê confrontada
com problemas mal formulados que gostariam de se passar por paradoxos astutos.
Desmontá-los seria apenas um peculiar passatempo acadêmico, se eles não
aparecessem periodicamente como premissas de raciocínios tortuosos na grande
imprensa.
Tal astúcia constrói o que poderíamos chamar de
"paradoxos morais de laboratório". Trata-se de pequenos paradoxos do
tipo "podemos torturar alguém cuja confissão nos permitirá desativar uma
bomba que matará dezenas de inocentes?", com todas as suas variantes
possíveis.
Do ponto de vista da filosofia moral, não há
exercício mais pueril do que procurar responder a tais inventivas. Pois elas
pressupõem condições de laboratório, como "sei que o sujeito torturado
sabe algo sobre a bomba", "sei que não há hipótese alguma de ter pego
a pessoa errada", "sei que ele falará antes de morrer",
"sei que a razão de sua ação é injustificável". Como ninguém mora em
um laboratório, mas depende, no mais das vezes, da sabedoria da polícia ou
desta "inteligência militar" na qual Groucho Marx viu a expressão
mais bem-acabada de uma contradição em termos, tais condições nunca são
completamente asseguradas.
Mas paradoxos dessa natureza têm como verdadeira finalidade
fracionar a ação a fim de retirá-la de todo contexto possível. Boa maneira de
não começarmos por perguntar como chegamos a essa situação.
Longe de ser uma enunciação neutra, essa é uma
enunciação profundamente interessada. Ninguém coloca uma questão dessas de
maneira inocente, como ninguém pergunta inocentemente se negros são, realmente,
tão inteligentes quanto brancos ou se o Holocausto, de fato, existiu na
dimensão normalmente descrita. Perguntar as reais motivações do enunciador é
uma boa maneira de começar a desmontar o paradoxo.
Pode ser, porém, que o enunciador queira apenas
insistir que, em situações excepcionais, a tortura aparece como o último
recurso dotado de certa eficácia. De fato, se tortura fosse eficaz, as favelas
brasileiras seriam um paraíso da paz. Melhor lembrar que a única eficácia
realmente comprovada da tortura é sua força de corroer completamente o que
restou das bases normativas do Estado. Pois se usamos a tortura contra o
inimigo n° 1 da democracia, por que não usá-la contra o n° 2, o n° 3... o n°
54.327?
Ninguém pratica a tortura sem se transformar no
verdadeiro inimigo da democracia. Por isso, seria o caso de perguntar: "Um
Estado que recorre sistematicamente à tortura merece ser salvo? No que ele se
transformou? Ele merece ser justificado diante de situações que, muitas vezes,
ele próprio ajudou a criar?".
FSP 27/02/13
- 03:00
NO MUNDO
DE JACK BAUER
Marcelo Coelho
Contardo Calligaris apresentou aqui, na
quinta-feira passada, alguns argumentos interessantes a favor da tortura. Acho
que sua intenção foi mais colocar o assunto em debate e menos defender sua
adoção no Brasil.
Mesmo porque ela já existe, com resultados
discutíveis do ponto de vista da segurança pública.
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona”,
escreve Contardo. Os interrogatórios de Jack Bauer, na série “24 Horas”, também
funcionam, repete o psicanalista.
Pode ser. Não me considero um “bonzinho”, desses
que querem um mundo perfeito, utópico, ideal. Querer eu quero, mas sei que a
realidade não corresponde a todos os sonhos que temos.
O problema, eu acho, é quando se quer ser
“realista” demais. Um mundo sem tortura? Com Bin Laden e terroristas variados à
solta? Loucura, dizem os pragmáticos.
O estranho é que uma perspectiva realista e
pragmática, como a explorada pelo meu colega da “Ilustrada”, muitas vezes me
parece puramente imaginária e ficcional.
O capitão Nascimento e o agente Jack Bauer são,
antes de tudo, personagens de filmes. Por razões não apenas ideológicas, mas
também de dramaturgia, suas torturas e sacos plásticos funcionam muito bem.
