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Mãe de preso denuncia tortura na Cadeia Pública de Lucas
Por Keka Werneck, da Assessoria de Imprensa do Centro Burnier Fé e Justiça
A carta de quatro páginas escrita a mão que a empregada doméstica Maria, 47 anos, vai entregar hoje à tarde, dia 14 de novembro, à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Mato Grosso, denuncia mais uma vez que a prática da tortura é uma realidade rotineira nos presídios brasileiros.
Maria, que usou esse nome irreal porque teme ser identificada, tem um filho de 19 anos que cumpre pena na Cadeia Pública de Lucas do Rio Verde.
A cidade fica no Norte do Estado, um dos focos do agronegócio, especialmente soja e milho, e se orgulha do elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é de 0,818.
O IDH é um índice utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para classificar localidades como desenvolvidas, em desenvolvimento ou subdesenvolvidas. Levando em conta o IDH, Lucas é uma cidade desenvolvida.
A Cadeia em questão fica na periferia da cidade, um lugar pobre e no meio de uma mata, conforme explica Maria, que é analfabeta. Não foi ela que escreveu a carta. Foram os presos de uma das alas.
A primeira tortura que a carta denuncia é a superlotação. A Cadeia tem vaga para 140 detentos, mas está com mais de 250.
A outra tortura é alimentar. “Muitas das vezes nos fazem comer comida estragada”, diz um trecho do longo texto.
E, por fim, a carta expõe a tortura em si, física, que deixa hematomas por várias partes do corpo das vítimas. Quando as marcas ficam muito visíveis, diz a carta, a visita de familiares é suspensa, para não levantar revolta ou suspeita. Os presos, diz Maria, são tratados a socos e pontapés, muitas vezes até deixar a pessoa desacordada.
Pessoa é modo de dizer, porque, com seu sotaque belga, o padre Zeca Geeurickx, militante da Pastoral Carcerária e integrante da Comissão de Visita a Presídios do Fórum de Direitos Humanos e da Terra Mato Grosso (FDHT-MT), explica que presos não são tratados como pessoas e sim como bichos.
Maria conta ainda que, quando a promotora vai ao presídio, pede para tirar um representante por ala. Ela tenta investigar o que está ocorrendo na unidade. Quando a promotora vai embora, “a tortura recomeça”. Ou seja, quem fala apanha mais. Regra número 1 para manter a prática da tortura: impor à força a lei do silêncio.
“Aqui nós não temos direito de nada, até quando estamos apanhando não temos o direito nem de gemer, se gemer o espancamento é o dobro”, relatam os presos.
Maria conta que “eles tiram o preso que apanha e fica machucado para ir ao médico e ele não pode falar com o médico que apanhou, no caminho já vão comunicando que não é para falar nada”.
Outra tortura que a carta denuncia é que, para punir, alguns agentes prisionais fazem presos andar de joelho pela quadra por horas.
Só os primeiros nomes dos agentes denunciados são citados na carta: Lindomar, Alexandre, Flávio, Adriano, Liliane e João Bosco. Na opinião dos presos, essas pessoas precisam de tratamento, estão desequilibradas.
A carta indica que “na maioria das vezes o diretor é ciente de tudo e participa dos espancamentos”. Eles pedem a demissão do diretor, Jairo Nascimento.
A secretária adjunta de Estado de Justiça, Vera Araújo, diz abominar a prática da tortura, mas, em defesa dos servidores públicos que atuam em presídios, ela diz que tem muita gente comprometida também trabalhando de forma corretíssima. Porém, Vera reconhece que denúncias de tortura e outras práticas condenáveis não são incomuns. “Infelizmente”, lamenta a secretária.
A tortura psicológica também deve ser levada em conta. Os presos chegam a ser ameaçados de morte, caso não se comportem.
Maria tem três filhos. Só o mais novo é que foi preso e condenado a 9 anos e 4 meses de prisão por tráfico. Vai ter que cumprir em regime fechado 2 anos e 8 meses. Já cumpriu um ano. A mãe, porém, afirma que o rapaz é apenas usuário, que foi preso injustamente.
Mas isso não importa. Para o padre Zeca, “toda pessoa humana, mesmo que tenha feito o mal, seja o mal que for, pode ser até um homicida, ela deve ter seus direitos humanos garantidos”. Inclusive é o que preconiza a Constituição brasileira. Isso não quer dizer impunidade. Mas também não quer dizer que contra o preso pode tudo, até porque isso inviabiliza qualquer programa de recuperação.
Essa visão do padre Zeca faz com que militantes de Direitos Humanos sofram críticas. A sociedade costuma anuir que bandido bom é bandido morto.
Porém o secretário Adjunto da Secretaria de Estado de Justiça, coronel Castro, está de acordo com a lógica humanista. Segundo ele, pena de morte, como existe em algumas regiões dos Estados Unidos, por exemplo, conforme pesquisa científica, não reduz o risco da criminalidade.
