terça-feira, 26 de março de 2013

A COVARDIA DO EXEMPLO

enviado por
Paulo César Carbonari
54 3045-3277


A COVARDIA DO EXEMPLO

Christian Dunker analisa o embate entre Calligaris, Safatle, Coelho e Schwartsman sobre a tortura e o pensamento moral

 “A linguagem é a casa de tortura do Ser
Slavoj Zizek


Christian Ingo Lenz Dunker

A recente discussão sobre o valor dos dilemas para o desenvolvimento do pensamento moral, envolvendo Contardo Calligaris, Vladimir Safatle, Marcelo Coelho e Hélio Schwartsman surpreende antes de tudo pela civilidade das abordagens respectivas e pelo cruzamento elucidativo de perspectivas. Contrariamente ao jornalismo cultural amorfo e à crítica social de costumes de ocasião a controvérsia em pauta mostra como a ética e a política são terrenos no quais emitir ideias e defender posições compromete indelevelmente os envolvidos. Resumir posições e retomar argumentos fica um tanto mais perigoso depois desta afirmativa, mas aqui vai.
Contardo, em sua coluna Para que serve a tortura?”, postula que a tortura é um meio eficaz para obter confissões. Há contexto, como a inquisição, nos quais ela funciona mais como exercício sádico do que forma genuína de obter a verdade. Seria o caso também da “tortura psicológica” que eventualmente os adultos perpetuam contra crianças em nome da educação. A humilhação envolvida neste tipo de confissão gera uma posição de resistência inútil para o desenvolvimento moral. Mas existiriam situações nas quais a ponderação sobre a aplicação da tortura seria pertinente? E aqui vem o exemplo, ilustrado por personagens como Capitão Nascimento e Jack Bauer, com o objetivo aparente de nos levar a pensar um caso limite.  O tema da tortura mostra-se então apenas um caso extremo da tese de que nosso raciocínio moral depende de nossa capacidade de levantar, suportar e ponderar a partir de dilemas.
Toda vez que nos afastamos irreflexivamente de um dilema por mera adesão a princípios, neste caso: “tortura nunca mais”, nos impedimos de exercer a dúvida, a incerteza e a crítica que nos levam à construção da liberdade e autonomia e à renúncia da minoridade baseada na obediência a cartilhas. O exercício sobre dilemas, refratários a regras de ação convencionais, opõe-se a confirmação de certezas que pré-decidem como se deve agir em qualquer universo contextual. Já em outros trabalhos Contardo tem insistido na referência à Kolhberg, filósofo piagetiano da década de 1930 que estudou o desenvolvimento moral a partir do método dos dilemas e da separação entre moralidade convencional, baseada na adesão a costumes e autoridades externas, em contraste com a moralidade pós-convencional, determinada pela capacidade de questionar a aplicação a regra ao caso. Exemplo: um pai deve decidir se assalta ou não uma farmácia para obter o remédio imprescindível para a sobrevivência de seu filho. O princípio “não roubar”, opõe-se à contingência de que o filho depende do remédio e ao fato de que o pai ama seu filho. Esta abordagem procede por estudo de casos, não por meio de modelos experimentais, como a teoria dos jogos que utiliza amplamente o dilema dos prisioneiros para pensar modelos de decisão. Kohlberg estuda a natureza da oposição entre princípios e circunstâncias de forma correlata ao tipo de pensamento e ao estágio de eticidade envolvido. Seu método privilegia o processo de decisão, não a alternativa final tomada pelo indivíduo. Exemplo: se alguém pode alterar o curso de um trem de tal forma que este em vez de atropelar cinco pessoas ou mate, digamos, mil pessoas, ele deve ou não agir para mudar a rota do trem, aumentando assim sua reponsabilidade nestas mortes?
Seguindo adiante no método de generalização de dilemas, Contardo coloca a seguinte opção: “se alguém sabe onde está uma criança aprisionada, que vai morrer asfixiada se o tempo avançar, esta pessoa deve ser torturada para que salvemos a criança?” O experimento mental assume que a tortura é eficaz para produzir confissão e que não existe dúvida de que o torturado sabe onde está a vítima.
A controvérsia que se seguiu parece assumir como ponto de partida que os exemplos nunca são indiferentes. A tese lacaniana de que não há metalinguagem aplica-se aqui mais como consideração ética, ou meta-ética, do que como regra cognitivo-epistemológica. O método dos dilemas é basicamente um método em torno do uso e extensão de exemplos, a forma e conteúdo pelos quais decidimos a aplicação do caso à regra. Daí que quanto mais complexo, paradoxal e impensável o dilema maior a divisão subjetiva, consequentemente maior imersão ética e autonomia. Mas em alguns casos a posição ética não consistiria exatamente em recusar o dilema?  Em sua discussão sobre o fundamentalismo, com Ives Gandra Martins, Contardo dá um bom exemplo disso:
O processo de generalização, tão caro à epistemologia construtivista, sinaliza uma evolução rumo à “universalização” da moralidade. Portanto, de onde advém a eticidade da recusa de certos dilemas. O dilema não é indefinidamente generalizável e detectar o limite e as razões de sua generalização, o coeficiente de “elasticidade” do exemplo, constitui outra face do progresso da moralidade.
A resposta de Vladimir Safatle consiste em uma crítica ao uso de situações experimentais deste tipo para pensar a moralidade. A suposição de que a tortura é uma técnica eficaz de extração da verdade afasta muito da situação real de tortura, na qual muitos se calam.  Ainda, a escolha de dilemas não é destituída de finalidade e efeitos políticos.  Todo dilema contém a suspeita de uma enunciação interessada. Daí que para indicar o limite de elasticidade deste dilema Vladimir pergunte: “um Estado que recorre sistematicamente à tortura deve ser salvo?”.  Nisso ele não trai as razões do método de Kohlberg-Contardo, ou seja, ele exagera a generalização do dilema para mostrar sua contradição. Questão de Método, o título da coluna, não parece ser uma alusão ao texto de Sartre, mas uma crítica à dissociação entre forma e conteúdo, enunciado e enunciação, instrumentos e fins éticos, princípios e exemplos, tema sobejamente tratado pelo método dialético no qual Contardo e Vladimir se formaram.  A expressão irônica que considera os “paradoxos morais de laboratório” um falso problema, critica a escolha do exemplo questionando a neutralidade do exemplo e sugerindo que o paradoxo deve ser pensado junto com a contradição na abordagem do raciocínio moral.
