domingo, 11 de novembro de 2012

CARTA ABERTA AO SENADOR PEDRO TAQUES - MT - SOBRE O PROCESSO DE MARAIWATSEDE

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From: Giba Wataramy <wataramy@gmail.com>
Date: 2012/11/11
Subject: MEMÓRIA: CARTA ABERTA AO SENADOR PEDRO TAQUES - MT

CARTA ABERTA AO SENADOR PEDRO TAQUES - MT - SOBRE O PROCESSO DE MARAIWATSEDE

Excelentíssimo Senhor Senador Pedro Taques,

encaminho abaixo, a carta de denúncias que escrevi sobre o que venho
testemunhando ao longo dos últimos sete anos, a respeito do modo como
o processo das terras indígenas de Maraiwatsede vem sendo conduzido.
Essa carta foi lida também por outras pessoas, inclusive da Prelazia
de São Félix e advogada do grupo Vidir de Campinas, além de presidente
da Funai em exercício ao longo de parte deste processo. Decidi
encaminhá-la em aberto, para que outros tomem ciência dos graves fatos
que envolvem este processo e também para maior segurança, minha e de
outros envolvidos, bem como das informações.

Em anexo, encaminho também um arquivo com o escaneamento das páginas
de denúncia do comício em que foi incitada a invasão de Maraiwatsede
em 1992, com a transcrição da gravação dos discursos que foram
difundidos por rádio local, comprovando o envolvimento do governador
do estado, da Suiá Missu e do racismo como único argumento para
justificar a usurpação das terras que seriam devolvidas aos índios e
que foram sempre improdutivas. Como relato na carta, essa denúncia de
invasão desaparece do processo, que passa a julgar apenas se as terras
são indígenas, e considerar apenas o direito das pessoas que após esse
discurso invadiram as terras juntamente com latifundiários da região.
O mapa que também escaneei demonstra que os latifundiários reservam
para si as maiores partes das terras, usurpando apenas a pequena parte
de um gigantesco latifúndio improdutivo que seria finalmente devolvida
aos índios tirados dali num ato criminoso de profunda crueldade, em
1966.

Como afirmo em minha carta de apresentação do laudo, comecei esta
perícia numa posição imparcial, até porque me diziam que se tratava de
disputa entre índios e posseiros e eu tenho trabalhado com ambos tipos
de população, pelas quais tenho simpatia. Mas, os fatos que fui
verificando negaram esta versão e são tão repugnantes que seria
cumplicidade manter minha imparcialidade diante da omissão de todos.

Segue a carta abaixo e o arquivo com o escaneamento dos discursos em anexo.

Respeitosamente,
Inês Rosa Bueno
perita antropológica


Ao Excelentíssimo Senhor Senador Pedro Taques:

Escrevo a Vossa Excelência, com o intuito de informar sobre denúncias
graves que venho encaminhando às entidades governamentais diversas,
sem que lhes seja dada a atenção que deveriam ter por lei.

Inicialmente, essas denúncias começaram a se formar enquanto eu
exercia meu papel de perita antropológica para o juiz na Ação Civil
Pública 950000679-0, Terra Indígena Maraiwatsede, que tramitava na
Quinta Vara Judicial Federal do Mato Grosso, tendo o processo sido
posteriormente transferido para o Tribunal Regional Federal da
Primeira Região, sob número 2007.01.00.042821-5/MT. Nesse papel, e
por meio da leitura dos autos do processo, pude testemunhar uma série
de irregularidades praticadas pela própria Vara Judicial, que procurei
denunciar ao juiz, o Dr. José Pires da Cunha, sem jamais obter
resposta, ou sem que alguma providência fosse tomada. Em 17 de abril
de 2006, encaminhei meu laudo.

Sendo assim, continuei tentando encaminhar estas denúncias e nessa
interação, fui testemunhando ainda outras irregularidades, o que
demonstra que muito do que cerca este processo gira em torno do
intuito de impedir que a Justiça seja feita conforme a lei e a
Constituição, em nome de interesses particulares e circuntanciais. E
isso envolve diversos órgãos responsáveis por sua condução.
Copio abaixo, trecho da apresentação do meu laudo ao Juiz da Quinta
Vara Judicial Federal, Dr. José Pires da Cunha, em 17 de abril de
2006, em que discuto o papel da perita nesse processo, que como afirmo
de início, começa imparcial, mas não pode ser cúmplice de tudo que foi
testemunhado ao longo das investigações, inclusive quanto à omissão e
cumplicidade das autoridades responsáveis:

(...) Estes discursos foram feitos numa manifestação, no dia 20 de
junho de 1992, a partir das 14:00 horas, onde estavam presentes
agricultores sem terra, muitos dos quais trazidos de outras regiões
com patrocínio dos organizadores da manifestação, políticos da região,
que distribuíam mapas com localização de glebas apenas dentro das
áreas que acabavam de ser identificadas como indígenas, onde
reservavam para si mesmos as parcelas maiores em que instalaram seus
pastos e madeireiras. Foram também transmitidos através de rádio local
para toda a região, incitando a população a vir participar desse ato
de crime coletivo. Com a leitura dos discursos, ficará claro que nesse
momento não havia qualquer questionamento quanto à posse indígena,
argumento este levantado posteriormente, como justificativa torpe para
atos torpes, de conseqüências gravíssimas. O único argumento é mesmo o
repúdio ao índio, em nome de um suposto “desenvolvimento” e de uma
suposta “soberania nacional”. Anexo também algumas cópias de
fotografias da manifestação constantes dos autos do processo, bem como
cópia da denúncia deste fato encaminhada ao Dr. Célio Borja, Ministro
da Justiça, e Sr. Sydney Possuelo, presidente da FUNAI, em 26/06/1992,
pelo Centro de Trabalho Indigenista, que testemunhara o fato.
O próprio advogado da AGIP, afirma, conforme se verifica na página 267
dos autos:

“Muito ao contrário do alegado, foi a ré (AGIP) a única que
imediatamente exerceu seu direito de repulsa a essa ação coletiva e
ilícita, envolvendo colonos e até autoridades municipais e do próprio
Estado. Houve ação ilícita de algumas autoridades, e omissão criminosa
de outras, inclusive na esfera federal, que nada fizeram contra
semelhante invasão orientada e aliviada por autoridades públicas. Onde
estavam, na ocasião, as autoridades e governantes, Estadual e Federal,
e onde estavam os representantes do Ministério Público?”

De fato, nos autos consta cópia do boletim de ocorrência registrado
pela AGIP na Delegacia de Polícia em São Félix do Araguaia, com data
de 23/06/1992. No entanto, provavelmente a atitude de funcionários da
fazenda não foi coerente com essa postura da empresa, já que na página
7 da transcrição das gravações dos discursos de incitação à invasão, o
prefeito de Alto da Boa Vista diz o seguinte:

PREFEITO: “Quanto a essa área de ´reserva´ , pessoal, é porque ...
nessa negociação que nós fizemos com a fazenda, eles pediram para não
mexer aqui nessa área (atenção) pra não mexer nessa área, porque a
fazenda ainda tem muita coisa aí, tem gado, tem tudo! Aqui é um outro
título, que tem uns três proprietários – aqui é tudo da Liqüigás, mas
empresas diferentes – e eles, até o desfecho de tudo, eles quer manter
as coisas deles. Então, nós vamos respeitar, porque eles não vão mexer
com vocês! Já conversamos com o governador, o governador também não
vai mandar polícia!... Não tem nada, podem ficar tranqüilo.”

Em todo caso, se oficialmente houve denúncias de ambos lados que
reivindicam o direito à posse dessas terras, por quê os invasores, com
suas práticas lesivas ao patrimônio que neste laudo demonstro ser
público (uma vez mais se demonstra), continuaram lá, enquanto os
índios foram impedidos de entrar? Em meu ponto de vista de cientista
social, predomina aqui uma lógica regional, onde prevalece a fricção
interétnica, em sério prejuízo da lógica federativa.

