segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pedro Casaldáliga - carta pastoral 2/8

Fonte:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigrejaparte2.htm

Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social

(parte II/8)



PANORÂMICA SÓCIO-PASTORAL

Torna-se praticamente impossível, por enquanto, dar uma estatística do contigente humano a que habita o território da Prelazia.

Os dados do IBGE para todo o município de Barra do Garças, no recenseamento de 1970, apontam uma cifra de 28.403. Entretanto a estimativa da população total, segundo os "Dados estatísticos do município de Barra do Garças, MT" (Secretaria municipal de Educação e Saúde, 23 de março de 1971), é de 52.000. Para o município de Luciara, o Censo de 1970, do mesmo IBGE, assinala o número de 5.332 habitantes...

A estimativa aproximada de toda a população flutuante ao lado da população relativamente fixa. (Pode-se considerar tônica de todo o setor humano da região, excluído o indígena, a instabilidade habitacional.)

A Maior parte do elemento humano é sertanejo: camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí..., ou passando por Goiás. Desbravadores da região, "posseiros". Povo simples e duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração anterior, com a rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro, e os quatro "trens" de cozinha carregados numa sacola.

Adauta Luz Batista, filha da região e protagonista da história local, se refere a eles com este significativo depoimento: "Acostumados com a aspereza da vida agreste, desprezados pela esfera dos altos poderes, ludibriados na sua boa fé de gente simples, eles vêem os seus dias, à semelhança das nuvens negras, sempre anunciando um mau tempo. Ele (o sertanejo) é a vítima da ganância alheia, da inconsciência dos patrões, da exploração dos trêfegos políticos que na região aparecem de eleição em eleição para pedir voto e mais que tudo isto, da sua própria ignorância. É o homem que comete muitas das vezes um crime, porque embargando-se-lhes o direito, só lhe resta a violência. Esse infeliz, sobejo das pragas e da verminose, vive na penumbra de um futuro incerto.

"Indiferentemente a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só existem dois direitos: o de nascer e o de morrer. O produto de seus esforços somado ao de seus sacrifícios, vai aparecendo lentamente nos grandes armazéns das vilas, ou numa cabeça de gado a mais nas fazendas circunvizinhas. Uma doença, uma boda, uma viagem, podem acabar com toda uma vida dolorosas poupanças. O sertanejo nunca conheceu a lei do protesto, das greves, do direito ou do uso da razão. Todo o seu cabedal histórico está dentro das quatro paredes de um mísero rancho e na prole que aparece descontroladamente. Desfaz as suas profundas mágoas entre um e outro copo de cachaça, ou num cigarro de palha, cujas baforadas se encarregam de levar bem longe a infelicidade que ele tem bem perto". (Da "pesquisa Sociológica" realizada pelo professor Hélio de Souza Reis, em São Félix, durante o ano de 1970).

Os indígenas constituem uma pequena parte dos moradores. Os Xavante: caçadores, fortes, bravos ainda faz poucos anos quando semeavam o terror por estas paragens. Receosos. Bastante nobres Os Carajá: pescadores, comunicativos, fáceis à amizade, festeiros, artesãos do barro, das penas dos pássaros e da palha das palmas; moles e adoentados, particularmente agredidos pelos contatos prematuros desonestos com a chamada Civilização, por meio do funcionalismo, do turismo e do comércio: com a bebida, o fumo, a prostituição e as doenças importadas. Os Tapirapé: lavradores, mansos e sensíveis; mui comunitários e de uma delicada hospitalidade.

A várias tribos agrupadas dentro do parque Nacional do Xingu seriam oficialmente virgens se beneficiaram de um certo isolamento, depois de sofrer maior ou menor deportação. Foram porém afetadas por presenças e atuações discutíveis.

O restante da população está formado por fazendeiros, gerentes e pessoal administrativo das fazendas latifundiárias, QUASE SEMPRE SULISTAS DISTANTES, como estrangeiros de espírito, um pouco super-homens, exploradores da terra, do homem, e da política. Por funcionários da FUNAI e de outros organismo organismos oficiais, com as características próprias do funcionário "no interior". Por comerciantes e marreteiros, motoristas, boiadeiros, pilotos, policiais, vagabundos, foragidos e prostitutas. E principalmente por peões: os trabalhadores braçais contratados pelas fazendas agropecuárias, em regime de empreitada. Trazidos diretamente de Goiás ou do Nordeste, ou vindos de todo canto do país; mais raramente moradores da região, que neste caso são comumente rapazes. (Muitos dos peões passam a ser moradores da região após se "libertar" do serviço das fazendas.)