Contardo e Vladimir partem de fontes e formações intelectuais bastante próximas: a psicanálise e a filosofia, Lacan e a teoria crítica, Hegel-Kant e a crítica da cultura pós-estruturalista, a esquerda “esclarecida” e não a direita “pirotécnica”. Assim como o psicanalista defende a importância da dúvida e do dilema, o filósofo vem insistindo sobre a necessária insegurança ontológica dos juízos morais[1] e a existência de atos morais para além da lei[2]. Para a psicanálise a divergência tem uma inflexão clínica e politica. Podemos esperar uma moralidade pós-convencional de alguém que passa por uma psicanálise? A teoria do reconhecimento (em teoria social), ou a teoria do narcisismo (em clínica), deve admitir uma diferença entre moralidade (convencional) e eticidade (pós-convencional)? Em outras palavras, se os processos de individualização (lógica formal da decisão) e as instituições reais nos quais eles se dão (circunstâncias reais), reúnem-se na determinação do exemplo, apelar para a força do exemplo, seja como imitação, seja como problema, esconde a verdadeira questão, ou seja: se é possível pensar a ética sem a política?
A tortura é um caso limite para nossas regras pré-constituídas de pensar, mas também um exemplo político. O impacto moral do exemplo muda se o consideramos do ponto de vista do Estado, que pratica e sanciona a tortura, ou do indivíduo que se vê diante desta opção, por e com seus próprios meios. Aliás, este é o objeto da tese de Contardo sobre a perversão social como montagem perversa, ao modo dos carrascos voluntário de Hitler[3]. Portanto, é claro que o texto de Contardo não advoga o uso da tortura, mas o direito e o benefício de refletir sobre ela. Esta é a função do crítico social e do teórico da cultura, ainda mais quando este é um psicanalista.
Contudo, não seria a escolha do exemplo, o momento de sua colocação e, principalmente, o método de tratamento uma proposição de alta periculosidade política? Operação similar a propor plebiscito sobre a pena de morte (falando em dilemas), como método de escolha livre, no contexto de massas enfurecidas sedentas de vingança. Ora, o contexto não é obscuro e indeterminado: Abu Ghraib,  Guantánamo, a guerra ao terror, e particularmente o filme textualmente mencionado “A Hora mais Escura” de K. Bigelow. Neste sentido o benévolo convite: vamos dar uma chance aos vilões, olhar as coisas do ponto de vista de Jack Bauer, surge como ponto de vista alternativo ou como regra?
Aqui as teses de Kohlberg são suplementadas pelos desenvolvimentos de Kahneman que mostram como nós representamos nossas escolhas morais de modo muito diferente da maneira como efetivamente agimos.  Isso duplica o problema: há princípios de ação, cartilhas, imperativos universais (reais e imaginários) e há circunstâncias de ação, casos, particularidades concretas (reais e imaginárias). Há dilemas, há falsos dilemas e há também os dilemas forçados. Recado inevitável: o colunista não advoga que analisar um dilema moral implique sancionar a alternativa binária dos termos na qual a situação se apresenta (entre preto e branco há os 50 tons de cinza).
Contudo, assim como existe um infinito dentro do dilema há um infinito fora do dilema. A relação entre a conjectura e o mundo real pode ser, ela mesma, real e desencadear efeitos no mundo real.  Para tanto basta admitir que existem dois tipos de hipóteses: aquelas que afetam as condições de sua enunciação e aquelas que não afetam  suas próprias condições de enunciação. Por exemplo, levantar a hipótese da existência de um planeta para além de Plutão e que ele influencia a órbita dos outros planetas conhecidos não afeta, em tese, as condições da enunciação. Ele não transforma ética, política ou moralmente aquele que enuncia a hipótese[4]. Mas há hipóteses que transformam quem as enuncia e corrompem a situação de enunciação na qual elas emergem. Aliás, esta é uma das maneiras de definir o inconsciente. Um sonho, um chiste, um sintoma podem ser lidos como hipóteses que alteram o sujeito que as enuncia. É como dizer, no interior de uma relação amorosa: “suponhamos que você esteja me traindo”. Inevitavelmente esta “hipótese” transformará a relação no interior da qual ela é proferida.  Isso pode representar um incentivo à vida de fantasia do casal, mas certamente implica admitir que a relação entre hipótese moral levantada e posição desejante ou política dos envolvidos não é de separação metodológica garantida por alguma instância de metalinguagem. Ou seja, o problema não é a cartilha explícita e monótona das injunções morais, mas sua relação com a cartilha particular representada pelas perguntas morais no contexto parcial, ainda que insabido, de sua própria enunciação. É a nossa “hiddden agenda” (a cartilha escondida), por vezes contrária às intenções declarativas. Ela decorre tanto da divisão subjetiva induzida pelo dilema, quanto da posição no mundo real do exemplo escolhido. Como se pode perceber a questão agora assume implicações imediatas para a crítica cultural quando se escolha uma obra ou outra para o comentário ou para a crítica.
A transformação pragmática da enunciação pode acontece em dilemas de escolha do tipo: de que lado você está? Dos que usam cartilhas que torturam o pensamento, tais como militantes, patrulhadores, em geral de esquerda, que não admitem que certos temas sejam colocados em questão, ou dos liberais independentes dispostos a enfrentar de peito aberto qualquer assunto? Como observou Marcelo Coelho, nem todo dilema é produtivo do ponto de vista do raciocínio moral, e eventualmente, um dilema será mal colocado de forma a induzir uma transformação pragmática, por exemplo: Brasil: ame-o ou deixe-o. Ou seja, não seria uma covardia deixar que o exemplo “fale por si mesmo” para depois sugerir que ele está sendo mal interpretado?