Contardo Calligaris já manifestou discordância
quanto à tese de que a TV influencia as pessoas. Mas se eu começar a assistir a
muitos filmes em que o herói é um torturador eficiente e simpático, também vou
acreditar que a tortura funciona.
Se os americanos fizessem mais filmes em que a
tortura não funciona (mas aí penso num mundo ideal, não o da Fox Filmes),
provavelmente pensaríamos de outra maneira.
Só para ser um pouquinho realista, penso no
seguinte. Um policial realmente acostumado a torturar suspeitos não passa pela
experiência incólume. É de imaginar que a prática da tortura o torne insensível
a uma série de outros limites morais, do tipo “não roubarás”, “não matarás”,
“não sequestrarás criancinhas”.
Torturarás, ademais, pessoas sobre as quais pesam
suspeitas não tão fortes assim. Não sei se os cidadãos terminariam mais seguros
com 300 Jack Bauers agindo por perto.
É que a tortura tem outra função, além das
apontadas por Contardo Calligaris em seu artigo. Ele fala em dar prazer ao
torturador, em obter confissões, em conseguir informações. Uma quarta função me
parece importantíssima.
Trata-se de estabelecer um regime de terror de
Estado. Não é apenas o terrorista quem está exposto à tortura. O vago
simpatizante da causa, o oposicionista pacífico, o irmão, o parente, o filho, o
vizinho, estão sob ameaça também. Numa ditadura, prender e censurar nunca é
suficiente: a tortura é a verdadeira punição.
Para finalizar, Contardo levanta o célebre
argumento da “bomba-relógio”. Copio a sua versão.
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em
um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o
sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. [...] A tortura
poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”
Não sei. Este é mais um caso em que a ficção fala
mais alto do que a realidade.
Sou contra a tortura, como sou contra o matricídio
e o canibalismo. Agora, suposições extremas não faltam. Suponha que sua mãe
enlouqueceu, entrou numa creche com uma escopeta e está matando bebês aos
punhados. Você é policial e ela está na mira do seu revólver. Você faz o quê?
Suponha que você está viajando com seus colegas de
escritório, o avião cai nos Andes e você só sobrevive se matar um deles e
comê-lo. Ele fará provavelmente o mesmo com você, se você deixar. Você faz o
quê?
Ora essa. Eu mudo o canal da televisão.
De resto, o argumento da “bomba-relógio” tem outros
problemas. O tempo também corre a favor do torturado. Ele tem apenas uma hora
de tormentos para se manter em silêncio; pode mentir, ademais.
Outra pergunta. Que tal pagar o resgate? Também
funciona, em geral.
Não é impossível pegar o sequestrador depois. Já o
torturador vai continuar a estrela do filme.
Ali Soufan, agente do FBI especializado em
interrogar membros da Al Qaeda, escreveu um artigo no “New York Times”
contestando toda a versão de Hollywood quanto à descoberta de Bin Laden.
Diz que autoridades do governo Bush mentiram
abertamente sobre o sucesso de técnicas de tortura, apenas para justificar sua
adoção. Será que Ali Soufan está mentindo? Quem sabe seja o caso de torturá-lo
também.
FSP, Ilustríssima, 03 de março de 2013
GENEALOGIA DA MORAL
Helio Schwartsman
O
debate sobre a tortura mostra quão pouco sabemos de nós mesmos
RESUMO Debate entre
colunistas desta Folha reacendeu a discussão sobre as questões
éticas da utilização da tortura. Sob o ponto de vista de duas matrizes de
sistemas éticos -deontológica e consequencialista-, as ponderações de cada um
dos autores denota quão paradoxal é a construção de nossas convicções morais.
É DIFÍCIL A vida do ser humano. Levamos
centenas de milhares de anos para aprimorar a ética e, quando procuramos
sistematizá-la, quebramos a cara, já que as tentativas de fazê-lo
invariavelmente levam a paradoxos. Faço essa consideração a propósito da
controvérsia sobre a justificação moral da tortura em que se meteram alguns de
meus colegas colunistas da Folha e me junto a eles na
balbúrdia.