Passo, então, primeiro ao histórico das terras – item 1, seguida pelo
contexto do processo – item 2, para depois apresentar, nos itens 3 a
6, as minhas denúncias contra instituições e profissionais envolvidos
na sua condução, quais sejam:
3. Quinta Vara Judicial Federal de Cuiabá e o Exmo. Sr. Dr. Juiz José
Pires da Cunha;
4. Ministério Público Federal, por seus representantes o antropólogo
Marco Paulo Schettini e o Procurador Federal Mário Lúcio Avelar;
5. A FUNAI;
6. Os Réus, por seu assistente de perícia Hilário Rosa e seus
advogados, Luis Alfredo Feresin de Abreu e outros:


1. Histórico de Marãiwatsede:

No final da década de cinquenta, enquanto o chefe de posto do SPI
encaminhava inutilmente denúncias de massacres dos índios Xavante de
Marãiwatsede para fins de ocupação de suas terras até por
estrangeiros, as mesmas foram vendidas ilegalmente pelo governo do
estado ao fazendeiro de São Paulo, Ariosto da Riva que, não
conseguindo explorá-las, depois se associa ao grupo Ometto, adquirindo
mais terras, que passam a somar oitocentos mil hectares, o que as
caracteriza como o maior latifúndio do mundo. A mão de obra não
remunerada dos índios recém contatados foi utilizada para realizar os
trabalhos iniciais nas terras, tais como abertura de pista de pouso,
picadas e pastos. Ao mesmo tempo, os índios recém contatados morriam
de doenças diversas, inclusive de malária ao serem colocados sobre uma
várzea alagada, após conflitos com outros trabalhadores ali presentes.
Em 1966, sem compreender exatamente o que acontecia, pois não falavam
português, por um acordo entre as Forças Aéreas Brasileiras, os
fazendeiros e a Missão Salesiana de São Marcos, os índios foram
encostados em pé, à parede de dois aviões, presos com um único cinto
de segurança em cada avião e – apavorados - transportados para as
terras da missão, a cerca de seiscentos quilômetros km de suas terras,
onde já residia um outro grupo de xavantes.

Os diferentes grupos de índios da cultura xavante se localizam em
aldeias distantes, geralmente por terem tido cisões no passado,
próprias da sua organização social, que leva grupos a dividirem-se e
tornarem-se inimigos, porém sem conflitos, pois cada um passa a ocupar
território diferente daquele de que se separou e evita encontros. Sem
levar nada disso em conta, o grupo transferido foi colocado junto de
outro que já estava sob cuidados da Missão de São Marcos. O que
surpreende, conforme notícia da época que anexo a meu laudo, é que
antes da chegada dos índios recém contatados e portanto, sem quaisquer
imunidades para doenças de não índios, havia uma epidemia de sarampo
em curso na Missão de São Marcos, e muitos índios contatados há mais
tempo que moravam ali estavam morrendo diariamente. Mas, num ato
genocida, o grupo recém contatado foi colocado entre eles. Nas
primeiras duas semanas, morreu um terço do grupo transferido. Isso fez
com que os dois grupos ali colocados juntos passassem a se acusar
mutuamente de feitiçaria e muitos indivíduos do grupo transferido
tentaram fugir, chegando a Maraiwatsede a pé, caminhando cerca de
seiscentos quilômetros, mas, eram levados de volta contra sua vontade
e seus esforços de caminhar essas longas distâncias.

Numa diáspora que durou quase três décadas, o grupo transferido foi
se fragmentando e migrando de aldeia xavante em aldeia xavante, sendo
sempre mal recebido, pois a situação a que estavam sendo sujeitos era
de hóspedes, já que sua casa é Marãiwatsede. Aos poucos, muitos foram
aprendendo português e o funcionamento de instituições e passaram a
reivindicar legalmente a devolução de suas terras, conforme previa a
Constituição de 1934 e constituições posteriores.

Enquanto isso, Maraiwatsede não passava de mais um latifúndio
improdutivo. Cito abaixo, outro trecho de meu laudo, que contém dados
importantes para algumas das denúncias que apresento aqui. Devo
corrigir a informação que se refere ao Movimento dos Sem Terra, pois
os trabalhadores rurais que aguardavam pela desapropriação da Fazenda
Bordolândia são da FETAGRI e não do MST, informação que vim a saber
posteriormente, pois na região todos se referiam simplesmente aos “sem
terras”:

Com o transporte nos aviões das FAB, as terras ficaram livres de seus
habitantes originais, mas mesmo assim o grupo Ometto, seu associado,
não obteve sucesso em sua exploração, apesar de todos os incentivos
fiscais e de todas as estradas, cujos custos correm apenas por conta
dos governos e dos impostos pagos por toda a população brasileira, e
não desses investidores aventureiros e desconhecedores das
características da região. Ariosto da Riva desfaz a sociedade, antes
da transferência dos índios, quando o grupo Ometto propõe um maior
investimento nas terras, o que não lhe interessa, e, ficando com a
parte das terras correspondentes ao que hoje é a Fazenda Bordon, a
vende a esse frigorífico. Hoje, elas são disputadas pelo Movimento dos
Sem Terra, que as considera também improdutivas, embora já estejam
também visivelmente desmatadas...

Esse registro sobre o visível desmatamento foi escrito no primeiro
semestre de 2006, referindo-se a observações feitas em dezembro de
2005. Essa observação será retomada adiante, quando relato fatos da
atuação do procurador do MPF, Mário Lúcio Avelar.

Finalmente a Fazenda Suiá Missu, maior latifúndio do mundo, acabou
sendo comprada pela empresa italiana, AGIP Petroli. A AGIP Petroli é
uma das empresas do holding da FIAT, da qual fazem parte diversas
multinacionais produtoras de sementes, insumos agrícolas, tratores e
máquinas agrícolas etc. Um engenheiro que trabalhava para o holding,
vendendo equipamentos, me conta que a Suiá Missu na verdade era apenas
um pretexto para desvio de Caixa 2. O latifúndio de aproximadamente
oitocentos mil hectares chegou a empregar no máximo setenta
funcionários. Segundo um peão que conheci num acampamento de sem
terras em Goiás me revelou, ele trabalhou naquela região, onde a Suiá
Missu era famosa como um lugar onde se praticavam muitas violências.
Em sua expressão: “O gerente ali, um italiano, inté cuspia na cara dos
peão. Ali morreu muita gente.” Esse peão conta que trabalhou, não se
lembra se em 1991 ou em 1992, em amplo desmatamento numa fração da
fazenda Suiá Missu, que tinha sido vendida ao fazendeiro de nome
“Romão”. Testemunha que durante esse desmatamento, encontraram num
local em meio à mata, muitas ossadas humanas. Recolheram apenas os
crâneos e com eles encherram “três sacos grandes”, que foram
escondidos em algum lugar da sede da Fazenda Suiá Missu. Os demais
ossos foram queimados, pois puseram fogo a tudo. A antropóloga
Patrícia Mendonça, coordenadora do estudo de identificação das terras
de Maraiwatsede em 1992, lembra-se que, de fato, enquanto sua equipe
estava fazendo os trabalhos de identificação, havia um desmatamento
grande em curso na fazenda desse senhor Romão.

Por pressão interna de apoio aos índios, que continuavam lutando por
suas terras, e por pressão de grupos italianos que denunciavam que uma
empresa italiana detinha terras indígenas no Brasil, foi feito
finalmente o estudo de identificação para devolução das terras aos
índios, em 1992. Em negociação com os índios, a coordenadora do
estudo, Patrícia Mendonça, obteve deles a cessão de terras já
ocupadas, inclusive a Fazenda Bordolândia, do grupo Bordon, outro
latifúndio improdutivo. Isso, levou à redução do território original
dos Xavante de Maraiwatsede, inicialmente a duzentos mil hectares.
Posteriormente, para fins de homologação, os Xavante foram convencidos
a ceder ainda o território onde se localizavam as aldeias mais antigas
e seus cemitérios, que foi desmembrado do mapa de identificação
original, pois ali havia posseiros mais antigos, cuja remoção seria
difícil. E também a sede da fazenda Suiá Missu foi cedida. Restou
finalmente para os Xavante, apenas uma área de 169 mil hectares
totalmente inabitada e sem produção de qualquer espécie.