Além da benéfica divisão do sujeito, expressa pela moral provisória da modernidade, devemos acrescentar a igualmente perturbadora intromissão do objeto patológico, que nos leva a pensar, naquele momento, naquele contexto específico, no exemplo do torturador. O caráter indissociável entre forma universal (ou indefinidamente generalizável) do problema e conteúdo particular de sua enunciação (ou o exemplo em si) é um dos motivos que já levaram Contardo, em outros momentos, a aproximar os juízos estéticos dos juízos morais, a desfazer da separação entre ética e moral, constituindo ainda uma regra de ação clínica óbvia para qualquer psicanalista: os exemplos nunca são meros exemplos. As ilustrações dizem sempre mais ou menos do que o texto. Quem dá o exemplo já está prescrevendo seu contexto de aplicação. Chegamos assim a uma espécie de critério não normativo de responsabilidade intelectual.
Marcelo Coelho percebeu com clareza este ponto ao passar da alternativa entre “laboratório-neutro” ou “política-interessada” para a oposição entre ficção e vida real. O caso do Estado de terror baseia-se no uso controlado do “exemplo” como norma e a tortura como “método de governo”. Ele também questiona a noção de generalização indicando que o exagero não é um mero erro cognitivo. Ele fornece vários “contra-exemplos” da generalização de dilemas ao absurdo como o canibalismo nos andes ou a tortura ao torturador. Lateralmente, ele infiltra a questão da “influência” da televisão, do poder de indução da realidade gerado pelos “meros exemplos”, agora considerados em sua vertente de conjecturas ficcionais “institucionalizada”. A ideia de explorar o raciocínio moral a partir de mundos possíveis não é indiferente ao tipo e conteúdo exato do “mundo possível” que é escolhido. Mais uma vez bate à porta a intrusão do político no interior do universo da ética.
A posição de Hélio Schwartsman, opondo historicamente, em matéria de ética, deontologistas e consequencialistas, acompanha a crítica de Safatle e Coelho mostrando como a posição experimentalista, principalmente quando ela adere ao consequencialismo “puro”, em filosofia moral, nos expõe a contra-exemplos: o “quase” desastre nuclear de Three Mile Island, o “improvável” mentiroso kantiano, o incesto “secreto” entre irmãos. O método das comparações, por trás dos dilemas presume que temos como resolver cognitivamente o peso dos valores. No entanto, como tornar comensurável a dor de cabeça em cinco milhões de pessoas ou duas pernas quebradas? Ou seja, o valor de aprofundamento moral dos dilemas requer que eles sejam pensados no quadro de identificações.
Contardo  responde a estas objeções reforçando a dimensão metodológica do dilema como formato padrão da experiência moral moderna. A tortura funcionaria por pressupostos: não se assalta alguém que você acha que não tem dinheiro, não há dilema se você não pressupõe que assaltar é errado. O potencial emancipatório dos dilemas, contra a alienação minorizante das cartilhas, ocorre porque a identificação induz o essencialismo moral. O homem-cartilha, que pretende universalizar aquilo que na verdade são apenas disposições particulares de gosto ou inclinação, evita os dilemas. O intrigante nesta objeção é que ela remete justamente à tradição kantiana-piagetiana que pretende encontrar regularidades, quando não universalismos morais, no sujeito (a famosa tese de que em todas as culturas e épocas partilham da geometria de Euclides e da moral de Kant):
“ (…) um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais.
Ou seja, que as disposições morais têm uma história na qual os exemplos são articulados, por identificação, com princípios definindo o ato moral. Os exemplos tem uma história, eles se inscrevem em uma narrativa que os ultrapassa como indivíduos. Dissociar exemplos (como a tortura) de seus contextos de uso (como a guerra ao terror); assim como desligar a ficção (da onisciência do torturador) da realidade (na qual a tortura é aplicada independente de sua eficácia) não é um erro diante de cartilhas universalistas, é um erro diante das próprias premissas assumidas.
Em sua reposta ao dualismo entre cartilhas e dilemas, Vladimir Safatle volta a insistir que a decisão moral individual sempre carrega mais e menos “homúnculos” do que gostaríamos.  Matar Bin Laden em nome da segurança ou da vingança é uma coisa, matar Bin Laden como exemplo, de que a regra tácita do jogo tolera a tortura e a ilegalidade, são duas situações diferentes. O efeito “força de lei” ou “dilema concreto” não se aplica apenas ao código jurídico e abstrato. Há um conjunto de consensos que definem a forma como aplicamos a lei e como julgamos seu conteúdo moral. Um bom dilema perturba nosso sistema de identificações, mas um dilema melhor ainda, nos apresenta um fragmento de real como impossível. Ele nos transforma não apenas quando o resolvemos, mas quando nós o enunciamos. Não seria este o caso da moralidade pós-convencional?
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP
Notas
[1] Safatle, V. (2012) Grande Hotel Abismo: para a reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes.
[2] Safatle, V. (2002) “Um ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano”. In Vladimir Safatle, Um Limite Tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. Unesp, São Paulo.
[3] Calligaris, Contardo Luigi (1993) Recherche sur la perversion comme pathologie sociale. La passion de l’instrumentalité, thèse pour le Doctorat Nouveau Régime en Lettres et Sciences Humaines, Université de Provence Aix-Marseille I.
[4] Claro que se pode dizer que esta é uma condição contextual.  Na Idade Média ou entre os Astecas uma afirmação cosmológica deste tipo pode adquirir alta densidade moral e política. Isso apenas comprova a ideia de que exemplos e enunciações são covariantes e que a tensão entre forma e conteúdo é um elemento essencial do dilema moral. Ontologia e ética não estão tão dissociados quanto gostaríamos.


