PARTE 10/10
Análise compreensiva da realidade mato-grossense
Roberto Rossi
A gente tem que lutar para tornar possível o que ainda não é possível. Isso faz parte da tarefa histórica de redesenhar e reconstruir o mundo (Paulo Freire)
Sebastião Salgado (Trabalho em Moçambique)
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X. Reação da sociedade
A mais bela de todas as certezas é quando os fracos e desencorajados levantam suas cabeças e deixam de crer na força de seus opressores (Bertold Brechet)[1].
“(...) onde há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (Foucault, 1979)[2].
Constatações
A conjuntura é de retração e de fragmentação. É tempo de acumular forças, educar e organizar as bases da sociedade para uma nova etapa de construção do projeto libertador. É tempo de desenvolver o diálogo entre os diferentes movimentos e redes a fim de fortalecer o poder de negociação com os centros de poder.
Recentemente o Instituto Humanitas publicou, em sua revista IHU On-line[3], uma análise dos movimentos sociais brasileiros na visão de diferentes pensadores. Maria da Glória Gohn, por exemplo, constata que os movimentos sociais do século XXI são distintos dos das décadas de 70 e 80, embora alguns “quadros de suas assessorias sejam herdeiros daquelas”[4]. Com esse mesmo raciocínio, Rudá Ricci entende que o ideário dos anos 80 se esgotou, e, a partir dos anos 90, os movimentos sociais perderam a energia e força moral para impor uma nova lógica política. Para ele, os movimentos sociais “acabaram por se fechar em suas pautas específicas e construíram fortes estruturas organizacionais voltadas para si, e não para a sociedade como um todo”. Adverte que a dificuldade de ação dos movimentos sociais gira em torno da superação do particularismo. “Ainda estamos vinculados às carências, o que dificulta o salto para a luta por direitos universais, por uma nova lógica de tomada de decisões públicas. E isto acaba sendo o obstáculo para a articulação”. É o que observa também Gohn, nos anos de ascensão, os movimentos sociais “lutavam para ter ‘direito a ter direitos’ (...), eles não eram voltados apenas para si próprios, olhavam para o outro”. Todavia, Ricci reconhece que ainda existem movimentos sociais que lutam por direitos universais. Ele cita o movimento ambientalista, o qual mantém as características iniciais: “sua força vem da mobilização social, pensando direitos e regras gerais, são pluriclassistas e ainda não se partidarizaram concretamente. Pela própria natureza, pensam projetos de desenvolvimento e do Estado”[5].
Segundo Pereira, “muitos movimentos perderam sua força e capacidade de gerar conflitos. Para que um movimento possa realmente exercer seu potencial emancipatório, é necessário que haja uma tensão entre movimentos sociais e democracia”[6].
Numa perspectiva mais ampla, Bava observa que a sociedade está perdendo o “imaginário de transformação social” e, com isso, não se discutem mais projetos de mudanças. Nesse contexto, assegura, os movimentos sociais estão fragmentados e também encontram “dificuldade de defender propostas de transformação social”[7].
Algumas lideranças que atuam nos movimentos sociais entendem que vivemos um momento de crise de mobilização política. O resultado é a dificuldade para articular lutas de forma expressiva, mobilizando pessoas e instituições. As metodologias são diferentes, cada um fazendo do seu jeito, prejudicando a articulação. Muitas organizações sociais estão preocupadas apenas com suas questões internas, sua estrutura e burocracia. Observam que as políticas sociais compensatórias e cooptações mais ou menos explícitas das organizações sociais e movimentos populares impendem uma reação à altura dos grandes desafios sociais, políticos e econômicos que afetam o povo brasileiro. Dessa forma, fica descaracterizada a proposta histórica gestada nos últimos 40 anos pelo conjunto das lutas populares e forças sociais transformadoras que sonhavam democratizar profundamente o país.
Além disso, os movimentos sociais viveram experiências extremas de criminalizam de suas legítimas lutas e de suas lideranças.
No entanto, os movimentos sociais e os grupos populares, mesmo assim, resistem e se organizam. A novidade no Estado é a criação de uma pluralidade de fóruns, grupos de mulheres, associações camponesas, fortalecimento das organizações indígenas, quilombolas, sem terra, ribeirinhos, retireiros, morroquianos.