Com o anúncio na Eco 92 e outras notícias de que as terras de
Maraiwatsede seriam devolvidas finalmente a seus donos (que delas, têm
apenas a posse, pois terras indígenas são terras da União),
organiza-se um pequeno movimento, baseado em argumentos racistas,
para impedir o retorno dos índios. Essa ação é articulada entre o
governador do estado do Mato Grosso em exercício, senhor Jaime Campos,
a fazenda Suiá Missu e políticos locais interessados em apoderar-se de
terras dentro do território, até então totalmente desocupado, que
tinha restado aos índios, e também de criar ali um município para se
fazer eleger. Com auxílio de rádio regional, um comício eleitoral foi
convocado. A esse comício, foram transportadas pessoas de outros
estados em ônibus pagos pelos políticos. Esse comício é também
transmitido por rádio local. Imediatamente, a antropóloga Iara Ferraz,
que havia participado dos trabalhos de identificação, junto com outras
pessoas, se deslocaram ao local, gravando todo o comício, fotografando
e obtendo cópias dos mapas que indicavam os locais que deveriam ser
invadidos e os que deveriam ser preservados. Os argumentos usados para
invasão são exclusivamente racistas: “Nós não queremos os índios de
volta!” Os miseráveis transportados para o comício são incitados a
invadir os locais indicados no mapa, preservando áreas que a fazenda
reservara para si (e depois vende) e áreas também dos índios que os
políticos e seus amigos tinham também reservado para si, por trás de
uma fachada de posseiros, onde instalaram madeireiras abrindo
clareiras que as imagens de satélite que anexei a meu laudo confirmam
serem de grande porte, ou seja, porte de grandes latifúndios.

Clareiras em continuidade constante com outras, pois toda a terra vai
sendo rapidamente desmatada. Em seus discursos, conforme citação no
início desta carta, insistem sobre a absoluta segurança da invasão, o
que os fatos posteriores confirmariam: jamais houve qualquer ação para
desocupação das terras e defesa do seu patrimônio natural, essencial
para a preservação da cultura do povo xavante e dois biomas contíguos
– de floresta amazônica e de cerrado. Não há ali qualquer autoridade
coerente com suas funções, que tenha poder para cumprir esse papel. E
pelo observado da ideologia regional, Constituição é letra morta, que
deve ser mudada no Congresso. O que vale são caprichos de pessoas
armadas.

Segundo a jornalista Liana Melo publica no jornal O Globo em 14/11/2010:
O Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
identificaram 68 fazendas em Marãiwatsede. Apenas 11,56% são
cadastradas e têm CNPJ acessível.

É interessante dar atenção a essa informação, divulgada pela própria
Funai, em novembro de 2010, registrando um dado de sessenta e oito
fazendas, o que contrasta com o número de sete mil moradores, que vem
sendo divulgado aleatoriamente na imprensa e não coincide com dados
das perícias fundiária e antropológica, nem de longe. Esse tema será
retomado quando eu tratar sobre o papel da FUNAI na história mais
recente de Maraiwatsede. Em seguida, cito mais um trecho de meu
laudo, assim como o laudo fundiário, encomendado porém ignorado por
juízes e procuradores:

Nesse ano de 2003, portanto cinco anos após o sobrevôo, ou seja,
depois de ainda mais invasões, a perícia fundiária verifica a presença
de 345 edificações residenciais e comerciais em torno de Posto da
Mata, com 798 habitantes. E não “milhares”, conforme alegam os
advogados ao longo deste processo, afirmando, por exemplo, na página
2187 dos autos: “onde estão assentadas mais de três mil famílias de
lavradores rurais”. Considerando que cada família tenha em média pelo
menos cinco membros, estaríamos então decidindo sobre o destino de
umas quinze mil pessoas, segundo esses senhores!

Concluindo, temos setecentos xavantes, ocupando uma estreita faixa de
suas próprias terras, enquanto outros quatrocentos aguardam a decisão
sobre este processo para voltar porque ali não cabem. Enquanto isso,
em todo o restante das terras, temos 798 posseiros tomando conta de
tudo! Não é a toa que tenham se recusado ao cadastramento com o INCRA:
“É muita terra prá pouco”... POSSEIRO!

Sugiro, tendo em vista a recusa desses ocupantes em cadastrar-se com o
INCRA, que esses dados da perícia fundiária sejam fornecidos ao órgão,
para fins de remoção dos ocupantes da área, caso assim seja decidido
neste Juízo.

Deve-se enfatizar que nem metade dos ocupantes da terra indígena em
2005, que a foi invadindo a partir da denúncia da primeira invasão
encaminhada ao MPF em 1992, era de fato de trabalhadores rurais sem
terra. A maioria era constituída por latifundiários da região que
tomaram para si outros latifúndios ali dentro.

No latifúndio intocável, improdutivo, quase cinco vezes maior do que
a área homologada para os índios, trabalhavam sob ameaça e
humilhações, setenta empregados. Mas, segundo afirmam os políticos em
seus discursos que incitam à invasão, nesse tempo, de posse ilegal por
uma multinacional italiana, “nós respeitamos a propriedade”. E os
argumentos são tão contraditórios, que logo adiante se fala em nome de
soberania nacional! Qual seria o entendimento de soberania nacional
que essas pessoas conseguem elaborar? Qual seria a compreensão do que
seja “muita terra para pouco índio”, que esses donos de diversas
terras gigantescas onde só habita gado, em artimanhas para se
apoderar de outras, conseguem pronunciar? São claramente argumentos
para confundir a plateia que trouxeram de ônibus desde outras regiões
para aquele comício. Valendo-se de e incentivando um histórico de
conflitos com os indígenas que antes ocupavam a região. Mas, esse tipo
de confusão predomina não apenas entre pessoas ignorantes e mal
informadas, manipuladas por estes senhores políticos.

Mesmo que os clientes de reforma agrária ali presentes tenham se
recusado a participar da lista de espera por reforma agrária que
comporta a tantos neste país; mesmo tendo cometido todos esses crimes
jamais julgados; o juiz lhes concede mais esse privilégio de terem sua
transferência garantida.


2. O Histórico do Processo

Em 1992, a antropóloga Iara Ferraz transcreve essa gravação dos
discursos de incitação, apresentando-as ao MPF e à Funai, juntamente
com as próprias fitas de gravação, as fotografias e os mapas para
orientação do que poderia ser invadido e do que já estava reservado. O
Ministério Público abre a ação civil, poupando o governador de estado
de indiciamento, embora fique claro pelos discursos e pelos fatos que
transcorreram posteriormente que ele foi um dos articuladores desse
crime. Comuniquei anos depois esse fato ao antropólogo Marco Paulo
Schettini, encarregado desse processo no Ministério Público Federal em
Brasília, bem como ao procurador Mário Lúcio Avelar, também
responsável, mas ambos ignoraram minha denúncia. O antropólogo
solicita carta registrada sobre isso, mas eu considero que um
funcionário do MPF, que recebe salário para exercer suas funções, não
precisa de carta registrada para avisá-lo de que não fez o seu
trabalho e que deve ler um material que tem em sua posse. Se quiser
fazer o seu trabalho. Mas, outros fatos que denunciarei adiante me
levam a crer que não. Quanto ao procurador, a atuação é ainda mais
lesiva aos interesses dos índios. É ativamente lesiva aos índios, e
não apenas por omissão e conivência, como se comprova quando chegarmos
ao relato de fatos que ocorreram com a ocupação da Fazenda
Bordolândia.

Até 1995, nada ocorre. Em 1995, os réus – AGIP Petroli e os grileiros
– dão entrada a outro processo, pelo qual contestam que Maraiwatsede
fosse terra indígena, embora eles mesmos em seus discursos de
incitação à invasão tivessem repetidas vezes dito que não queriam os
indios “de volta”. O processo de 1995 é anexado ao processo de 1992 e
o primeiro desaparece. Ou seja, não se fala mais na denúncia de
invasão das terras, mas passa-se apenas a julgar se Maraiwatsede seria
de fato terra indígena ou não. Mesmo nos meios de comunicação e em
todos as instituições, passa-se a afirmar que o processo teve início
em 1995, o que é uma inverdade. A ação civil pública por invasão das
terras é de 1992 e essa ação até hoje JAMAIS FOI JULGADA, e o
governador que participou de sua articulação jamais foi indiciado.
Enquanto isso, em Maraiwatsede, mais crimes vão se somando aos primeiros:

1. Conforme mostro por imagens satélites obtidas junto ao IBAMA, tanto
de 1992, quanto de 2004, as terras vão sendo rapidamente desmatadas,
formando grandes propriedades, visíveis pelas manchas de desmatamento
de grandes proporções, que aparecem nas imagens satélite de 2004, como
uma colcha de grandes retalhos correspondentes a latifúndios, colados
uns a outros. Até comporem atualmente a terra indígena mais desmatada
do território nacional. Isso, em área de transição entre cerrado e
floresta amazônica considerada essencial para a sobrevivência de ambos
biomas.

2. Um dos grileiros, em assembleia entre eles, declarou que queria ir
embora com a família porque aquilo era terra indígena e recebeu uma
rajada de quarenta tiros de metralhadora de exército, em plena
assembleia, diante de todos.