Foi Contardo Calligaris quem deu início à
celeuma, lançando, em sua coluna na "Ilustrada" de 21 de fevereiro,
de forma meio provocativa, uma variante do dilema conhecido como "problema
da bomba-relógio": "Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em
um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o
sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não
existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar.
Você faz o quê?".
Vladimir Safatle e Marcelo Coelho aceitaram a
provocação e responderam a Calligaris com artigos bastante interessantes. Na
terça passada, o professor da USP criticou, em seu texto semanal na página 2, o
que chamou de "paradoxos morais de laboratório" aos quais acusou de
não informar nada e esconder interesses nem sempre confessáveis.
No dia seguinte, Coelho, na
"Ilustrada", foi mais ou menos na mesma linha, afirmando que esse
gênero de experimento mental combina muito mais com a ficção do que com a
realidade, na qual não devemos admitir nenhum tipo de tortura.
Paradoxalmente, eu concordo com todos eles e
também discordo, em proporções parecidas.
Receio que, para entender melhor o que está
em jogo, tenhamos de traduzir a polêmica para o chamado filosofês.
SISTEMAS ÉTICOS Fazendo uma
simplificação exagerada da história da filosofia, existem duas matrizes de
sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, têm como
expoentes Platão (429-347 a.C.) e Immanuel Kant (1724-1804).
Para os dois autores, são os princípios que
importam. Valem incondicionalmente regras como "não matarás" ou
"não mentirás", porque estão amparadas pela ideia de justiça, por
Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.
No outro extremo dos sistemas éticos está o
consequencialismo, defendido por intelectuais comoJeremy Bentham (1748-1832) e
John Stuart Mill (1806-1873).
Em resumo, eles dizem que não existem
princípios externos abstratos como a ideia de justiça que possam validar ou
invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências
que acarretam. É preciso dizer que são boas as ações que engendram bons
resultados. No caso de Bentham (conhecido como o pai do utilitarismo), o que
interessa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula "o
maior bem para o maior número de pessoas".
O argumento da bomba-relógio pode nos deixar
em dúvida porque apela a nossas intuições consequencialistas. Se torturar um
indivíduo nos faz salvar cem pessoas, ficamos com um saldo líquido de 99 vidas,
mesmo que o suposto terrorista morra no processo.
O problema tanto com as éticas deontológicas
como com as consequencialistas é que, se tomadas muito ao pé da letra, levam a
situações que desafiam nosso senso de justiça. O dever de ser honesto para com
todos, por exemplo, me obrigaria a revelar a um assassino o lugar onde sua
presa se esconde.
O próprio Kant foi vítima desse paradoxo de
laboratório. E caiu na esparrela. Após ter sido provocado por Benjamin Constant
(1767-1830), o filósofo de Königsberg publicou "Sobre um Pretenso Direito
de Mentir por Amor aos Homens", um dos mais estranhos textos da história
da filosofia, no qual confirmou que não temos o direito de mentir para ninguém,
nem para assassinos e outros celerados que nos ameacem a vida.
A situação dos consequencialistas não é muito
mais confortável. Se só o que importa é produzir o maior bem possível para a
maioria das pessoas, então o médico poderia matar o paciente saudável que entra
em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que
necessitavam de transplante. De forma análoga, o Estado estaria autorizado a
torturar não apenas terroristas mas também seus familiares para demovê-lo de
seus projetos funestos.
MECANISMOS É claro que filósofos são
sujeitos espertos e, tendo percebido esses problemas, se puseram a elaborar
mecanismos para contorná-los. Foi assim que surgiram propostas inventivas, como
o consequencialismo de regras, o consequencialismo em dois níveis e as
metaéticas contemporâneas, sem mencionar as éticas da virtude e as que pendem
para o contratualismo.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit, em seu
monumental "On What Matters", chega mesmo a propor uma interpretação
que torna Immanuel Kant um consequencialista. Mas, se filósofos são bons em
imaginar soluções, são ainda melhores em levantar objeções. Até o momento, não
existe (e provavelmente jamais existirá) uma teoria que satisfaça a todas as
partes.