FSP 21/02/2013 - 07h12

PARA QUE SERVE A TORTURA?

Contardo Calligaris

A tortura tem, no mínimo, três fins não excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3) tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de seus cúmplices etc. Será que a tortura consegue tudo isso?
1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador, a tortura funciona, sempre.
2) A Igreja Católica, por séculos, torturou pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos para que confessassem suas teologias desviantes.
Essa tortura era tão violenta quanto a que fora praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a "confissão" não evitava uma morte excruciante.
Será, então, que a tortura funciona para arrancar confissões?
Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais repreensível do que a besteira inicial.
Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes.
Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador. Elas fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a história delas.
Claro, se você insistir, ameaçando a criança com punições cada vez mais requintadas, a criança talvez "confesse", mas a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá culpado do jeito que o acusador pede. Em suma, a tortura para obter confissões é um desastre.
Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa prática, "racional", para aboli-la, além do horror que ela inspira em qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses vingativos).
3) Infelizmente, esse argumento "racional" só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do acusado. Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices, paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona.
O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os "interrogatórios" brutais do agente Jack Bauer, na série "24 Horas", funcionam. E, de fato, como lembra "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa --se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade.
Para se declarar contra o uso da tortura no caso deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática (como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor forma de educação moral.
Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o que?



