segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Agricultura familiar: ainda é possível se diferenciar

CARTA MAIOR
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21188&boletim_id=1425&componente_id=23959


Economia| 01/11/2012 | Copyleft 

Agricultura familiar: ainda é possível se diferenciar

O governo brasileiro e os movimentos sindical e social têm adotado uma orientação semelhante àquela feita na França, na década de 1950, a favor de unidades agrícolas familiares de porte médio. A diferença é que aqui essa posição não é nem assumida nem reivindicada politicamente. Ao contrário, políticas públicas de desenvolvimento rural são justificadas em nome da parcela de famílias rurais pobres que, na prática, ficam à margem dos benefícios anunciados. O artigo é de Ademir Antonio Cazella.

A sociologia rural francesa e, por consequência, o modelo de desenvolvimento rural adotado na França subsidiaram, juntamente com outras contribuições empíricas e teóricas, o debate e a formulação recente de políticas públicas, em particular, de apoio à agricultura familiar no Brasil. Sem ter a pretensão de ser exaustivo nesta demonstração, citamos alguns autores e respectivas obras, que marcaram o debate brasileiro. Nos anos 1970, os estudos pioneiros de Maria Isaura Pereira de Queiroz, em especial o seu livro O Campesinato Brasileiro, influenciaram toda uma geração de sociólogos rurais. Sua tese de doutorado foi defendida em 1956 na École Pratique des Hautes Études e coincide com o período de efervescência da sociologia rural francesa, fortemente associada ao processo de modernização da agricultura, em curso naquele país desde o pós-guerra. No Brasil, o processo de modernização da agricultura levada a cabo pelos governos militares, a partir de 1964, passou ao largo das reflexões acadêmicas da nascente disciplina brasileira de sociologia rural.

Foi somente no início dos anos 1990 que estudos sobre o desenvolvimento rural auxiliaram na formulação de políticas públicas descoladas dos ideais modernizador e agroexportador. Em seu livro de 1991 – O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica –, José Eli da Veiga discute a modernização agrícola de alguns países contemporâneos que lograram melhores desempenhos econômicos. Para esse autor, que efetuou o essencial da sua formação universitária na França, o modelo francês de desenvolvimento agrícola é uma referência. No final do governo Fernando Henrique Cardoso, Veiga presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e algumas das suas ideias foram incorporadas, por exemplo, na formatação da política de desenvolvimento territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

A tese de Ricardo Abramovay – Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão –, publicada em livro em 1992, analisa as mudanças sofridas pelas sociedades camponesas da Europa Ocidental e a estruturação, via políticas públicas, de uma agricultura familiar integrada aos mercados, e também toma o caso francês como referência principal.

Na sequência, os dois volumes do livro coordenado por Hugues Lamarche ─Agricultura Familiar: comparação internacional ─, de 1993 e 1998, reafirmam a tese da superioridade da agricultura familiar em relação ao modelo de agricultura baseado no trabalho assalariado. Lamarche teve como colega de trabalho e principal referência teórica Henri Mendras, considerado o fundador da sociologia rural francesa e autor do clássico La Fin des Paysans (1967). Essa pesquisa comparativa internacional, coordenada por Lamarche, contou com a participação da professora Maria Nazareth Wanderley que, assim como Queiroz nos anos 1970, é uma referência incontornável na atualidade para os estudos sociológicos e interdisciplinares sobre o Brasil rural. 

Além da sua tese orientada por Mendras, destacamos para os propósitos desta demonstração seu artigo Raízes Históricas do Campesinato Brasileiro. Nesse estudo, a autora discute as principais diferenças entre o campesinato brasileiro e o modelo clássico europeu. Para Nazareth, o camponês brasileiro se diferenciaria do seu homólogo europeu por dois traços principais: i) ser historicamente bloqueado pela dominação (política e econômica) da grande propriedade; ii) dispor de mobilidade espacial graças à enorme fronteira de terras livres.

Esses e tantos outros trabalhos que se inspiraram na sociologia rural francesa auxiliaram, por caminhos diferentes, não só a reflexão teórica sobre os temas do desenvolvimento rural e da agricultura familiar no Brasil, como também a discussão de políticas associadas a esses temas. O aparato público cristalizado hoje no MDA iniciou sua formulação em meados dos anos 1990 e a coincidência desse processo com a discussão teórica sobre a agricultura familiar propiciou inúmeras trocas entre gestores de políticas públicas e teóricos do desenvolvimento rural e, em especial, da agricultura familiar. 

Pensamos particularmente nos funcionários e assessores técnicos do MDA que realizaram formações de mestrado e doutorado nas áreas de socioeconomia rural antes de se tornarem gestores de políticas públicas, além das inúmeras consultorias prestadas a esse Ministério por pesquisadores com formação em sociologia rural.