3. Destruição dos marcos de demarcação e placas pagos pela FUNAI.

4. Apreensão de carro do IBAMA que tentou entrar nas terras para
verificar denúncia de desmatamento, enquanto os funcionários tiveram
que sair a pé.

5. Ameaças de morte a funcionários da FUNAI e funcionários da FUNASA,
que atendem os índios em carros sem placas oficiais para não serem
identificados. Na verdade, já li ameaças de morte aos índios por
moradores da região publicadas em jornal de grande porte em Cuiabá e
eu mesma já fui alvo de telefonemas anônimos, fato que voltarei a
tratar adiante, pelo que envolve de participação da Vara Judicial.

6. Venda de madeira ilegal.

7. Mais recentemente, criação de gado e produção de soja, ambas
ilegais, associadas a grupos internacionais.

8. Instalação de três imobiliárias nas terras, que passaram a
vendê-las ilegalmente.

9. Há ali venda de drogas;

10. Há ali venda de bebidas e prostituição, crimes em terra indígena.
Em 2004, os índios decidiram acampar ao longo da BR-158, que passa ao
lado das terras, em local próximo a um córrego que atravessa a
estrada, para protestar pela ocupação de suas terras. Do outro lado do
córrego, os grileiros montaram seu acampamento e ambos grupos trocavam
tiros entre si, até que foram desarmados. Ou seja, os Xavante foram
desarmados, porque os grileiros continuam portando armas de exército
até hoje, além de que os latifúndiários que se escondem por trás dos
menores que colocaram à frente para camuflar a situação, são também
fortemente armados. Os Xavante também têm algumas espingardas com as
quais patrulham a aldeia improvisada onde moram atualmente, 24 horas
por dia.

Durante a seca, com a poeira da estrada, as crianças xavantes
começaram a ter pneumonia, até que algumas morreram, causando revolta
dos Xavante que ocuparam a estrada. É quando se desloca para lá, uma
comissão da ONU, que publica um relatório sobre os fatos.

Finalmente, diante dessa situação ainda mais crítica, em 2004, depois
de doze anos da denúncia da invasão e de todos os danos que essa
invasão implicou, uma primeira audiência foi convocada para julgar
apenas o tema proposto pelos réus: se Maraiwatsede era ou não terra
indígena. A invasão jamais seria julgada. Nem o crime de desmatamento.
Nem os demais crimes aqui citados. Nem todas as fraudes, falsos
testemunhos e falsas informações com que esse processo vem sendo
conduzido pelos advogados dos réus. Que inclusive publicam em jornais
da região que eu seria funcionária da FUNAI, entre outras calúnias
para tentar desacreditar minha investigação.

Antes dessa primeira audiência, em 2004, o perito, Eugênio Wenzel,
depois impugnado, escreve ao Juiz, pedindo providências pelo fato de
estar sendo pressionado e assediado de forma absolutamente
desrespeitosa por um dos muitos advogados dos réus e o famoso
“assistente de perícia”, que trabalha para os réus, Hilário Rosa.
Relata por exemplo que batiam na porta do seu quarto no hotel em Barra
do Garças para fazer-lhe pressões e ameaças. Nos autos, consta essa
carta. Não consta qualquer resposta do juiz.

Nessa primeira audiência do processo em 2004, até onde há registro,
todas as testemunhas confirmam que Maraiwatsede é dos índios. É
intrigante, o comportamento dos procuradores ali presentes, que
parecem não ter o menor interesse em argumentar nada, sempre passando
a palavra quando lhes cabe interrogar testemunhas.

Mas, a audiência não está registrada até o final. Portanto, não há
registro do motivo da impugnação do perito, Eugênio Wenzel. Em nenhum
lugar dos autos. Sendo assim, escrevi ao perito, perguntando. Ele me
responde apenas que o motivo deve estar registrado nos autos. Respondo
que não e insisto. Ele já não responde. Mas, continua fazendo perícias
na região. Suspeito que tenha sido vítima de algum tipo de chantagem
durante a própria audiência. Ninguém sabe dizer o motivo da impugnação
do perito, que não consta dos autos, como discuto adiante, ao tratar
sobre o tema do papel suspeito do MPF.

Enfim, com a impugnação misteriosa do perito Eugênio Wenzel, fui
nomeada, e em maio de 2005, como estava concluindo um projeto pelo
INESC, ONG para a qual trabalhava em Brasília, entrei em contato para
saber se seria convocada em breve para a perícia. Responderam-me que o
juiz tinha determinado prazo de quinze dias para a carga do processo.
Mas, a carga do processo só veio a ocorrer de fato, e sem a presença
do juiz, em 17 de outubro de 2005. Um dos motivos para isso, apontado
num telefonema por funcionário da Vara Judicial, era que o juiz tinha
decidido atrasar a carga do processo, para “castigar os Xavante”, que
tinham entrado em suas próprias terras para apagar mais uma das tantas
queimadas que assistiram de mãos amarradas, porque depois que ocuparam
a estrada, para resolver o conflito, o juiz lhes outorgou uma estreita
faixa de terra desmatada para que aguardassem a conclusão do processo,
proibindo-os de entrar em Maraiwatsede, num critério racista, pelo
qual os únicos seres humanos proibidos de entrar em suas próprias
terras, POR SINAL HOMOLOGADAS PARA ELES POR DECRETO PRESIDENCIAL EM 1998, eram os índios. 

Qualquer um pode entrar e cometer ali dentro o
crime que bem entenda, porque trata-se de região onde a lei inexiste.
Mas, os donos da terra não podem entrar: porque são índios. Racista,
como o comício incitando à invasão difundido por rádio. Mais crimes a
serem punidos. Crimes de racismo por parte dos organizadores do
comício e por parte desse critério do juiz. Até mesmo outras empresas
estrangeiras entraram. Segundo artigo publicado no jornal O Globo do
Rio de Janeiro, diversas empresas estrangeiras vêm lucrando em
negócios com o que é extraído de Maraiwatsede, principalmente pelos
latifundiários que ocuparam as terras, mesmo após a venda ilegal das
terras pela AGIP Petroli, italiana. E entraram para cometer mais
crimes: algum tipo de criação de gado e soja que não se conforma aos
parâmetros legais, como é de conhecimento público na região.

Em fevereiro de 2007, o juiz José Pires da Cunha havia dado sentença
favorável aos índios, com direito a recurso, que naturalmente os réus
não desperdiçaram e o processo foi transferido para o Tribunal
Regional Federal da Primeira Região, em Brasília, sob número
2007.01.00.042821-5/MT.

Outra exigência do juiz era que os grileiros que de fato fossem
clientes de reforma agrária fossem transferidos para algum outro
lugar. Embora, quando o INCRA passou por lá, ainda antes da minha
perícia, os grileiros tivessem se recusado a se cadastrar.


3. A VARA JUDICIAL E AS OMISSÕES DO JUIZ

O mesmo tipo de assédio relatado por esse perito, do qual vim a tomar
conhecimento posteriormente ao ler os autos, ameaça ocorrer comigo, já
logo após a carga do processo em Cuiabá. No dia da carga, não fui
recebida pelo juiz. Mas, sim por muitos funcionários da Vara que, em
coro, me convocavam a defender os interesses dos pobres posseiros que
corriam o risco de perder sua moradia em Maraiwatsede, e por toda uma
equipe de advogados e seu assistente de perícia. Entre recusas de
oferta de avião e outros benefícios oferecidos pelos advogados, fui me
retirando para o hotel com os autos. Na manhã seguinte, da portaria,
me ligaram o advogado e o assistente de perícia, pedindo para falar
comigo. Disse a eles que se precisassem falar comigo, que o fizessem
por meio da Vara Judicial; jamais diretamente. Em seguida, telefonei
para a diretora de secretaria da Vara Judicial, senhora Zenaide Costa,
pedindo-lhe que não passasse qualquer contato meu para essas pessoas e
que todo contato delas comigo deveria ser feito via Vara Judicial.
Depois, voltei a afirmar isso por escrito.