Centremo-nos nas críticas ao
consequencialismo, pois foi o que levantou o problema da tortura.
Um dos principais pontos fracos dessas éticas
é o problema da falta de informação. Outro filósofo da atualidade, Daniel
Dennett, exemplifica bem a questão com o que chamou de "efeito Three Mile
Island". Em 1979, nessa localidade no Estado da Pensilvânia, ocorreu o
pior desastre nuclear da história dos EUA, quando uma sucessão de eventos levou
ao derretimento parcial do núcleo de um dos reatores. Houve vazamento de
radiação, mas não se registraram mortes. A pergunta é: o incidente teve
resultado positivo ou negativo?
À primeira análise, ninguém qualificaria um
desastre nuclear como bom. Mas, considerando que não houve vítimas e que o
ocorrido contribuiu para reformular os protocolos de segurança e tornar as
usinas muito menos perigosas, essa ideia já não parece tão absurda. Um espírito
de porco, porém, poderia afirmar que o incidente, ao nos empurrar para matrizes
energéticas mais poluentes do que a nuclear, provavelmente foi responsável por
alguns casos extras de câncer, o que reduziu o bem-estar da humanidade. O mundo
é um lugar complexo demais para imaginarmos que seremos capazes de considerar
todas as variáveis relevantes.
Outra dificuldade é que não é tão simples
encontrar uma moeda corrente que permita intermediar as contas necessárias para
fazer o consequencialismo funcionar.
Como observou a filósofa Patricia Churchland,
"ninguém tem a menor ideia de como comparar a leve dor de cabeça de 5
milhões de pessoas com as pernas quebradas de duas pessoas, ou as necessidades
de dois filhos contra as de cem crianças com paralisia cerebral das quais não
somos parentes na Sérvia".
Nesse sentido, não dá para deixar de
concordar com Vladimir Safatle e Marcelo Coelho quando afirmam que o paradoxo
moral fora de contexto não pode servir de modelo para situações reais. Quantas
vezes na história da humanidade o cenário da bomba-relógio de fato se
materializou? Eu arriscaria dizer que nenhuma. E, mesmo que tivesse acontecido,
que garantia teríamos de que todas as informações relevantes foram computadas?
Será que entre as crianças que morreriam no atentado não estaria o próximo
Hitler?
MORAL Sam Harris resume bem as coisas quando
diz, em "The Moral Landscape", que o consequencialismo é muito mais
uma afirmação sobre o status da moral do que um método para responder a
problemas éticos específicos.
Daí não decorre que os paradoxos de
laboratório sejam uma completa inutilidade. Eles oferecem uma janela perfeita
para que perscrutemos nossas intuições morais, que podem ser bastante
informativas, tanto do ponto de vista da filosofia como dos da psicologia
evolutiva e da própria biologia.
O psicólogo Jonathan Haidt explora bem esse
tipo de questão. Analisemos um dos paradoxos que ele propõe.
Julie e Mark são irmãos. Eles estão em férias
da universidade, fazendo uma viagem pela França. Uma noite, sozinhos num
bangalô à beira da praia, decidem que seria legal e divertido se fizessem amor.
Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, e Mark resolveu que usaria
também uma camisinha, só para garantir. Os dois fazem sexo e gostam da
experiência. Combinam de mantê-la em segredo e jamais repeti-la. O que você
acha disso? O que eles fizeram é correto?
A esmagadora maioria das pessoas pensa que
não. Muitos sentem até um mal-estar visceral ao ler a descrição. Ninguém,
entretanto, é capaz de apontar o que há de objetivamente errado na experiência
dos irmãos, já que ela não produziu nenhuma espécie de dano para ninguém.