Para uma apreciação pastoral do elemento humano da Prelazia seria preciso distinguir as diferentes faixas de população que acabo de anotar.

É interessante reconhecer aqui um trecho da apreciação que faz sobre o racismo na região a citada " Pesquisa sociológica" : "Há uma série de degraus na consideração racistas das pessoas: Sulista-sertanejo (nordestino); Branco-Preto; "Cristão"- Índio. O Sulista fala em "essa gente", "esse povo", "aqui nunca viram, não sabem nem...", "são índios mesmo", etc... O índio não é considerado gente pelo sertanejo. Ninguém confia em índio. Expressões sintomáticas: " O governo nos trata como carajá". Quando um índio atua, reage, se comporta "normalmente", o comentário é: "... que nem gente", " feito gente"... "Fulano tem cabelo bom", "sicrano tem cabelo ruim":... o branco é considerado superior e tem cabelo liso, logo o cabelo liso é bom, superior; e o cabelo pixaim é ruim, inferior, por se negro, considerado raça inferior...".

Há umas constantes de conduta, mais ou menos comuns em todos os moradores desta região, derivadas da situação ambiente (clima, distâncias, mobilidade). Outras constantes talvez poderiam se considerar patrimônio comum da alma brasileira.

O povo da Prelazia, mais estritamente tal - o sertanejo - é o povo nordestino depois, de alguns anos - e até muitos - de vida retirante, e havendo incorporado à sua vida os condicionamentos da região.

É um povo de admiráveis virtudes básicas: a hospitalidade universal, espontânea, sem preço: levando mesmo à filiação adotiva. Uma hospitalidade que se sente e se pratica como dever natural. A Abnegação. "O sertanejo é antes de tudo um forte", disse Euclides da Cunha. É um forte de espírito. A resignação, quando não for fatalismo e passividade. Uma resignação de última instância que a gente adivinha como sendo um abstrato de esperança teologal. O sentido religioso da vida, do universo. A maleabilidade, a capacidade de admirar, de escutar, de aprender. Uma profunda vida interior: de experiência, de silêncios, de reflexão - mesmo - elementar, de saudável astúcia. A simplicidade: uma pureza de espírito que se revela entre nos "pecados" e "crimes". A coragem frente a natureza brava, contra o "destino" e a injustiça permanente, no total abandono sócia. (Um posseiro - moço novo - ameaçado de morte pelos poderes do latifúndio e com a perspectiva de deixar órfãos 7 filhos, crianças, expressava-se assim: "Confio em mim; e confio em Deus. A vida que eu tenho, eles têm. Eles têm o medo que eu tenho... Deus quando dá filhos confia nele mais do que no pai... Eu não vi pai na minha casa!"

É um povo religioso. Acredita em Deus, sem discussão. Com uma fé primitiva, entre o "terror de Deus" e a gratidão mais sentida. Aquele "graças a Deus", tirando o chapéu e com os olhos levantados, é todo um símbolo. As promessas são cumpridas fielmente de geração em geração. Tudo vem de Deus. Diretamente. As "causas segundas" ou a secularização seriam para esta gente uma presunção temerária, uma monstruosa heresia. Toda desgraça é um castigo de Deus. Deus é um instrumento mágico. Pode-se até prescindir dos meios naturais: "Com fé em Deus..."

Transcrevo o julgamento, para ser meditado, da "Pesquisa Sociológica" do professor Hélio: "Os homens dos sertões brasileiros, ainda que batizados, foram e ainda são abandonados pela Igreja. São cristãos esparramados por estes sertões infindos, que passaram anos sem ver cara de padre, a não ser no tempo das desobrigas. A Igreja parece ter doado a atitude da classe dominante, que considera o sertanejo um sub-homem, sem direitos. E por analogia, um cristão de 2ª classe. E hoje deparamos com o catolicismo das promessas, dos santos e dos espíritos: um verdadeiro sincretismo religioso, onde a ignorância e as superstições florescem viçosamente".