FSP 26/02/2013 - 03h30

QUESTÃO DE MÉTODO

Vladimir Safatle

A filosofia moral, vez por outra, se vê confrontada com problemas mal formulados que gostariam de se passar por paradoxos astutos. Desmontá-los seria apenas um peculiar passatempo acadêmico, se eles não aparecessem periodicamente como premissas de raciocínios tortuosos na grande imprensa.
Tal astúcia constrói o que poderíamos chamar de "paradoxos morais de laboratório". Trata-se de pequenos paradoxos do tipo "podemos torturar alguém cuja confissão nos permitirá desativar uma bomba que matará dezenas de inocentes?", com todas as suas variantes possíveis.
Do ponto de vista da filosofia moral, não há exercício mais pueril do que procurar responder a tais inventivas. Pois elas pressupõem condições de laboratório, como "sei que o sujeito torturado sabe algo sobre a bomba", "sei que não há hipótese alguma de ter pego a pessoa errada", "sei que ele falará antes de morrer", "sei que a razão de sua ação é injustificável". Como ninguém mora em um laboratório, mas depende, no mais das vezes, da sabedoria da polícia ou desta "inteligência militar" na qual Groucho Marx viu a expressão mais bem-acabada de uma contradição em termos, tais condições nunca são completamente asseguradas.
Mas paradoxos dessa natureza têm como verdadeira finalidade fracionar a ação a fim de retirá-la de todo contexto possível. Boa maneira de não começarmos por perguntar como chegamos a essa situação.
Longe de ser uma enunciação neutra, essa é uma enunciação profundamente interessada. Ninguém coloca uma questão dessas de maneira inocente, como ninguém pergunta inocentemente se negros são, realmente, tão inteligentes quanto brancos ou se o Holocausto, de fato, existiu na dimensão normalmente descrita. Perguntar as reais motivações do enunciador é uma boa maneira de começar a desmontar o paradoxo.
Pode ser, porém, que o enunciador queira apenas insistir que, em situações excepcionais, a tortura aparece como o último recurso dotado de certa eficácia. De fato, se tortura fosse eficaz, as favelas brasileiras seriam um paraíso da paz. Melhor lembrar que a única eficácia realmente comprovada da tortura é sua força de corroer completamente o que restou das bases normativas do Estado. Pois se usamos a tortura contra o inimigo n° 1 da democracia, por que não usá-la contra o n° 2, o n° 3... o n° 54.327?
Ninguém pratica a tortura sem se transformar no verdadeiro inimigo da democracia. Por isso, seria o caso de perguntar: "Um Estado que recorre sistematicamente à tortura merece ser salvo? No que ele se transformou? Ele merece ser justificado diante de situações que, muitas vezes, ele próprio ajudou a criar?".




FSP 27/02/13 - 03:00

NO MUNDO DE JACK BAUER
Marcelo Coelho

Contardo Calligaris apresentou aqui, na quinta-feira passada, alguns argumentos interessantes a favor da tortura. Acho que sua intenção foi mais colocar o assunto em debate e menos defender sua adoção no Brasil.
Mesmo porque ela já existe, com resultados discutíveis do ponto de vista da segurança pública.
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona”, escreve Contardo. Os interrogatórios de Jack Bauer, na série “24 Horas”, também funcionam, repete o psicanalista.
Pode ser. Não me considero um “bonzinho”, desses que querem um mundo perfeito, utópico, ideal. Querer eu quero, mas sei que a realidade não corresponde a todos os sonhos que temos.
O problema, eu acho, é quando se quer ser “realista” demais. Um mundo sem tortura? Com Bin Laden e terroristas variados à solta? Loucura, dizem os pragmáticos.
O estranho é que uma perspectiva realista e pragmática, como a explorada pelo meu colega da “Ilustrada”, muitas vezes me parece puramente imaginária e ficcional.
O capitão Nascimento e o agente Jack Bauer são, antes de tudo, personagens de filmes. Por razões não apenas ideológicas, mas também de dramaturgia, suas torturas e sacos plásticos funcionam muito bem.
Contardo Calligaris já manifestou discordância quanto à tese de que a TV influencia as pessoas. Mas se eu começar a assistir a muitos filmes em que o herói é um torturador eficiente e simpático, também vou acreditar que a tortura funciona.
Se os americanos fizessem mais filmes em que a tortura não funciona (mas aí penso num mundo ideal, não o da Fox Filmes), provavelmente pensaríamos de outra maneira.
Só para ser um pouquinho realista, penso no seguinte. Um policial realmente acostumado a torturar suspeitos não passa pela experiência incólume. É de imaginar que a prática da tortura o torne insensível a uma série de outros limites morais, do tipo “não roubarás”, “não matarás”, “não sequestrarás criancinhas”.
Torturarás, ademais, pessoas sobre as quais pesam suspeitas não tão fortes assim. Não sei se os cidadãos terminariam mais seguros com 300 Jack Bauers agindo por perto.
É que a tortura tem outra função, além das apontadas por Contardo Calligaris em seu artigo. Ele fala em dar prazer ao torturador, em obter confissões, em conseguir informações. Uma quarta função me parece importantíssima.
Trata-se de estabelecer um regime de terror de Estado. Não é apenas o terrorista quem está exposto à tortura. O vago simpatizante da causa, o oposicionista pacífico, o irmão, o parente, o filho, o vizinho, estão sob ameaça também. Numa ditadura, prender e censurar nunca é suficiente: a tortura é a verdadeira punição.
Para finalizar, Contardo levanta o célebre argumento da “bomba-relógio”. Copio a sua versão.
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. [...] A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”
Não sei. Este é mais um caso em que a ficção fala mais alto do que a realidade.
Sou contra a tortura, como sou contra o matricídio e o canibalismo. Agora, suposições extremas não faltam. Suponha que sua mãe enlouqueceu, entrou numa creche com uma escopeta e está matando bebês aos punhados. Você é policial e ela está na mira do seu revólver. Você faz o quê?
Suponha que você está viajando com seus colegas de escritório, o avião cai nos Andes e você só sobrevive se matar um deles e comê-lo. Ele fará provavelmente o mesmo com você, se você deixar. Você faz o quê?
Ora essa. Eu mudo o canal da televisão.
De resto, o argumento da “bomba-relógio” tem outros problemas. O tempo também corre a favor do torturado. Ele tem apenas uma hora de tormentos para se manter em silêncio; pode mentir, ademais.
Outra pergunta. Que tal pagar o resgate? Também funciona, em geral.
Não é impossível pegar o sequestrador depois. Já o torturador vai continuar a estrela do filme.
Ali Soufan, agente do FBI especializado em interrogar membros da Al Qaeda, escreveu um artigo no “New York Times” contestando toda a versão de Hollywood quanto à descoberta de Bin Laden.
Diz que autoridades do governo Bush mentiram abertamente sobre o sucesso de técnicas de tortura, apenas para justificar sua adoção. Será que Ali Soufan está mentindo? Quem sabe seja o caso de torturá-lo também.