Desse pequeno paradoxo e da forma como as
pessoas reagem a ele já podemos extrair "insights" valiosos sobre a
origem da moral -que carrega muito de emocional, como, aliás, já apontara David
Hume (1711-1776)- e sobre o lugar do incesto em nossa psique (ao que parece,
ele provoca mais repulsa do que desejo).
Jonathan Haidt, porém, vai mais longe e,
valendo-se de várias famílias de investigações com base em paradoxos, propõe
uma genealogia completa da moral, que seria composta por seis sentimentos
básicos: proteção, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade
(pureza). Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral.
O mapa ético de cada indivíduo seria uma combinação de diferentes proporções
desses ingredientes.
Evidentemente, a teoria de Haidt está longe
de ser um consenso. Ela recebeu muitas e variadas críticas, algumas bastante
pertinentes. O objetivo, contudo, era apenas tentar demonstrar que os paradoxos
podem ser produtivos -mesmo que não sejam capazes de nos oferecer um manual de
conduta.
Aliás, o interessante nessa história toda é
que, quanto mais nos embrenhamos nessas reflexões, mais precário parece o
edifício lógico no qual sustentamos as convicções morais que expressamos com
tanta veemência.
FSP
07/03/2013 - 03h04
DILEMAS E
CARTILHAS
Contardo
Calligaris
Na coluna da semana retrasada, "Para que serve
a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança
sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não
diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?
Entre os muitos leitores que me escreveram, menos
de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em
sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.
Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e
Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio
Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.
Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único
exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe.
Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a
controvérsia, aqui vai:
1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não
funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não
tem dinheiro no bolso.
2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco
covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a
entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes
mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e
Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).
3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve
nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o
primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho
e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem
considere que assaltar é errado.
4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que
pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e
experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o
único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação).
Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence
Kohlberg --no mínimo, os "Essays on Moral Development".
5) Um dilema nunca é um modelo para situações
parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato
padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por
conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.
6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e
pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas
mais tentam arregimentar as crianças --nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión
de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A
maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.
7) O dilema estimula a moralidade porque nos
encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma
punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro
íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.
8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que
pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a
John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.
John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.
Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem
escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa
grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos
motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.
Explico: um sujeito concreto não tem os direitos
humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será
porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu
colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso,
porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi
torturado pelos pais. Etc. Etc.
10) Safatle chamou sua coluna "Questão de
Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E
ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades
concretas.
11) Em qualquer momento histórico, entre os homens
de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens
atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos
opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os
opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/1241659-dilemas-e-cartilhas.shtml
FSP
12/03/2013 - 03h30
ALGUMAS
DIFERENÇAS
Vladimir Safattle
Em sua última coluna ("Dilemas e cartilhas",
"Ilustrada"), Contardo Calligaris levantou uma série de objeções
interessantes a respeito dos problemas indicados por mim e por Marcelo Coelho
sobre sua maneira de insistir em certos paradoxos morais. Talvez esta seja a
ocasião de levantar dois pontos que reflexões sobre filosofia moral não podem
negligenciar.
Primeiro, a discussão sobre a eficácia de
determinadas ações não pode sustentar-se na limitação artificial de suas
consequências. Nesse sentido, falar em eficácia da tortura é tão racional
quanto perguntar-se sobre a eficácia de um remédio contra dor de dentes, mas
que infelizmente provoca ataque cardíaco.
Tomemos o exemplo das torturas (de eficácia
duvidosa, diga-se de passagem) feitas para encontrar e matar Bin Laden. O que
elas produziram? Notem que o verdadeiro objetivo nunca foi matar Bin Laden, mas
transformar os EUA em um "lugar mais seguro". Nesse sentido, tais
torturas apenas deixaram o verdadeiro objetivo ainda mais longe.
Antes, os cidadãos norte-americanos viviam em um
país cujos governantes não temiam recorrer a torturas, execuções
extrajudiciais, quebras de liberdades individuais e vazios jurídicos, quando
entendiam que o país corria perigo, mas precisavam fazer isso em silêncio.