No entanto, para minha surpresa, e sem qualquer aviso ou
autorização, a Vara Judicial publicou em seu site, o telefone de minha
residência com meus filhos em Pirenópolis, Goiás, o telefone do
apartamento onde eu ficava para trabalhar em Brasília e o telefone do
meu celular. Quando escrevi, repetidas vezes, comunicando isso ao
juiz, finalmente recebi a resposta de que era prática normal da Vara
Judicial publicar os telefones de contato de quem está em posse dos
autos. Só que eu havia explicitamente pedido sigilo de meus contatos.
E fica tudo por isso mesmo, mais uma vez, mas eu fui obrigada a mandar
meus filhos para a casa do pai em São Paulo e me mudar de casa, me
desfazendo de todas as linhas telefônicas e boa parte de meus objetos,
para garantir a segurança de minha família. No dia em que eu estava me
mudando de casa por esse motivo, chega carta da Vara Judicial para o
endereço de minha casa, embora também por questões de segurança, eu
tivesse informado o endereço da pousada de um amigo para envio de
correspondência, e não o de minha residência com meus filhos, onde
eles já não moravam e de onde eu estava me mudando por medidas, quando
chegou a carta, aonde eu havia sido encontrada pela Vara Judicial.

A ausência de formalização da impugnação do perito Eugênio Wenzel é
fato que também REPORTO INÚMERAS VEZES AO JUIZ. Só se sabe que o
perito foi impugnado. Ninguém sabe por quê e não há qualquer registro
desses motivos, nos autos, tão visivelmente adulterados.

Assim também, a numeração das páginas dos autos foi alterada. Há
páginas arrancadas ou rasgadas. E inúmeras irregularidades que
registro num caderno que tenho guardado em lugar seguro em Goiás.
Portanto, não tenho acesso a esse material no momento, pois estou
residindo no Rio de Janeiro, nem me lembro exatamente, pois muitos
anos são passados. Mas, inicialmente, tudo foi informado ao juiz da
Quinta Vara Judicial em diversas cartas que escrevi e que talvez
estejam entre os autos.


4. OMISSÕES E AÇÕES DO MPF

Em vários momentos denunciei a diferentes representantes e instâncias
do MPF o que ocorria em Maraiwatsede. Além de NADA ter sido feito, as
ações dos representantes deste órgão foram, por diversas vezes, no
mínimo SUSPEITAS. Destaco algumas destas ocasiões.

4.1. Antropólogo Marco Paulo Schettini:
Sobre a impugnação do perito anterior a mim, escrevo portanto ao
antropólogo Marco Paulo Schettini, do Ministério Público Federal em
Brasília. Ele tampouco responde. Insisto com cópias para colegas de
profissão. Só assim, ele então responde lamentando não ter podido
fazer isso antes por estar viajando e diz que não sabe o motivo da
impugnação. Peço-lhe que verifique. Não há resposta. Tempos depois,
me encaminha um artigo acadêmico, enviado também a uma lista de
destinatários, na qual constam três e-mails diferentes do perito
Eugênio Wenzel, o que indica frequente contato entre ambos. Mas, o
antropólogo continua alegando não saber o motivo da impugnação. Nem o
procurador, Mário Lúcio Avelar, me responde sobre isso. Também não
sabe, aparentemente.

4.2. Procurador Federal Mário Lúcio Avelar:
Preocupada com a responsabilidade de ter que denunciar todos esses
fatos que venho testemunhando, já que havia sido inútil minha
tentativa de que o antropólogo do MPF tomasse alguma providência sobre
qualquer fato, viajei a Brasília para tentar falar diretamente com a
Dra. Déborah Duprat, colocando-me à disposição para ser atendida em
qualquer momento, ou retornar a Brasília em outra data que fosse
agendada. Mas, a Dra. Déborah Duprat não pôde me receber e indicou que
eu falasse com o procurador Mário Lúcio Avelar... em Cuiabá. Não
podendo viajar a Cuiabá, passei a me corresponder com o procurador.

Devo esclarecer que guardo cópia de toda a correspondência eletrônica
que encaminho sobre este assunto. E por medidas de segurança, a
encaminho sempre com cópias em cco, e muitas vezes em cc também.
Tenho cópia de toda a minha correspondência também com o procurador
Mário Lúcio Avelar, assim como muitas pessoas receberam cópia disso
simultaneamente, inclusive a Dra. Déborah Duprat, inúmeros
antropólogos, Dom Pedro Casaldáliga, membros da Pastoral da Terra etc.
Entre elas, está a mensagem em que o procurador Mário Lúcio Avelar
ameaça processar-me em termos vulgares, que foi respondida à altura,
com cópias em cc e cco, podendo-se ler a sua mensagem e a minha
resposta. Peço-lhe, nessa resposta, que me processe, para que eu possa
revelar em juízo tudo que sei, mas infelizmente ele não teve coragem
de me processar. O motivo de sua ameaça será esclarecido logo adiante.

Atualmente, quando, segundo a Prelazia de São Félix, há muitos
locais na região para onde esses grileiros (os que de fato sejam
clientes de reforma agrária e não tenham outras terras na região)
podem ser transferidos, havia também em 2009, uma fazenda, para onde
eles seriam transferidos, mas o procurador Mário Lúcio Avelar,
responsável por garantir a defesa dos direitos dos Xavante de
Maraiwatsede, toma providências para que isso não ocorra.

Quando eu passei pela estrada que dá acesso a Maraiwatsede, a BR-158,
em dezembro de 2005, para fazer a pesquisa de campo da perícia, vi a
um lado da estrada um acampamento de trabalhadores rurais ligados à
FETAGRI. Aguardavam desapropriação de outro imenso latifúndio
improdutivo que fora recortado das terras originais dos Xavante, que
então pertencia ao grupo Bordon - a fazenda Bordolândia. Finalmente,
no primeiro semestre de 2009, após longa espera de muitos anos, a
fazenda tinha sido desapropriada e os trabalhadores rurais ali
acampados tinham entrado. Havia lugar suficiente para que fossem
transferidos para lá também, os quatrocentos posseiros de fato, ou
seja, não latifundiários, invasores de Maraiwatsede. (Digo
quatrocentos indivíduos, não famílias.) Havia portanto, em 2009, esse
dado de que o número de clientes de reforma agrária era de
quatrocentos indivíduos, que compartilhariam as terras da Bordolândia
com mil e duzentos trabalhadores rurais que a aguardaram ao longo de
anos. Essa fazenda, quando passei por ali, estava desmatada como quase
tudo naquela região. Não havia ali árvores visíveis até a linha do
horizonte. Isso inclusive me chamou atenção, embora eu não soubesse
por onde estava passando.

No entanto, segundo me informa a coordenadora de Direitos Humanos da
Prelazia de São Félix do Araguaia, a advogada Maria José Souza Moraes,
havia algumas pequenas ilhas de vegetação ainda. Segundo a advogada da
Prelazia, os próprios grileiros que invadiram Marãiwatsede
atravessaram a estrada, entrando nessas ilhas para desmatá-las. E o
mesmo procurador, Mário Lúcio Avelar, que até então nada fizera quanto
ao desmatamento em Maraiwatsede, resolve recomendar uma punição
inédita para o crime de desmatamento, impune do outro lado da mesma
estrada, em Maraiwatsede, e impune para os antigos proprietários da
Fazenda Bordolândia. Até então, esse crime foi punido, nas raras vezes
em que é punido no nosso país, por prisão ou multa. Ali, o procurador
o pune por despejo e desapropriação relâmpago de terras recém
conquistadas. Despejo não dos que efetivamente desmataram essas
pequenas ilhas que restavam, que já haviam anteriormente desmatado
Maraiwatsede, de onde poderiam finalmente ser transferidos. Mas, sim,
despejo dos trabalhadores rurais que tinham aguardado nove longos anos
na beira da estrada pela desapropriação da Bordolândia! E ainda mais
absurdo: devolve as terras para o Grupo Bordon, que realmente era quem
tinha desmatado praticamente tudo, conforme eu mesma testemunhei em
dezembro de 2005!

Resultado: os grileiros de Maraiwatsede não são transferidos. Sem
dúvida, o objetivo no fundo era esse, absolutamente contrário à função
desse procurador no processo de Maraiwatsede.

Diante dos meus protestos, o procurador Mário Lúcio Avelar finalmente
manda lacrar algumas máquinas de desmatamento presentes em
Marãiwatsede. Mas, logo em seguida, os lacres são rompidos e o
desmatamento continua impunemente, bem como a venda ilegal de terras
ali dentro, adquiridas até mesmo pelo representanta regional da Funai.
Enquanto isso, despejados para justificar a devolução da Bordolândia
aos antigos donos que cometeram o crime de desmatá-la, assim também
impedindo a transferência dos criminosos que invadiram Maraiwatsede,
que evidentemente desmataram o pouco que restava na Bordolândia para
que o procurador tivesse pretexto para impedir sua transferência, os
inocentes, revoltados, resolvem bloquear a estrada. Forma-se uma fila
de caminhões e entre eles, um carro preto com dois homens fortemente
armados solicita informações sobre lideranças; em seguida, atirando e
matando dois líderes.