O povo pratica, com zelo quase fanático na materialidade do ato, (com visível distância espiritual, em muitos casos, por parte dos homens e da gente nova), as características "rezas", "bênçãos", "novenas", guarda de inumeráveis dias santos e ritos vários (nas doenças, nos encontros, no trabalho, no enterros, nos mil momentos da vida; até no jeito próprio de colocar as balas no revólver...).

A superstição (assombração, benzeção, mitos, feitiço, messianismo, fatalismo) domina profundamente a alma deste povo, mesmo quando encoberta por uma capa externa de conscientização, de machismo ou de modalidade.

A desobriga sacramentalizou sem evangelizar, sem edificar Igreja. Os sacramentos são mais uma "benção". Procura-se o batismo dos filhos como uma saída automática do paganismo, como um salvo-conduto e até como um remédio. Pede-se até batizar os filhos já mortos. O crisma é apenas uma nova oportunidade de arranjar padrinhos: duvido que uma dúzia de pessoas de toda a região pudesse dar sua idéia certa do que realmente a Confirmação. A eucaristia é ignorada. A Missa é uma reza. Quando o padre passava, nas desobrigas, eram "batizados" sobre o altar os santinhos e as imagens. E escutava-se com fé, mas sem poder entender. E aquela era a oportunidade do encontro, dos noivados fulminantes, dos batizados, de casamento "no queima" (nota 3)das festas e das bebedeiras, das brigas e tiros também. O casamento "no padre", "pela Igreja", "religioso", é reconhecido como o verdadeiro matrimônio, porém aceita-se com a maior naturalidade o simples casamento civil, durante anos, ou o amigamento, e se "largam" marido e mulher com uma freqüência preocupante.

O sacerdote, o padre batiza e casa, traz remédios, dá carona, sabe muito. É diferente. Está de passagem. É respeitado, até o medo. (O povo conheceu muitos padres "bravos"). E quase sempre é um estrangeiro. Certamente esta imagem do padre, na Prelazia, está-se modificando, e essa mudança questiona e compromete a fé do povo.

A Moral sofre particularmente pelas leis primárias de vingança - hereditária muitas vezes, verdadeiro ônus familiar -, da justiça tomada por própria mão; pela valentia e pela embriaguez freqüentíssima. (Ao longo da estrada e em todo canto de rua surgem os botecos de pinga. O maior comércio da região é a cachaça). A infidelidade conjugal. A fragilidade da família, uma sexualidade entre primitiva e mórbida, tropical e de compensação, abalam também constantemente a Moral. A prostituição é praga. De São Félix têm-se feito cálculos e juízos alarmantes. O "Pingo" - cabaré local - funciona em plena cidade para escândalo das famílias e dos menores e para ameaça da saúde e da segurança pública. O mesmo acontece em outros povoados da região. A maioria das "raparigas" já foram casadas; são "largadas" do marido. A idade prematura com que as moças se casam - as que não se casaram antes do 18 anos se consideram ou são consideradas "coroas", feita exceção das estudantes - pode ser uma explicação fundamental do caso.

O fatalismo e a irresponsabilidade se conjugam com um habitual preguiça tropical que não é possível qualificar de "defeito moral", já que está condicionada pela desnutrição, pelo clima, pelas doenças endêmicas, pela falta de perspectiva social.

O mesmo fatalismo, sócio-religioso, explica o medo em falar a verdade e em reclamar os direitos mas elementares. (A alienação política e social é extrema. Segundo a referida Pesquisa local de São Félix, 42% ignora o nome do Prefeito; 80%, o do Governador; 79%, o do Presidente da República. À pergunta "o que acham dos políticos?", 33% respondeu que, "não conhece esta gente, não se preocupa com isto, não tem opinião formada, não tem paixão por isto".) Não se fala, por que nunca se pôde falar; porque as represálias - da política ou no comércio - são automáticas. "Pobre não tem vez". "Peão não é gente". "É fuá desse povo"... O Juiz de Direito vive as centenas de quilômetros e viajar a Brasília ou a Cuiabá supõe uma boa fortuna e boa influência.