Passadas mais de duas décadas de um rico debate sobre a agricultura familiar brasileira, na atualidade, a questão que merece uma avaliação mais rigorosa refere-se à crise que o modelo francês de desenvolvimento agrícola vem enfrentando. Diversos cientistas sociais questionam a pertinência de ainda se qualificar esse modelo como sendo de natureza familiar.

Para entender a situação francesa atual, torna-se necessário recuperar, mesmo que brevemente, a sua trajetória histórica. Dos 2.300.000 estabelecimentos agrícolas de 1955 restam hoje pouco menos de 500.000. A modernização rápida e intensiva da agricultura no pós-guerra contou com uma importante aliança política entre governo e representantes do sindicalismo unitário da época, principalmente da sua ala jovem – Centre National des Jeunes Agriculteurs. A chamada cogestão do Estado e do movimento sindical das políticas públicas para a agricultura possibilitou, por exemplo, que se definisse, no final dos anos 1960, a unidade agrícola viável como sendo aquela com área superior a 22 ha e que empregasse dois ativos, de preferência o agricultor e sua esposa. 

Num contexto de profunda crise de abastecimento alimentar, diversas medidas foram adotadas para favorecer a estruturação de estabelecimentos de porte médio e facilitar a saída de famílias de agricultores com dificuldades para acompanhar o processo de modernização (pouca terra, idade avançada...). Os estabelecimentos inferiores a 15,5 ha não foram priorizados no acesso ao crédito agrícola e incentivos sociais foram atribuídos a agricultores prestes a se aposentar ou sem um sucessor com interesse em dar continuidade ao empreendimento familiar.

A tendência desde o pós-guerra tem sido o aumento contínuo do tamanho médio das unidades agropecuárias por meio da agregação de terras liberadas por famílias de agricultores que saem da atividade. A corrida pelo aumento das áreas produtivas ganhou um forte impulso com a associação das subvenções da União Europeia via Política Agrícola Comum ao tamanho do empreendimento. Esse sistema resultou numa disputa acirrada entre produtores para incorporar aos seus domínios todas as parcelas de terras que, por razões diversas, são liberadas no mercado. Os instrumentos criados para controlar a acumulação de terras não lograram o êxito esperado e as novas instalações na agricultura, tendo por base o modelo familiar de tamanho médio, encontram grandes dificuldades para se concretizar. 

A maior parte dos estabelecimentos é conduzida por uma única pessoa que executa os trabalhos graças ao uso de modernas tecnologias poupadoras de mão de obra, à prestação de serviços por empresas especializadas e ao recurso ao trabalho assalariado (permanente e temporário). O trabalho assalariado passou de um quinto em 2003 para mais de um terço do total do volume de trabalho empregado no setor em 2010. Tal situação tem propiciado diversos questionamentos sobre o futuro da agricultura familiar francesa. A noção de agricultura pós-familiar parece ganhar sentido para denominar “essas unidades que até pouco tempo eram definidas como familiares e que mantêm somente traços desse tipo de agricultura, quem sabe mesmo só a nostalgia”[1] .

Assim como no Brasil, um reduzido número de unidades produtivas é responsável pelo principal do valor da produção agropecuária. Entre os dois últimos Censos Agropecuários franceses, o grupo de pequenos estabelecimentos registrou o maior índice de redução do número de unidades produtivas, passando de 42% em 2000 para 36% em 2010. As cerca de 178 mil pequenas unidades produtivas, definidas em função do seu potencial produtivo estimado em valor da “produção bruta standard” e cujo teto está fixado em 25 mil euros, são responsáveis por apenas 2,8% do valor da produção. 

Lá, como aqui, não são poucos os que defendem que as políticas públicas para o setor devem se voltar para as unidades produtivas com melhor desempenho econômico. Mas como adverte Rémy, esses pequenos produtores, dentre os quais grande parte é de origem urbana (neorrurais), correspondem a um quarto das pessoas que se declaram ativas em unidades agrícolas, fornecendo 13,4% do volume total de trabalho no setor. Ademais, a contribuição social desses agricultores não pode ser negligenciada dada a sua proporção particularmente elevada nas zonas com restrições para a promoção de uma agricultura produtivista: áreas de montanhas e as que apresentam incidência de seca, relevo acidentado e menor fertilidade registram um maior número desses pequenos estabelecimentos agrícolas.

Mas o que essa discussão aporta para a reflexão do caso brasileiro? Dados do nosso último Censo Agropecuário revelaram que 73% do total de estabelecimentos rurais (3.775.826) são responsáveis por apenas 4% do Valor Bruto da Produção [2]. Para Alves e Rocha, a saída dessas famílias do setor agrícola é uma questão de tempo e políticas de caráter social devem ser priorizadas para esse público. Esse receituário é muito semelhante ao adotado na França pela política agrícola de cogestão há cerca de 60 anos. Ao contrário do que defendem esses autores, acreditamos, no entanto, ser possível operar de forma criativa a inserção produtiva de parcela significativa dessas famílias na condição de agricultor. Pouco conhecidos pelos gestores de políticas públicas, o destino desses agricultores − a maioria localizada na região nordeste, vivendo em situação de pobreza, com pouca terra e, por vezes, sem título de propriedade − é um aspecto chave do futuro da sociedade rural brasileira. 