Mais dois assassinatos nesta história de impunidades e de ocupação
irregular de terras alheias, onde são poupadas as de uma
multinacional, geridas por meio da violência. Todos sabemos que essa é
a verdadeira história do Mato Grosso – seja do Sul, seja do Norte. O
que vai ficando claro neste processo, é como as diferentes entidades
representativas de um Estado de Direito se articulam para que essa
ordem de fatos se perpetue.

Continuando minha correspondência com o procurador, eu o
responsabilizo pela morte desses dois trabalhadores rurais. Mas, como
esse duplo assassinato parece ter tido o resultado positivo das
negociações para retorno dos trabalhadores à tão aguardada,
improdutiva e desmatada Bordolândia, o procurador passa a ser
vangloriar de ao contrário, ter sido ele quem garantiu a posse da
fazenda pelos sem terra, o que evidentemente é puro jogo entre
palavras e fatos, que contesto.

E naturalmente, nem se fala mais na transferência dos grileiros de
Maraiwatsede, que passaram também a acumular mais esses crimes
impunes, que lhes tem garantido muitos privilégios, em troca dos
privilégios de políticos e proprietários de terra e multinacionais
poderosas ocupantes da região. Cito abaixo trecho de notícia publicada
sobre estes fatos no Diário de Cuiabá, datado de 19/06/2009:

Ontem, a Fetagri se reuniu em Várzea Grande e, por entender que Avelar
está atuando mais por motivações políticas que por preocupações
ambientais, decidiu solicitar sua retirada do caso da fazenda
Bordolândia. Já o procurador acha que “têm mais é que me tirar mesmo
desse caso e me deixar recebendo ‘bolsa-Bordolândia’ em casa”, mas não
explicou exatamente o que queria dizer com a afirmação.

Em nossa correspondência, arquivada, o procurador me ameaça nos seus
vulgares termos por insistir em apontar sua má fé de ambos lados da
mesma estrada: Maraiwatsede e Bordolândia. A audiência no Tribunal
Regional Federal da Primeira Região é novamente adiada, por muitos
meses. E depois, novamente prorrogada.. e assim, os crimes em
Maraiwatsede continuam: assassinatos, o desmatamento, a ocupação por
negócios ilícitos envolvendo multinacionais, venda ilegal das terras
etc.

Finalmente, decisões sucessivas, intercaladas de longas esperas, mais
uma vez definem Maraiwatsede como terra indígena, já agora no Tribunal
Regional Federal da Primeira Região, mas garantem o direito dos
criminosos que a ocupam a uma terceira oportunidade de transferência,
se antecipando aos que aguardam na legalidade lutando por seu direito
à terra, como tantos trabalhadores rurais no Brasil, que têm seu
direito protelado por privilégios para pessoas como os advogados dos
réus e os próprios réus deste processo. Privilégio que lhes é
conferido pelo nosso Sistema Judiciário, frente ao qual, o MPF age de
forma contrária a suas funções.


5. A FUNAI:

Minha primeira suspeita em relação ao papel da FUNAI nesta história
surge quando li o laudo do assistente de perícia, que entre outros
argumentos absurdos alega que o estudo de identificação tinha sido mal
feito por deixar de fora os cemitérios xavantes. Justamente os
cemitérios foram deixados de fora, num acordo posterior, para
facilitar a homologação em 1998. No estudo de 1992, aquelas terras,
ocupadas pela sede da Suià Missu e por posseiros, constava, o que
deixaria aos índios apenas terras inteiramente improdutivas e não
ocupadas, não fosse a invasão de 1992, planejada por governador de
estado, Suiá Missu e políticos e latifundiários da região. No entanto,
o mapa completo, incluindo essas terras, some do Departamento de
Terras da Funai, reaparecendo depois que passo a denunciar isto.
Apesar do sumiço do mapa no Departamento de Terras, sob muita pressão,
a duras penas, no passado, a FUNAI cumpria parcialmente seu papel com
relação a Maraiwatsede. Mas, nos últimos tempos, parece haver um
acordo geral entre todas as entidades envolvidas, de não devolver mais
essas terras aos índios. Acordo no qual a própria Funai tem
desempenhado um papel fundamental. Mas, o que consta oficialmente é
que se aguarda a transferência dos réus, até hoje jamais julgados por
seus crimes, o que implicaria em sua transferência para prisões.
Para que haja a transferência dos réus, é necessário que a FUNAI e
INCRA façam uma ação conjunta de levantamento do número de grileiros
nas terras, que sejam clientes de reforma agrária (que em 2009, se
sabia serem 400 indivíduos.) ALGO SIMPLES, QUE UM PERITO FUNDIÁRIO
RESOLVEU RAPIDAMENTE, SOZINHO. A meu ver, bastaria anunciar que em
determinado período de dias se estaria aguardando pelo cadastramento
das pessoas interessadas num local a definir-se e mais nada. Não faz o
menor sentido que FUNAI e INCRA ainda sejam obrigados a gastar
escassos recursos públicos para suas áreas de atuação, batendo de
porta em porta para perguntar quem quer ganhar terra de graça e sem
espera.

Mas, seja pelo método que for, segundo informa Aloísio Azanha,
assessor do presidente demissionário da Funai, à antropóloga Iara
Ferraz, não haveria recursos para pagamento das diárias da equipe que
teria que ir a campo fazer esse levantamento, motivo pelo qual, correm
os anos e nada avança. Apenas a devastação e os prejuízos à cultura e
vida dos Xavante de Maraiwatsede. E todos os ônus sobre o Estado
brasileiro que essa história tem significado. Mesmo assim, para minha
perplexidade, a própria FUNAI publica haver ali cerca de seis mil
famílias posseiros e com base nessa fonte, outras entidades publicam
essa notícia. Absurdo! Esse número é falso e como a própria Funai pôde
publicá-lo sem qualquer base em fatos. Além disso, apesar de eu ter
denunciado isto, nada foi feito internamente para apurar a
responsabilidade por esta publicação criminosa.

Paralelamente, mais um governador do estado matogrossense pretende
passar por cima da Constituição, propondo transferir os índios mais
uma vez para outras terras, como em 1966. Com essa proposta
anti-constitucional, que mesmo assim foi aprovada pelo Legislativo de
Mato Grosso, ganhando tempo para tentar mudar a Constituição no
Congresso, antes de cumpri-la.

Parece sempre mais fácil transferir os índios, do que os criminosos.
Mas, os índios dizem que preferem lutar e morrer. E eu acredito quando
um Xavante diz isso. Boa parte do meu tempo em campo, para realização
da perícia, dedicou-se a convencê-los de não tentar tomar as terras
pela força. Naquela época, eu ainda acreditava que a Justiça tivesse
um mínimo de intenção séria. Pelo menos, que não fosse tão abertamente
contrária a seus próprios princípios e funções.

Hoje eu digo: o Estado de Direito não existe.
Escrevo isso aos desembargadores do Tribunal Regional Federal da
Primeira Região. Escrevo isso à Ouvidoria do Tribunal Regional Federal da Primeira Região.

É claro que todos sabemos como foi fundado o estado do Mato Grosso,
mas não é possível, por exemplo, que um jornal de grande circulação
publique, com elogios, a palavra de uma mulher que afirma que se as
terras forem devolvidas aos índios, eles vão estar preparados para
expulsá-los na “ponta de bala”. O que é isso? Filme de faroeste? Um
jornal de grande porte que publica que sou funcionária da FUNAI, sem
procurar verificar a informação! Que sou ligada ao MPF!

E enquanto isso, o que faz a Funai? Publica, em seu site, que em
Maraiwatsede, há seis mil famílias! Como eles sabem disso, se alegam
não ter recursos para fazer o levantamento, e se o perito fundiário
contou setecentos... indivíduos???!!! E se eles mesmos tinham
publicado pouco antes que ali havia sessenta e oito fazendas??

E mais grave: o próprio coordenador regional da FUNAI, o funcionário
Denivaldo Roberto da Rocha, adquiriu terras dentro de Maraiwatsede e
o próprio presidente demissionário da Funai sempre soube disso e
jamais tomou providências, nem que fosse para transferi-lo!
Afinal de contas, quem está representando os índios???