A injustiça dominante, consubstancial à única estrutura conhecida, solo e suor da própria vida durante gerações, impossibilitam até mesmo a concepção da Moral como Moral cristã, a Nova Lei de Cristo, o Mandamento Novo.

A partir dos casamentos "no queimo", ou pela imposição do noivo por parte dos pais, ou por causa da notável diferença de idade entre o homem e a mulher, ou pelo absoluto despreparo fisiológico, psicológico, sociológico, pedagógico e pastoral dos cônjuges, a família está em fácil quebra.

A situação da mulher, em geral, é humilhante. Ela nem decide, nem se apresenta, nem pode reclamar. O homem não é gentil com ela.

Falta ternura.

Certamente não há planificação familiar nenhuma, nem "paternidade responsável". Tem-se um filho por ano. A mulher deixa de ter filhos porque envelheceu ou porque - foi "operada", já numa extrema precisão.

A educação dos filhos é ainda na base do "cipó", do grito, do respeito e obediência inapelável, sem diálogo. Os filhos de criação é uma figura habitual neste interior, e cujas traumas psicológicos, profundos, não são reconhecidos e no futuro da vida dificilmente serão superados.

As famílias se desagregam facilmente: por separação conjugal, por motivos de serviço, por viagens, por uma inconsciente força de destino ou de aventura - que em última instância revelam sempre a inexistência da verdadeira família e uma pré-estrutura social desmantelada. O pai não tem onde ganhar, talvez; ou não possui terra. Os filhos mais crescidos, por falta de fontes de trabalho "têm que se virar" longe de casa. Quem sai "para se tratar", em Goiânia, ou em Brasília, ou em Mineiros, ou quem foi espoliado no lugar por curandeiros ou "práticos" desonestos, desequilibrou fatalmente a fraca instabilidade familiar.

O retirantismo do povo sertanejo, e a instabilidade habitacional, familiar, total, dos peões flutuantes, colocam a Igreja local um interrogante angustioso na hora de concretizar a Pastoral em termos de comunidade de Fé e de Caridade, estável, acompanhada, promovida. Como se faz "comunidade de base" com um povo em constante dispersão?

Com respeito aos fazendeiros - que normalmente não moram na região - e aos gerentes e pessoal administrativo das companhias latifundiárias - que moram aqui com intermitência - a ação pastoral é praticamente impossível, sempre que não se aceite o poder de opressão social que eles encarnam; sempre que não se queira amancebar a Missa, esporádica, com a injustiça permanente, e a presença do padre - da Igreja - na sede da Fazenda (nos seus teco-tecos, nos seus refeitórios, nos seus escritórios paulistas ou gaúchos) com a ausência do Evangelho e da Justiça no conflito dela com os posseiros e nos barracões, nas derrubadas e na vida toda dos peões escravos.

Isso é o que a gente pensa depois de três anos de vida e de luta. Ajudar a libertação dos oprimidos é o meio mais direto e eficaz de contribuir para a libertação dos opressores. Nem todos "poderão" entender esta atitude. É uma opção dolorosa, de pobreza, de risco e de "escândalo" evangélico...

Outro setor da visão pastoral da Prelazia diz a respeito à vida e ao trabalho ecumênico. O Ecumenismo do sertão (do interior, de modo mais geral) mereceria um planejamento à parte.

A Prelazia tem apenas algum grupo da Igreja Adventista do Sétimo Dia, alguns membros das Novas tribos, principalmente, vários núcleos pentecostais - reduzidos - da Assembléia de Deus. Estes últimos, carismáticos, integristas e bem unidos com "os irmãos" conseguiram uma certa gozação por parte dos católicos "festivos" e uma natural consideração do povo. Entre o pastor pentecostal - e outros ministros, em menor grau - e nós, as relações são de respeito pleno e até de amizade. Porém não há, por enquanto, condições de trabalho ecumênico entre as comunidades, na fé, no culto; nem sempre na promoção humana, quando esta atinge os limites de uma luta pela justiça. O crente pentecostal é mais passivo ainda que o católico, na sua total confiança para no Deus que salva, e é mais desencarnado e espiritualista.

A falta de nível cultural e de conscientização sócio-política afetam gravemente as relações ecumênicas.

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3- Expressão popular para indicar um casamento improvisado, resolvido na hora. 


~ Gregory Colbert

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