FSP, Ilustríssima, 03 de março de 2013

 

GENEALOGIA DA MORAL

Helio Schwartsman


O debate sobre a tortura mostra quão pouco sabemos de nós mesmos

RESUMO Debate entre colunistas desta Folha reacendeu a discussão sobre as questões éticas da utilização da tortura. Sob o ponto de vista de duas matrizes de sistemas éticos -deontológica e consequencialista-, as ponderações de cada um dos autores denota quão paradoxal é a construção de nossas convicções morais.

É DIFÍCIL A vida do ser humano. Levamos centenas de milhares de anos para aprimorar a ética e, quando procuramos sistematizá-la, quebramos a cara, já que as tentativas de fazê-lo invariavelmente levam a paradoxos. Faço essa consideração a propósito da controvérsia sobre a justificação moral da tortura em que se meteram alguns de meus colegas colunistas da Folha e me junto a eles na balbúrdia.
Foi Contardo Calligaris quem deu início à celeuma, lançando, em sua coluna na "Ilustrada" de 21 de fevereiro, de forma meio provocativa, uma variante do dilema conhecido como "problema da bomba-relógio": "Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?".
Vladimir Safatle e Marcelo Coelho aceitaram a provocação e responderam a Calligaris com artigos bastante interessantes. Na terça passada, o professor da USP criticou, em seu texto semanal na página 2, o que chamou de "paradoxos morais de laboratório" aos quais acusou de não informar nada e esconder interesses nem sempre confessáveis.
No dia seguinte, Coelho, na "Ilustrada", foi mais ou menos na mesma linha, afirmando que esse gênero de experimento mental combina muito mais com a ficção do que com a realidade, na qual não devemos admitir nenhum tipo de tortura.
Paradoxalmente, eu concordo com todos eles e também discordo, em proporções parecidas.
Receio que, para entender melhor o que está em jogo, tenhamos de traduzir a polêmica para o chamado filosofês.
SISTEMAS ÉTICOS Fazendo uma simplificação exagerada da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, têm como expoentes Platão (429-347 a.C.) e Immanuel Kant (1724-1804).
Para os dois autores, são os princípios que importam. Valem incondicionalmente regras como "não matarás" ou "não mentirás", porque estão amparadas pela ideia de justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.
No outro extremo dos sistemas éticos está o consequencialismo, defendido por intelectuais comoJeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Em resumo, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que acarretam. É preciso dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso de Bentham (conhecido como o pai do utilitarismo), o que interessa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula "o maior bem para o maior número de pessoas".
O argumento da bomba-relógio pode nos deixar em dúvida porque apela a nossas intuições consequencialistas. Se torturar um indivíduo nos faz salvar cem pessoas, ficamos com um saldo líquido de 99 vidas, mesmo que o suposto terrorista morra no processo.
O problema tanto com as éticas deontológicas como com as consequencialistas é que, se tomadas muito ao pé da letra, levam a situações que desafiam nosso senso de justiça. O dever de ser honesto para com todos, por exemplo, me obrigaria a revelar a um assassino o lugar onde sua presa se esconde.
O próprio Kant foi vítima desse paradoxo de laboratório. E caiu na esparrela. Após ter sido provocado por Benjamin Constant (1767-1830), o filósofo de Königsberg publicou "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor aos Homens", um dos mais estranhos textos da história da filosofia, no qual confirmou que não temos o direito de mentir para ninguém, nem para assassinos e outros celerados que nos ameacem a vida.
A situação dos consequencialistas não é muito mais confortável. Se só o que importa é produzir o maior bem possível para a maioria das pessoas, então o médico poderia matar o paciente saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que necessitavam de transplante. De forma análoga, o Estado estaria autorizado a torturar não apenas terroristas mas também seus familiares para demovê-lo de seus projetos funestos.
MECANISMOS É claro que filósofos são sujeitos espertos e, tendo percebido esses problemas, se puseram a elaborar mecanismos para contorná-los. Foi assim que surgiram propostas inventivas, como o consequencialismo de regras, o consequencialismo em dois níveis e as metaéticas contemporâneas, sem mencionar as éticas da virtude e as que pendem para o contratualismo.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit, em seu monumental "On What Matters", chega mesmo a propor uma interpretação que torna Immanuel Kant um consequencialista. Mas, se filósofos são bons em imaginar soluções, são ainda melhores em levantar objeções. Até o momento, não existe (e provavelmente jamais existirá) uma teoria que satisfaça a todas as partes.
Centremo-nos nas críticas ao consequencialismo, pois foi o que levantou o problema da tortura.
Um dos principais pontos fracos dessas éticas é o problema da falta de informação. Outro filósofo da atualidade, Daniel Dennett, exemplifica bem a questão com o que chamou de "efeito Three Mile Island". Em 1979, nessa localidade no Estado da Pensilvânia, ocorreu o pior desastre nuclear da história dos EUA, quando uma sucessão de eventos levou ao derretimento parcial do núcleo de um dos reatores. Houve vazamento de radiação, mas não se registraram mortes. A pergunta é: o incidente teve resultado positivo ou negativo?
