quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Casaldáliga: Para os pequenos, o Incra; para os grandes, nada



Publicada em: 05/08/2012

O bispo emérito de São Felix do Araguaia, Pedro Casaldáliga, se declarou favorável à saída dos que chamou de \"intrusos\" de Marãiwatsede


Da Reportagem

Aos 84 anos, o bispo emérito de São Felix do Araguaia, Pedro Casaldáliga, não reúne mais forças para acompanhar na linha de frente o desenrolar da disputa envolvendo posseiros, fazendeiros e índios xavante de Marãiwatsede.

A voz cada vez mais miúda, quase aos sussurros, e as severas limitações provocadas pelo mal de Parkinson, restringiram o raio de sua sempre combativa atuação. O testemunho crítico dos descaminhos fundiários do Araguaia, porém, mantém o conhecido vigor.

Em entrevista concedida ao DIÁRIO, Casaldáliga falou sobre o que chamou de “deportação” dos xavantes, ainda na década de 1960, e se declarou favorável à saída dos “intrusos”, grandes ou pequenos.



DIÁRIO – Depois de quase duas décadas de disputa judicial, a desintrusão de Marãiwatsede nunca esteve tão próxima. Como o senhor vê a polêmica em torno deste desfecho?

CASALDÁLIGA - Desde o início, temos sido claros e acho que certos: a terra é dos índios xavante. Todos os não índios que entraram ali sabiam, estavam seguros, de que a terra era indígena. Mas os pequenos, iludidos, respaldados por políticos interesseiros, achavam que os índios não voltariam. Pensavam: já foram embora faz tempo e não irão voltar. Era isso que lhes diziam os políticos, comerciantes e fazendeiros, que aproveitavam e há 20 anos continuam aproveitando o pasto e a madeira da região.



DIÁRIO – O que pensa sobre o destino a ser dado aos ocupantes não indígenas?

CASALDÁLIGA - Os intrusos que, apesar de saber a verdade, confiaram na palavra dos políticos, devem ser atendidos pelo INCRA, desde que sejam clientes da reforma agrária. Devem ter direito à terra que sobra no Brasil e em Mato Grosso. Aos grandes, nada. Quando algum deles fala de indenização, me dá vontade de chorar de vergonha. Eles depredaram quase tudo, inclusive um símbolo do posto da Mata. Cadê a mata que havia por lá?



DIÁRIO – Tendo chegado à região na década de 1960, como avalia o episódio da remoção dos Xavantes?

CASALDÁLIGA- Foi uma autêntica deportação. Em 1963 foram uns poucos e, em 1966, a maioria. A nossa região, destinada pelo governo federal ao latifúndio, tinha que limpar o máximo possível da presença indígena. Foi um processo bastante comunicado no exterior e que coincidiu com a abertura da Amazônia para os incentivos fiscais. Numa região tão pouco habitada, se dava uma luta grande, que foi se espalhando para o resto da região.



DIÁRIO – O senhor ainda testemunhou a presença de algum núcleo xavante na área da Suiá Missu?

CASALDÁLIGA – Nós chegamos aqui apenas em 1968, quando a remoção já havia ocorrido. Mas fomos testemunhas de sinais da presença dos indígenas. Havia certos lugares com pedras amontoadas de modo especial, áreas de roça feitas pelos índios, eles ainda vinham todos os anos para procurar material para seus arcos e flechas, tinham seus mortos enterrados ali e sentiam que era uma terra sua. Alguns deles, inclusive, nascidos no coração da Suiá Missu, como é o caso do cacique Damião.



DIÁRIO – Já se passaram 20 anos desde a promessa de devolução da área aos Xavante. O que levou o processo a se arrastar por tanto tempo?