Hoje, eles vivem em um país que não vê problema em declarar abertamente que faz
tudo isso, como se esse fosse um mal menor diante do verdadeiro problema.
Assim, além da insegurança provocada pela Al Qaeda,
agora os norte-americanos devem levar em conta a insegurança provocada pelo seu
próprio governo, envolto em um estado de exceção permanente.
Segundo ponto: a enunciação de um "paradoxo
moral" não pode negligenciar a experiência histórica a ele normalmente
associado.
Durante décadas, "paradoxos" do tipo
"você torturaria alguém com informações que poderão salvar a vida de seu
filho" foram usados como a premissa maior de argumentos do gênero:
"Da mesma forma que um pai deve proteger seu filho, governantes devem
proteger seu povo; logo...".
Ignorar que a enunciação desse paradoxo porta uma
experiência histórica dessa natureza não é moral. Esse é o problema de pensar
questões morais de maneira abstrata, negligenciando a maneira com que certos
enunciados circulam na história.
Diga-se de passagem, nunca entendi porque os
interessados em paradoxos morais no Brasil raramente colocam problemas do tipo:
"Alguém que certamente será torturado, provavelmente até a morte, bate à
porta de sua casa pedindo ajuda. Caso aceite, você colocará em risco a
tranquilidade de sua família. O que fazer?".
FSP
28/02/2013 - 03h02
YOANI E
AS FALSAS ALTERNATIVAS
Contardo
Calligaris
Deveríamos
recusar todas as alternativas --sempre, por princípio. Imagine que alguém diga
"Se você pega o preto, perde o branco, e, se você pega o branco, perde o
preto" e insista: "Então, qual será? Preto ou branco?". Quase
sempre, eu responderia que existem, no mínimo, 50 tons de cinza e imediatamente
devolveria a pergunta: "Por que razão escusa você tenta me acuar a escolher
entre preto e branco?".
Somos
crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista sempre uma saída
mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua maioria, as alternativas nos
seduzem e funcionam, justamente, quando elas exaltam nossa falsa fé em soluções
que não sejam totalmente perdedoras.
Jacques
Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa "alienação"
diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao exemplo
do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".
Basta
pensar um instante para constatar que a alternativa é furada, visto que, se eu
decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida --vou perder também a
bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu cadáver.
De
maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente furada no
Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a bolsa com
docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos mate, pegando,
com a bolsa, nossa vida também.
Em suma:
escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa "Passa
a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não signifique
"Passe a bolsa E a vida, E ponto" --como dizem os bandidos,
"Você perdeu geral".
O exemplo
de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer um que
tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um bandido, interessado
sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre nós.
A
política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma alternativa
desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual deveríamos escolher
entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas (liberdade de opinião, de
culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa privacidade respeitada etc.) e, do
outro lado, uma nova justiça social, que acabasse com miséria e fome.
Eu mesmo
já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os países ditos
socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia "E a liberdade
de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da fome, renunciar
às liberdades burguesas fosse o preço necessário e, portanto, aceitável, se não
módico.
Isso
aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu pai.
Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento no qual ele
se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista, antifascista e
anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam constituir uma
alternativa.
Em geral,
quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um aproveitador econômico e
social (quer ser livre de perseguir seus interesses sem ter que se preocupar
com os outros). E quem nos diz que só teremos justiça sem liberdade é um
aproveitador político (quer que abandonemos nossas liberdades de modo que ele
possa se eternizar no poder sem oposição). Essas duas espécies de
aproveitadores se valem.
A
alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa
ou a vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu
mundos sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos,
corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.
Ora, na
ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, houve pessoas
para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela criticar a falta de
liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome na ilha?
O fato é
que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das
liberdades dos cubanos.
Nota.
Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana passada,
"Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua coluna
nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir Safatle, na
página 2 da Folha, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por
quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/1237710-yoani-e-as-falsas-alternativas.shtml
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