Houve avanços na discussão de políticas públicas para erradicar o trabalho escravo. Outra ação importante foi a mobilização em vista das ações da Assembleia Popular. Na Assembleia o debate focalizou o projeto popular e temas importantes, como os direitos ambientais, sociais, civis, políticos, econômicos e culturais. O propósito é manter essas conquistas históricas e organizar a luta por novos direitos. Nesse sentido, vale destacar o surgimento de novas identidades sociais relacionadas à etnia, à ecologia, ao gênero; a compreensão da terra para além da terra em si mesma, mas como território, espaço de reprodução social, cultural e religiosa; os movimentos populares procuram reinventar suas formas de organização e resistência; avanço das mulheres na discussão das questões de gênero; o avanço de experiências agroecológicas e projetos sustentáveis através das experiências de economia solidária, agroecologia, feiras coletivas de comercialização de produtos sem o uso de agrotóxicos, o cuidado para não se perder as sementes crioulas e tradicionais, agricultura familiar.
Estratégias necessárias
- Estudar, pensar criticamente a realidade e denunciar as injustiças e desigualdades, assim como os fatores que as originam e sustentam.
- Criar o novo no interior do velho sistema, inaugurando novos modos de consumir, de produzir, de comercializar, de poupar, trabalhando pela transformação pessoal e das relações interpessoais e sociais.
- Recentrar a economia no Ser Humano como ser-relação, e não como indivíduo absoluto. Daí a necessidade de refletir mais sobre o conceito de Economia Solidária, cujo objetivo é a reprodução e manutenção da Vida como sentido primeiro da atividade econômica.
- Reorientar a produção de bens e serviços para as necessidades da vida, em vez da produção para o consumo excessivo de uma minoria.
- Desenvolver novas formas de organização social que supere a estrutura hierárquica que caracteriza os partidos, os sindicatos e as igrejas; formas orgânicas, em que cada membro se empodere para apreender o saber e assumir a responsabilidade de levar a termo o que lhe cabe de modo eficaz.
- Democracia: criar novas formas de exercício da cidadania em que a democracia seja de fato participativa.
Conclusão
A grande verdade é que só vence aquele que continua, aquele que persiste, aquele que tem esperança. Eu continuo cada vez mais com esperanças. Essa é a minha vitória (Pedro Casaldáliga).
As palavras de Casaldáliga nos remetem às palavras de Paulo Freire, para quem “a esperança não é um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e se luto com esperança, espero” (Freire, 1987)[8]. A esperança é para Freire um imperativo histórico. Sendo um imperativo histórico, a esperança se manifesta na prática. Não há esperança na pura espera, na imobilidade e na paralisia. Se nosso objetivo é a criação de outro mundo possível e melhor, sua construção tem que ser iniciada hoje. A desesperança, por sua vez, é esperança que perdeu o rumo. O nosso papel, então, é cuidar para que a esperança não se desvie e não se perca, caindo nas ilusões, no caminho mais fácil e seguro, na desesperança ou no desespero (Freire, 1992)[9].
Inspirado nas perspectivas de CASALDÁLIGA e de FREIRE, pois, é que ousamos propor uma leitura compreensiva da realidade mato-grossense. Reconhecemos que é uma leitura parcial, possível, inconclusa. Leitura/olhar feita desde um lugar sócio-histórico bem determinado e em vista de um projeto de sociedade que seja, de fato, inclusivo.
Somente reconhecendo o Outro semelhante a mim, eu e nós podemos viver em paz, e construir uma nova sociedade baseada em novas relações, mais justa e igualitária.
[1] http://www.andrenunes.com/page/8/
[2] Michel Foucault. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 241.
[3] IHU On-line. Movimentos sociais. Perspectivas e desafios. Edição 325, ano X, São Leopoldo, 19/04/2010.
[4] IHU On-line, p. 10.
[5] IHU On-line, p.0 5.
[6] IHU On-line, p. 24.
[7] IHU On-line, p. 16.
[8] Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 47 (versão digital).
[9] Paulo Freire. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 (versão digital).
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