À primeira análise, ninguém qualificaria um desastre nuclear como bom. Mas, considerando que não houve vítimas e que o ocorrido contribuiu para reformular os protocolos de segurança e tornar as usinas muito menos perigosas, essa ideia já não parece tão absurda. Um espírito de porco, porém, poderia afirmar que o incidente, ao nos empurrar para matrizes energéticas mais poluentes do que a nuclear, provavelmente foi responsável por alguns casos extras de câncer, o que reduziu o bem-estar da humanidade. O mundo é um lugar complexo demais para imaginarmos que seremos capazes de considerar todas as variáveis relevantes.
Outra dificuldade é que não é tão simples encontrar uma moeda corrente que permita intermediar as contas necessárias para fazer o consequencialismo funcionar.
Como observou a filósofa Patricia Churchland, "ninguém tem a menor ideia de como comparar a leve dor de cabeça de 5 milhões de pessoas com as pernas quebradas de duas pessoas, ou as necessidades de dois filhos contra as de cem crianças com paralisia cerebral das quais não somos parentes na Sérvia".
Nesse sentido, não dá para deixar de concordar com Vladimir Safatle e Marcelo Coelho quando afirmam que o paradoxo moral fora de contexto não pode servir de modelo para situações reais. Quantas vezes na história da humanidade o cenário da bomba-relógio de fato se materializou? Eu arriscaria dizer que nenhuma. E, mesmo que tivesse acontecido, que garantia teríamos de que todas as informações relevantes foram computadas? Será que entre as crianças que morreriam no atentado não estaria o próximo Hitler?
MORAL Sam Harris resume bem as coisas quando diz, em "The Moral Landscape", que o consequencialismo é muito mais uma afirmação sobre o status da moral do que um método para responder a problemas éticos específicos.
Daí não decorre que os paradoxos de laboratório sejam uma completa inutilidade. Eles oferecem uma janela perfeita para que perscrutemos nossas intuições morais, que podem ser bastante informativas, tanto do ponto de vista da filosofia como dos da psicologia evolutiva e da própria biologia.
O psicólogo Jonathan Haidt explora bem esse tipo de questão. Analisemos um dos paradoxos que ele propõe.
Julie e Mark são irmãos. Eles estão em férias da universidade, fazendo uma viagem pela França. Uma noite, sozinhos num bangalô à beira da praia, decidem que seria legal e divertido se fizessem amor. Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, e Mark resolveu que usaria também uma camisinha, só para garantir. Os dois fazem sexo e gostam da experiência. Combinam de mantê-la em segredo e jamais repeti-la. O que você acha disso? O que eles fizeram é correto?
A esmagadora maioria das pessoas pensa que não. Muitos sentem até um mal-estar visceral ao ler a descrição. Ninguém, entretanto, é capaz de apontar o que há de objetivamente errado na experiência dos irmãos, já que ela não produziu nenhuma espécie de dano para ninguém.
Desse pequeno paradoxo e da forma como as pessoas reagem a ele já podemos extrair "insights" valiosos sobre a origem da moral -que carrega muito de emocional, como, aliás, já apontara David Hume (1711-1776)- e sobre o lugar do incesto em nossa psique (ao que parece, ele provoca mais repulsa do que desejo).
Jonathan Haidt, porém, vai mais longe e, valendo-se de várias famílias de investigações com base em paradoxos, propõe uma genealogia completa da moral, que seria composta por seis sentimentos básicos: proteção, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade (pureza). Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. O mapa ético de cada indivíduo seria uma combinação de diferentes proporções desses ingredientes.
Evidentemente, a teoria de Haidt está longe de ser um consenso. Ela recebeu muitas e variadas críticas, algumas bastante pertinentes. O objetivo, contudo, era apenas tentar demonstrar que os paradoxos podem ser produtivos -mesmo que não sejam capazes de nos oferecer um manual de conduta.
Aliás, o interessante nessa história toda é que, quanto mais nos embrenhamos nessas reflexões, mais precário parece o edifício lógico no qual sustentamos as convicções morais que expressamos com tanta veemência.


FSP 07/03/2013 - 03h04

DILEMAS E CARTILHAS

Contardo Calligaris

Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?
Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.
Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.
Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui vai:
1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro no bolso.
2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).
3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere que assaltar é errado.
4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg --no mínimo, os "Essays on Moral Development".
5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.
6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais tentam arregimentar as crianças --nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.
7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.
8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a
John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.
Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.
Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc. Etc.
10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.
11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.