CASALDÁLIGA - Esse é um caso em que se implicaram todas as forças vivas. Virou paradigmático. Na ECO-92 a Eni-Agip prometeu de palavra, e de palavra apenas, que devolveria a terra aos Xavante. Uma terra já reduzida, porque se os xavantes fossem reivindicar tudo o que era indígena, seriam necessárias três ou quatro Suiás Missu. Então se iniciou o processo de invasão da área.



DIÁRIO – Vivendo na região, o que presenciou neste momento?

CASALDÁLIGA – Foi uma invasão planejada. Os fazendeiros, políticos, comerciantes, todas as pessoas que tinham interesse nesta área nova da Amazônia Legal, estimularam a invasão. E o argumento era muito simples: se os índios recebessem a terra, todos perderiam, enquanto que, se a terra ficasse com pequenos lavradores, mais cedo ou mais tarde ela estaria nas mãos dos grandes.



DIÁRIO – O governo de Mato Grosso ofereceu áreas em um parque estadual aos Xavantes em tentativa de permuta com a área de Marãiwatsede. Como viu esta proposta?

CASALDÁLIGA - Em primeiro lugar, e para classificar a proposta com certo respeito, diria que se trata de uma ignorância suprema. Ignorância dos direitos fundamentais dos povos indígenas e da Constituição. Em segundo lugar, é uma subserviência aos interesses dos grupos que criaram esta situação.

DIÁRIO – Um grupo xavante dissidente concordou com a proposta.

CASALDÁLIGA - Foram cooptados alguns índios para respaldar os intrusos. Tudo isso se deu porque um indígena xavante virou vereador e, entrosado com os políticos da região, defendeu a transferência para o parque do Araguaia.

DIÁRIO – A desocupação de Marãiwatsede, com a remoção das famílias que hoje vivem na área, não irá gerar um grande problema social?

CASALDÁLIGA - O problema social já existe. Na mentalidade do povo simples, sempre vem a pergunta: porque não dão terra para os índios e para os posseiros? Sempre que se trata de lutas de indígenas com o branco, é sempre algo difícil aceitar que há outros povos, com outras culturas, com outra economia. Nós temos pedido que o Cimi comece a trabalhar também com a população envolvente, para que esta adquira uma consciência nova do direitos dos que se chamam minorias. Têm que aprender a conviver, para que os índios não sejam apenas tolerados.



DIÁRIO – Se houver a desintrusão, os xavantes receberão uma terra muito diferente da que deixaram há 40 anos. Como imagina esta nova fase?

CASALDÁLIGA – Os xavantes vão precisar de uma assistência técnica permanente e muito compreensiva para adaptar as mentes e os corpos a um novo tipo de trabalho. Terão que tomar consciência de que são um movimento popular, são forças populares e fazer aliança com outras forças populares. Os grandes fazem isso muito bem com seus iguais. E abrir os olhos frente a essa sociedade do consumo, que afeta sobretudo a juventude dos povos indígenas.


DIÁRIO – E o risco de conflito?

CASALDÁLIGA – Os intrusos vêm falando que haverá sangue. E eu tenho direito a temer que alguns partam para a vingança. Seria ingenuidade não contar com esse risco. Uma vez feita a desintrusão, as forças de segurança irão embora. Não vão ficar mais do que quatro semanas. E ficará o povo. Já estão queimando pastos, mataram duas cabeças de gado queimadas, já têm xingado os índios e a prelazia também, falando aos jornalistas que é tudo culpa nossa. Creio que ficará aquela insegurança. É difícil imaginar que não queiram partir para algum tipo de reação.

LEIA TAMBÉM

Terra em transe 
Posseiros: “Vão ter que matar muita gente aqui” 
Dono de silos vê prejuízo de R$ 1 milhão 
Advogado garante que o processo é uma fraude 
Índios: “Nossa força é o papel”, diz cacique 
Área da aldeia é carente em água e alimentos 
Índios não querem área do estado 
Casaldáliga: Para os pequenos, o Incra; para os grandes, nada 
Histórico - Marãiwatsede

Nenhum comentário:

Postar um comentário