Com essa falta de representação, argumentos já descartados em
julgamentos anteriores voltam a ser apresentados para novos juízes,
que desconhecem a íntegra do processo que estudei, e que não sabem o
que foi decidido sobre esse mesmo argumento em audiências anteriores e
acabam baseando decisões sobre infinitas protelações da solução desse
processo em qualquer informação, ausente dos autos, como estas
absolutamente incoerentes da Funai, que num momento publica que há ali
sessenta e oito fazendas e em outro momento publica que há ali seis
mil famílias. Para que são solicitados os laudos? Por que os juízes
não dialogam com peritos, preferindo dar ouvidos a advogados de réus?
Não seria melhor que os Xavante pudessem se auto-representar, a ter
como representação um procurador que age contra seus interessses, como
Mário Lúcio Avelar??

A quem se pode apelar por Justiça, se até a Ouvidoria faz ouvidos tão
surdos quanto os de toda a cega Justiça! Cega, surda e também
analfabeta, porque jamais leram meu laudo e repetem dados difundidos
pelos advogados dos réus, ao invés de basear-se nos dados oficiais das
perícias que encomendaram, realizadas pelos peritos que nomearam em
Diário Oficial.


6. OS RÉUS, O ASSISTENTE DE PERÍCIA HILÁRIO ROSA E O ADVOGADO LUIS
ALFREDO FERESIN DEABREU

Ao longo do laudo, vou demonstrando que os argumentos dos réus são
baseados em fraudes, testemunhos falsos, informações falsas sobre
fatos históricos e localizações geográficas etc. A seguir, destaco
alguns fatos:

6.1. O famoso Assistente de Perícia Hilário Rosa
Digo “famoso” assistente de perícia porque já se trata de
profissional famoso no meio antropológico, pelas fraudes com que
desqualifica estudos de antropólogos, dizendo-se antropólogo, o que
não é. É, sim, um especialista em fazer esse tipo de laudo contra
estudos antropológicos, com argumentos falsos e fraudes, testemunhos
falsos etc. Nos meios antropológicos, diz-se que ele não é Hilário
apenas no nome (Hilário Rosa). Mas, por mais grotesco que seja, é um
Hilário perigoso. Especialista que desconhece noções básicas de
Antropologia como o significado do termo “Etnohistória”, baseando
argumentos pseudo-científicos em teorias refutadas por todo o meio
acadêmico, para assim confundir leigos na ciência antropológica, que
são os Juízes e demais profissionais do Direito.

Embora a Constituição Brasileira exija perícia antropológica nesses
processos, um profissional sem credenciais e sem ética é reconhecido
pela Justiça, retardando o exercício dessa mesma Justiça e encarecendo
os custos deste processo para os cofres do Estado Brasileiro, sem
qualquer ônus para os réus, comprovadamente culpados.

Pude verificar que esse profissional de ética bastante duvidosa
desconhece conceitos elementares de Antropologia e que é formado em
História, em alguma faculdade do interior de São Paulo, além de jamais
ter estado numa aldeia indígena, quando para tornar-se um antropólogo
indigenista, o profissional deve residir um tempo em aldeia,
realizando observação participante, que é basicamente nosso método de
pesquisa. Mas, segundo fui informada pelo procurador da FUNAI, um
assistente de perícia não precisa jurar em juízo e pode mentir. É o
que ele faz o tempo todo em seus documentos, como constatei ao ler seu
laudo sobre Maraiwatsede. Para confirmar que o cacique Damião teria
mentido em seu depoimento, por exemplo, o assistente de perícia cria
um testemunho de morador de São Félix do Araguaia, que segundo ele,
teria afirmado que a pista de pouso foi aberta aberta por máquinas de
nivelamento e tratores... 

Pergunto eu: que chegaram ali por onde, se
o objetivo da pista de pouso era permitir transporte para uma região
inexplorada e temida por todos, a duzentos km do posto mais próximo do
SPI? Mas, ironicamente, ele consegue ler também relatório de um
assistente do chefe de posto do SPI, desmentindo as informações desse
chefe de posto de que os Xavante habitavam aquela região já na década
de cinquenta, quando começaram a ser massacrados. Fotocópia do
documento de identificação, RG, desse informante, que teria escrito um
relatório desmentindo seu antigo chefe, já falecido, é anexada: ele
não assina o documento, que tem apenas impressão digital. O autor do
relatório é analfabeto. Rios mudam no mapa para desmentir fatos
históricos. Pior: esse assistente de perícia alega que a identificação
teria sido mal feita porque deixou de fora os cemitérios originais. Só
que os cemitérios originais foram deixados de fora num acordo para
homologação porque ali havia posseiros mais antigos, conforme relato
acima. E enquanto isso, o mapa original da identificação incluindo os
cemitérios mais antigos desaparece do Departamento de Terras da FUNAI,
em Brasília (que como digo acima, reaparece depois, se não me engano
pela preocupação da coordenadora do estudo de identificação com esse
fato, que o teria reelaborado para garantir a história do processo.)

6.2. Mais um advogado dos réus: 
Luis Alfredo Feresin de Abreu:
Um dos fatos que denuncio ao Presidente do Tribunal Regional Federal
da Primeira Região, que encaminha à Ouvidoria do Tribunal para que
esta também não tome qualquer providência, é ainda mais recente.
Há cerca de um ano e meio, abri meu e-mail, encontrando uma mensagem
de Luís Alfredo Feresin de Abreu, que se apresenta como conhecido de
meu ex-orientador, e se diz muito interessado na leitura da minha tese
de mestrado na USP, baseada em pesquisa com os Xavante da reserva de
Sangradouro, próxima a Primavera do Leste. Encaminhei a tese a ele.
Como a situação me levantou várias suspeitas, resolvi pesquisar e
descobri que se trata do irmão da senadora Kátia Abreu e mais um
advogado dos réus neste processo.

Escrevo a ele desmascarando esse fato, e ele me responde com uma
série de ameaças absurdas pretendendo ter encontrado motivos para
minha impugnação. Tais como o fato de eu ser membro da Associação
Brasileira de Antropologia que, segundo ele, seria uma entidade ligada
à FUNAI. É surrealista pensar que em altos níveis de poder, os fatos
transcorram com esse grau de falta de caráter e de falta de preparo.
Outro fato alegado por ele para minha impugnação, seria o fato de eu
ter permanecido longos períodos em convivência com os Xavante de
Sangradouro, seja na minha residência, seja na reserva. Em primeiro
lugar, a observação participante é realizada assim e esse é o método
de estudo qualquer antropólogo. Método que evitei em Maraiwatsede,
hospedando-me no posto de saúde. Também os Xavante de Maraiwatasede,
localizada a mais de setecentos quilômetros de Sangradouro, evitaram
falar comigo individualmente, concedendo sempre entrevistas coletivas
que gravei. Dizer que tenho relacionamento pessoal com os Xavante de
Maraiwatsede por ter feito pesquisa de campo com os de Sangradouro, é
tanta ignorância e racismo generalizante como dizer que sou amiga de
todos os madrilenhos por ter residido em Lisboa, embora sejam todos
europeus.

Comunico mais este abuso ao presidente do Tribunal e novamente, nada
ocorre. O Sistema Judiciário não consegue sequer garantir a segurança
e o respeito a seus peritos por parte de advogados de réus, a quem dão
ouvidos, olhos e privilégios, enquanto continuam fazendo com que a
sociedade acredite que a Justiça é cega. Cega para propósitos
explícitos em suas funções. De olhos bem abertos para garantir a
continuidade de privilégios.

E pelo que tenho visto, tanto nesse processo, quanto em outro
processo de denúncias que encaminhei por meio do Observatório
Interdisciplinar de Políticas Públicas da USP, do qual fiz parte, o
MPF que eu vi, não difere disso. Participa. É escandaloso!

Por tudo isso, e porque eu sei que essa questão vai acabar chegando
ao Congresso, direta ou indiretamente, peço a Vossa Excelência, que
conhece o funcionamento público do estado de Mato Grosso e sabe também
como funciona o MPF, que salve algo da credibilidade desse Estado de
Direito a que nos subordinamos, mas que tragicamente só privilegia os
que não se submetem a ele. Há sete anos vivo indignada com a injustiça
e impunidade e prática criminosa de funções públicas, que testemunhei
nesse processo. Há sete anos denuncio estes e ainda outros fatos, que
nem vou citar porque esta carta se tornaria infinita. Tem sido
igualmente infinita, a omissão e cumplicidade de todas as autoridades
envolvidas, desde os primeiros apelos do chefe de posto do SPI na
década de cinquenta. Em Maraiwatsede, os únicos que sempre respeitaram
a lei foram os índios considerados não civilizados e não
desenvolvidos. Porque desenvolvimento neste país se mede por
quantidade de terra desmatada e abandonada. E os danos morais que
venho sofrendo são também aparentemente infinitos, assim como os danos
morais que os índios vêm sofrendo ao longo de décadas, agora com a
participação de todo o sistema judiciário e Ministério Público
Federal.