FSP 12/03/2013 - 03h30

ALGUMAS DIFERENÇAS

Vladimir Safattle

Em sua última coluna ("Dilemas e cartilhas", "Ilustrada"), Contardo Calligaris levantou uma série de objeções interessantes a respeito dos problemas indicados por mim e por Marcelo Coelho sobre sua maneira de insistir em certos paradoxos morais. Talvez esta seja a ocasião de levantar dois pontos que reflexões sobre filosofia moral não podem negligenciar.
Primeiro, a discussão sobre a eficácia de determinadas ações não pode sustentar-se na limitação artificial de suas consequências. Nesse sentido, falar em eficácia da tortura é tão racional quanto perguntar-se sobre a eficácia de um remédio contra dor de dentes, mas que infelizmente provoca ataque cardíaco.
Tomemos o exemplo das torturas (de eficácia duvidosa, diga-se de passagem) feitas para encontrar e matar Bin Laden. O que elas produziram? Notem que o verdadeiro objetivo nunca foi matar Bin Laden, mas transformar os EUA em um "lugar mais seguro". Nesse sentido, tais torturas apenas deixaram o verdadeiro objetivo ainda mais longe.
Antes, os cidadãos norte-americanos viviam em um país cujos governantes não temiam recorrer a torturas, execuções extrajudiciais, quebras de liberdades individuais e vazios jurídicos, quando entendiam que o país corria perigo, mas precisavam fazer isso em silêncio. Hoje, eles vivem em um país que não vê problema em declarar abertamente que faz tudo isso, como se esse fosse um mal menor diante do verdadeiro problema.
Assim, além da insegurança provocada pela Al Qaeda, agora os norte-americanos devem levar em conta a insegurança provocada pelo seu próprio governo, envolto em um estado de exceção permanente.
Segundo ponto: a enunciação de um "paradoxo moral" não pode negligenciar a experiência histórica a ele normalmente associado.
Durante décadas, "paradoxos" do tipo "você torturaria alguém com informações que poderão salvar a vida de seu filho" foram usados como a premissa maior de argumentos do gênero: "Da mesma forma que um pai deve proteger seu filho, governantes devem proteger seu povo; logo...".
Ignorar que a enunciação desse paradoxo porta uma experiência histórica dessa natureza não é moral. Esse é o problema de pensar questões morais de maneira abstrata, negligenciando a maneira com que certos enunciados circulam na história.
Diga-se de passagem, nunca entendi porque os interessados em paradoxos morais no Brasil raramente colocam problemas do tipo: "Alguém que certamente será torturado, provavelmente até a morte, bate à porta de sua casa pedindo ajuda. Caso aceite, você colocará em risco a tranquilidade de sua família. O que fazer?".



FSP 28/02/2013 - 03h02

YOANI E AS FALSAS ALTERNATIVAS

Contardo Calligaris

Deveríamos recusar todas as alternativas --sempre, por princípio. Imagine que alguém diga "Se você pega o preto, perde o branco, e, se você pega o branco, perde o preto" e insista: "Então, qual será? Preto ou branco?". Quase sempre, eu responderia que existem, no mínimo, 50 tons de cinza e imediatamente devolveria a pergunta: "Por que razão escusa você tenta me acuar a escolher entre preto e branco?".
Somos crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista sempre uma saída mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua maioria, as alternativas nos seduzem e funcionam, justamente, quando elas exaltam nossa falsa fé em soluções que não sejam totalmente perdedoras.
Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa "alienação" diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao exemplo do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".
Basta pensar um instante para constatar que a alternativa é furada, visto que, se eu decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida --vou perder também a bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu cadáver.
De maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente furada no Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a bolsa com docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos mate, pegando, com a bolsa, nossa vida também.
Em suma: escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa "Passa a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não signifique "Passe a bolsa E a vida, E ponto" --como dizem os bandidos, "Você perdeu geral".
O exemplo de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer um que tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um bandido, interessado sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre nós.
A política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma alternativa desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual deveríamos escolher entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas (liberdade de opinião, de culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa privacidade respeitada etc.) e, do outro lado, uma nova justiça social, que acabasse com miséria e fome.
Eu mesmo já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os países ditos socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia "E a liberdade de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da fome, renunciar às liberdades burguesas fosse o preço necessário e, portanto, aceitável, se não módico.
Isso aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu pai. Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento no qual ele se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista, antifascista e anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam constituir uma alternativa.
Em geral, quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um aproveitador econômico e social (quer ser livre de perseguir seus interesses sem ter que se preocupar com os outros). E quem nos diz que só teremos justiça sem liberdade é um aproveitador político (quer que abandonemos nossas liberdades de modo que ele possa se eternizar no poder sem oposição). Essas duas espécies de aproveitadores se valem.
A alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa ou a vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu mundos sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos, corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.
Ora, na ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, houve pessoas para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela criticar a falta de liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome na ilha?
O fato é que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos.
Nota. Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana passada, "Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua coluna nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir Safatle, na página 2 da Folha, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.



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