Para que a inserção produtiva seja possível, mudanças de rumo precisam ser feitas nas principais políticas públicas de desenvolvimento rural. Pode-se continuar a trilhar o caminho de apoiar prioritariamente as grandes unidades agrícolas voltadas para agroexportação e os estabelecimentos familiares já integrados nos mercados, deixando em segundo plano as iniciativas de inserção produtiva das situações de pobreza rural. Ou, ao invés disso, fazer uma opção de médio prazo, visando à inserção social e produtiva desses agricultores familiares historicamente excluídos das políticas públicas.

Nossas análises precedentes sobre o desempenho e a capacidade do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) em beneficiar agricultores familiares pobres indicam uma clara orientação do Programa para atender unidades familiares com melhor desempenho produtivo. A modalidade de microcrédito do Pronaf apresentou resultados pífios com diversas evidências de que não se trata de uma linha estratégica dentro desse Ministério. Essa falta de ênfase ao microcrédito é reflexo, dentre outros fatores, das dificuldades que enfrentam os movimentos sindical e social em representar a diversidade social da agricultura familiar brasileira.

Esse panorama sugere que tanto o governo brasileiro quanto os movimentos sindical e social têm adotado uma orientação semelhante àquela feita pelos gestores de políticas públicas franceses na década de 1950 a favor de unidades agrícolas familiares de porte médio. A diferença é que aqui essa posição não é nem assumida nem reivindicada politicamente. Ao contrário, não sem frequência, políticas públicas de desenvolvimento rural são justificadas e demandadas em nome da parcela de famílias rurais pobres, mas que na prática ficam à margem dos benefícios anunciados.

Outro aspecto correlacionado a esse debate refere-se às políticas de acesso à terra por famílias de agricultores sem ou com pouca terra. O último Censo Agropecuário revelou uma situação no mínimo curiosa. Diferente do que tem acontecido em diversos países, no Brasil, o número de estabelecimentos agropecuários se manteve relativamente estável em relação aos censos anteriores. Essa estabilidade ainda precisa ser analisada e suas explicações decorrem de fatores complexos que ultrapassam os propósitos deste texto. A tese da profa Nazareth referente à maior mobilidade espacial do campesinato brasileiro compõe o leque das possíveis variáveis explicativas. 

As zonas de fronteiras apresentaram um aumento importante do número de estabelecimentos agrícolas. Outro fator estaria associado aos benefícios propiciados pelo acesso a diferentes políticas pelas famílias rurais, a exemplo da previdência social, bolsa família, Pronaf e reforma agrária.

Sobre essa última política, embora as fontes disponíveis apresentem controvérsias, dados do Incra/Sipra revelam que cerca de 1,2 milhão de famílias acessaram terras via políticas de reforma agrária até o final de 2011. Desde o início do governo Lula, o enfoque dado nessa área tem sido o de qualificar os assentamentos já constituídos, melhorando as condições de infraestrutura e de produção. Essa orientação parece colocar em segundo plano a criação de novos assentamentos. 

Num cenário internacional de crise e de incertezas sobre as possíveis alternativas socioeconômicas, pode-se questionar se abrir mão de forma prematura dessa política não representaria um equívoco. A opção por manter no meio rural, ou até mesmo ampliar, uma densidade significativa de unidades produtivas e, consequentemente, de pessoas ocupadas no setor agropecuário é um trunfo que o Brasil ainda dispõe por possuir terras e, principalmente, agricultores com acesso precário a esse recurso, mas com interesse em permanecer na atividade.

Para tanto, uma nova geração de políticas públicas de desenvolvimento rural precisa ser formulada. Dentre as possíveis alternativas, ações permanentes de reassentamentos de famílias (reforma agrária e crédito fundiário), que integrem as noções de reordenamento territorial e fundiário, microfinanças, pluriatividade (exercício de outras atividades remuneradas associadas à agricultura) e valorização do caráter multifuncional da agricultura familiar (segurança alimentar, conservação ambiental, manutenção de paisagens rurais, geração de novas ocupações...), se fazem necessárias.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA/CPDA/UFRRJ). E-mail: acazella@cca.ufsc.br

NOTAS

[1] Rémy, J. (2012). L’exploitation agricole: une institution en mouvement. Paris, Déméter 2013, p. 367, pp.357-384.

[2] Alves, E. e Rocha, D. de P. (2010). Ganhar tempo é possível? In: Gasques J. G.; Vieira Filho, J. E. R., Navarro, Z. (Org.). A agricultura brasileira: desempenho, desafios e perspectivas. Brasília, IPEA, pp. 275-290.

Nenhum comentário:

Postar um comentário