O que parece evidente pelos fatos que apresento a Vossa Excelência, é
a existência de uma ação coordenada por meio de alguns representantes
que ocupam postos chaves em entidades públicas diversas, nos quais não
cumprem suas funções e obrigações. O objetivo dessa ação coordenada é
que Maraiwatsede nunca seja entregue aos índios. Conforme venho
relatando, isso envolve vários governadores de estado, Vara Judicial,
políticos locais, MPF, atualmente, a Funai também etc.

Cito, para finalizar, trecho de carta que escrevi aos desembargadores
do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, no início do ano de
2011:
(...) a Justiça Brasileira não cumpriu seu papel, se tornando cúmplice
desses crimes cruéis que se perpetuam, para além da morte da maioria
dos seres humanos - xavantes - que passaram por toda essa crueldade,
da qual não se esquecem.

Cruel. Continua sendo. Gostaria de ver Vossas Excelências diante dos
depoimentos dos velhos sobreviventes, da velha sobrevivente que conta
o assassinato do irmão que brincava no rio, entre outros fatos. Ela
começa o depoimento com a pergunta dirigida a mim em língua xavante e
traduzida por um dos jovens:

-Waradzu (branca), eu não estou mentindo! Esta terra é nossa! Aqui eu
caçava com meus pais, aqui eu colhia pequi, coquinho... Aqui eu
brincava com meus irmãos que foram assassinados por vocês!... Aqui eu
era feliz! Aqui não tinha nenhum branco! Waradzu, eu já contei essa
história muitas vezes. Vocês brancos são só papel, papel, papel! Não
resolvem nada! Eu não estou mentindo! Essa terra é nossa! A gente não
quer roubar ela de ninguém!

Essa senhora, numa sociedade onde normalmente o discurso é reservado
aos homens adultos, se levantou e olhando-me nos olhos com os seus
cheios de revolta, fez esse mesmo discurso. Nas reuniões na escola da
aldeia, todos os velhos desfilaram por mim, com a mesma revolta nos
olhos, enquanto os jovens escutavam em silêncio para nunca mais se
esquecerem da história do seu povo. Mesmo na condição de perita
imparcial, e como afirmo anteriormente, já trabalhei também com
populações rurais, cujos problemas igualmente me sensibilizam, é
difícil não se deixar contagiar por essa indignação justa e pelo
autocontrole desse povo, que tem resistido pacificamente até hoje,
desde que foi enganosamente removido de suas terras, quando nem
português sabiam falar. Até hoje a grande maioria ainda não fala. Nem
nossa língua lhes soubemos transmitir. Apenas subtraímos.

Eu pergunto a Vossas Excelências:
- Quantas vezes ainda os Xavante de Marãiwatsede vão ter que contar
essa história a nossas instituições de Justiça, antes de morrerem
todos, deixando essa luta como única herança para seus filhos e netos?
Já desde 1934, tudo isso era ilegal e a posse daquelas terras era
indígena, segundo todas as Constituições, que se apóiam na noção de um
acordo de paz, pelo qual os indígenas aceitariam fazer parte do Estado
Brasileiro, em troca desse reconhecimento de seu território. Embora os
sucessivos governos e instâncias governamentais não tenham cumprido as
repetidas determinações constitucionais de demarcar as terras e de
proteger os índios, esse fato apenas configura um descumprimento da
Constituição por parte do Estado, e não uma ausência do direito por
parte dos índios.

O conflito de Marãiwatsede é herança de uma forma ilícita de fazer
política no estado de Mato Grosso, que depois veio a dividir-se
administrativamente, mas não nas práticas, que continuam as mesmas em
ambos estados, causando conflitos cada dia mais graves, de
consequências pesadas para o conjunto da nação, como esse custoso
processo de Marãiwatsede, que jamais chega a uma conclusão.
E esse conflito continua gerando custos para o Estado Brasileiro,
pagos pelos cidadãos que não têm perdão nas dívidas de seus impostos e
nem os sonegam, como o engenheiro do próprio holding denuncia a AGIP
de fazer, por meio da posse da improdutiva Suiá Missu, arrancada aos
índios, onde há indícios de terem ocorrido massacres e testemunhos de
muita violência e humilhações contra os escassos trabalhadores que
passaram por ali.

Todos os diversos estudos sobre esse conflito de terras foram pagos
pelo Estado Brasileiro, através da FUNAI. Por exemplo: o inicial, de
identificação das terras pela equipe da FUNAI; a primeira perícia
antropológica, impugnada por motivos não registrados oficialmente; a
perícia fundiária (na qual faltam cálculos importantes sobre o real
custo do reflorestamento, conforme exponho em carta escrita ao
Excelentíssimo Senhor Juiz José Pires da Cunha, em fevereiro de 2007);
a minha segunda perícia. Todos esses custos e outros custos
decorrentes vêm sendo pagos pela FUNAI, o que me parece outra
contradição: Sou perita do Juiz, mas sou paga por uma das partes, que
é a FUNAI, enquanto a outra parte, a dos réus, diversas vezes
reconhecidos como culpados, paga seu próprio “assistente de perícia”,
que trabalha apenas por essa parte, e segundo fui informada por um
procurador, tem direito de mentir em Juízo e o faz descaradamente,
como comprovo diversas vezes em meu laudo. A outra parte paga o estudo
imparcial para o Juiz, mas não há nenhum estudo que defenda
exclusivamente os interesses dos índios. Justo? Incompreensível. Um
dia, quem sabe, se o processo for finalmente resolvido, teoricamente,
a parte que perdeu, devolveria esses recursos à Funai, enquanto isso
não ocorre, crianças indígenas xavantes morrem de desnutrição, por
falta de verbas na Funai para assisti-las.

Esses fatos fraudulentos são, portanto, de conhecimento oficial, já
que meu laudo é um documento oficial, solicitado por Juiz Federal, mas
o Estado continua aceitando recursos dos réus baseados nesses
argumentos falsos e fraudes, e custeando novos estudos e novos
julgamentos em novas instâncias, sempre outorgando um direito a
recurso, pelo qual se volta aos mesmos argumentos já contestados
anteriormente, pois nada de novo têm os réus a dizer: os fatos são
claríssimos e a posse indígena também, como inclusive já mais de um
Juiz ou desembargador constatou, dando sentença favorável aos índios.
Nada de novo foi dito, com a transferência do processo para Brasília.
Então, em que se baseou o direito a recurso, outorgado pelo
Excelentíssimo Senhor Juiz da Quinta Vara Judicial Federal do Mato
Grosso, em fevereiro de 2007? Essa decisão foi tomada, SEM uma
AUDIÊNCIA, em que, por exemplo, eu, pudesse me pronunciar quanto ao
que sei, e que duvido que tenha sido lido em meu laudo e cartas e
denúncias posteriores, ou durante a qual, as divergências todas
pudessem se confrontar de uma vez por todas, impedindo mais
retardamentos na Justiça, ou alegações de motivos para recursos.
Não tenho formação em Direito, mas tudo isso me parece bastante
oneroso ao Estado, permitindo o agravamento da situação criada pelas
vias de fato que prevalecem naquelas terras e em toda aquela região.

Danos que, a meu ver, são responsabilidade dessas entidades públicas
que agem com infinita morosidade para não cumprir sua obrigação frente
a grupos de poder nocivos, historicamente consolidados na região.
Região colonizada pela usurpação de terras a índios e pequenos
colonos, às quais o governo estadual estendia benefícios e serviços,
apenas depois de usurpadas por algum grande poder econômico. Assim se
constituiu todo o sistema de posse de terras e de Direito na região.
Direito que inexiste para quem espera o cumprimento de leis.

Atenciosamente,

Inês Rosa Bueno
perita antropológica
processo terra indígena Maraiwatsede

Um comentário:

  1. Inês Rosa Bueno, essa escola que vc estudou ensinaram muito bem como mentir e ser dissimulada!!! Parabéns pelas conquistas, poucos conseguem ser assim

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