Para o padre Zeca, justamente pelo fato das penitenciárias não valorizarem os presos como pessoas humanas, é que se tornam escolas do crime. “Os chamados ladrões de galinha…que estão ali por causa de um delito de menor poder ofensivo costumam sair qualificados para cometer crimes de grande porte. Porque acabam aprendendo que é tão fácil roubar, assaltar banco, se aproveitar disso e daquilo…é fácil ganhar dinheiro…a prisão, como ela está, é sempre um centro que corrompe, uma instituição falida. Devíamos tentar fazer de tudo para que pequenos crimes fossem punidos através da liberdade acompanhada. Presos, contidos nesse sistema prisional absurdo, se revoltam contra quem tortura, contra toda a sociedade e o sistema judiciário”.
A prática do crime é um assunto de grande complexidade e atrai muita gente para essa vida complicada. Mais de 11.200 homens e mulheres estão presos em Mato Grosso porque, ao invés de seguir as leis, resolveram, por um motivo ou vários, desvirtuar-se.
É muita gente para poucas vagas (5.760).
O filho de dona Maria cumpre pena em uma ala com outros 46 detentos. Só no Carumbé são mais 1.200 presos. Na Penitenciária Central do Estado, a Pascoal Ramos, vivem outros 1.900 mil.
O caso de Lucas já foi levado ao Ministério Público da cidade e agora à OAB.
Dona Maria diz que esse é mais um pedido de socorro urgente. “É preciso agir rápido. Imploro até para a misericórdia de Deus. Já vi tantas marcas de violência, principalmente na costela do meu filho. Já vi várias covardias estranhas que eu não vou contar, senão eles vão saber quem eu sou e eu tenho medo. Já fiz denúncia para tudo quanto é lado. Meu filho pode morrer, mas vão ter que me matar também. O que não podemos é deixar de denunciar aquela cadeia. A gente vai fazer visita e fica no sol, na chuva, não tem uma cobertura se quer. A água de beber é sempre quente…uma falta de respeito…”
“Senhor juiz”, alertam os presos da ala 12 na carta, “estamos convivendo com torturas e maus tratos diariamente”.
O padre Zeca, que é da Paróquia Sagrada Família, não duvida disso. “Não tenho a menor dúvida de que estão dizendo a verdade”. Ele não sabe afirmar quantos casos desse tipo são registrados por mês em Mato Grosso. Nem o Governo do Estado sabe. Mas na Secretaria de Justiça tem uma ouvidoria que recebe reclamações constantes. (Fones para contato: 3613-8173 ou 9982-9845 ou 3613-8173 ou 9982-9845 e ainda 161. E-mail:sespen@justica.mt.gov.br. Ou ligar para: 3613-0938).
A denúncia pode ser anônima.
A secretária adjunta Vera Araújo disse que não conhece essa situação em específico da Cadeia Pública de Lucas. O coronel Castro, que ocupa o mesmo cargo que ela, disse o mesmo. Mas ambos afirmam que a assinatura de convênio com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos vai viabilizar a criação do Comitê Estadual de Enfrentamento à Tortura. O assunto será discutido no Conselho Estadual de Direitos Humanos.
Para Vera, coibir a tortura é difícil, até porque muitos se acham no direito de agredir quem está sob tutela do Estado, inclusive quem não é preso, como crianças e adolescentes órfãos.
Essa questão da tortura pode ser vista inclusive do ponto de vista psicológico, já que na infância muita gente apanha dos pais. Essa é uma forma de naturalizar a violência física. O agente que apanhou muito em casa pode achar que essa prática faz é bem ao invés de mal.
Outra dificuldade é que é natural do ser humano se adaptar às situações e muitos agentes prisionais ficam embrutecidos diante da rotina violenta nos presídios e passam a reproduzi-la. Conforme a secretária, acabam se tornando, filosoficamente, pessoas presas também.
Admitir que presídios no Brasil são depósitos de gente é um passo fundamental na direção da mudança.
Ontem, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, fez uma fala sobre isso que reverberou em todo o país. Ele qualificou como “medieval” o sistema prisional brasileiro. “Se fosse para eu cumprir uma longa pena em um presídio brasileiro, preferia morrer”, afirmou, durante uma palestra com empresários em um hotel na Zona Sul de São Paulo.
É claro, a sociedade conservadora acha pouco e bom agredir bandidos. Parte da opinião pública segue imediatista, prefere eliminar, do que reeducar.
Então, o que fazer com os presos que cumprem pena em Mato Grosso em cinco penitenciárias e 60 cadeias públicas, matar? Quem vai puxar o gatilho? O Estado faz, de certa forma, isso quando se omite?
Para o coronel Castro é preciso reforçar que o preso só perde a liberdade e não seus direitos humanos.
O Sindicato dos Servidores Penitenciários do Estado de Mato Grosso (Sindspen-MT) discute formas de condenar a prática da tortura. O presidente João Batista Pereira dos Santos, porém, estava em reunião na manhã de hoje e não retornou até o fechamento da matéria.
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