quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

"A internação do menor infrator deve ocorrer em último caso"

carta maior
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"A internação do menor infrator deve ocorrer em último caso"

Segundo a presidente do CONANDA, diversos adolescentes são internados em instituições socioeducativas por motivos banais.


Frederico Guimarães
ABr
Chave de fenda, alicate e uma faca de cozinha para arrumar uma tomada em um abrigo para menores em Guarulhos, na Grande São Paulo. É assim que Marlon de Renato Ferreira, de 21 anos, se lembra do incidente que lhe fez cumprir um ano de medidas socioeducativas na Fundação Casa. “Fui a sala dos coordenadores, peguei a chave, o alicate e uma faca para descascar o fio. Quando voltei, o assistente social estava discutindo com um menino deficiente e eu resolvi intervir. Nisso, ele começou a dizer que eu não era nada, que eu não trabalhava no abrigo e que estava ali há pouco tempo para dizer o que ele deveria fazer. No calor da discussão, ele me ofendeu e como eu estava muito nervoso parti para cima dele gritando: vou te matar, vou te matar”, relembra o ex-interno, que foi condenado por tentativa de homicídio. 
 
Assim como Marlon, diversos adolescentes são internados em instituições socioeducativas por motivos banais, segundo a presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Maria Izabel da Silva. “Precisamos fazer um diálogo com o sistema de justiça para compreender que lógica é essa que está levando os juízes a determinarem sentença para atos infracionais tão pequenos como esse. No Piauí, um garoto foi internado por ter dado um empurrão na madrasta. E aí? Como é que fica a prestação de serviço e comunidade? Como é que fica a questão de reparar o dano?”, critica a presidente do Conanda.
 
Para ela, as medidas socioeducativas em meio aberto precisam ser priorizadas. Em São Paulo, 40% dos jovens internados estão envolvidos com o tráfico de drogas, segundo dados da Fundação Casa. “Infelizmente nós temos um conjunto de instituições que ainda precisam ser adequadas a atual legislação do sistema socioeducativo e ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas a medida de internação tem que acontecer em último caso. Ele não está detido porque cometeu um latrocínio ou porque cometeu um estupro. Isso acaba causando superlotação. Tem algo que não está no eixo”, afirma Maria Izabel.
 
Em agosto de 2013, o Ministério Público Federal visitou 321 unidades de internação socioeducativas. Segundo o relatório produzido pelo órgão, as unidades comportam 15.414 vagas em 16 Estados do País, mas há mais de 18 mil jovens internados. Em outro relatório, publicado em 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça, é possível observar a média de adolescentes nas unidades de internação no Brasil.
 
 
Os Filhos do Governo
 
Retirado do seu convívio familiar com apenas dois anos, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Roberto da Silva, pesquisou em seu Mestrado a origem e o destino das crianças confiscadas pelo Estado entre 1964 e 1985, e mais tarde publicou seu trabalho no livro “Os filhos do Governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas, 1997, Ed. Ática”.
 
“A ditadura usava algumas figuras de abandono material, abandono intelectual e qualquer deficiência familiar era o suficiente para o Estado privar as crianças de sua família. Quando você completa 18 anos, cessa a responsabilidade do Estado e essas crianças são jogadas na rua a própria sorte. O caminho natural que se percorre é o confronto com a polícia, assinar inquéritos, e a ida para o sistema penitenciário. Dentro das cadeias, eu acabei encontrando muitos desses meninos que haviam sido criados comigo, mas cresci sem saber que tinha uma família. Depois, quando fiz a pesquisa pela USP, encontrei cerca de 40% desses meninos com mais de 40 anos dentro da prisão. Alguns estão presos até hoje”, revela Roberto da Silva.
Uma pesquisa divulgada no site da Fundação Casa em São Paulo mostra a desestrutura familiar que atinge os adolescentes em conflito com a lei. Segundo a Fundação, mais da metade dos jovens internados moravam apenas com a mãe. Marlon não conheceu seu pai. Aos dois anos, o menino saiu da cidade de Potã, no interior de Minas Gerais, para morar com sua mãe na periferia da capital paulista. Dezenove anos depois, com os braços repousados em uma janela do CDHU de Guaianazes, na Zona Leste de São Paulo, ele relembra as dificuldades que passou na adolescência. “Tínhamos uma relação boa, ela fazia a comida, lavava minhas roupas, mas com o tempo o crack foi tomando a sua consciência”, diz o rapaz. “Acordei um dia e ela não estava mais. Fiquei morando uns quatro meses sozinho até que decidi ligar para o Conselho Tutelar. Aí fui morar em um abrigo com outras crianças. Eu me sentia muito mal quando eu cheguei lá. Foi angústia, sofrimento, dor, sentimento de abandono. E aí você se pergunta. Será que eu sou tão ruim assim, para não ter família, não ter ninguém? Será que Deus me ama?”, questiona o adolescente.
 
Dados do Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, estimam que, em 2009, pelo menos 54 mil menores viviam em abrigos no Brasil. No entanto, pelo menos 24 mil meninos e meninas vivem em situação de rua, segundo um estudo do Conanda, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos.
 
“É muito complicado o abrigo dar uma assistência social para o jovem sair de lá com trabalho. Os abrigos estão próximos de locais onde há o tráfico de drogas. Você vai a prefeitura, você implora para as prefeituras melhorarem a questão dos abrigos, e o que se faz? Tem criança que não tem ninguém. Você fala em baixar a idade penal, mas você continua com os mesmos problemas. Para mim, essa história de reduzir a idade penal é uma falácia. O motivo é diminuir a violência contra a sociedade, como se a lei fosse dar solução para esse problema. Acho que o lado hipócrita do discurso é esse. Vende-se uma promessa para colocar o menor dentro da cadeia. Reprimindo mais, você não terá uma melhora da violência”, afirma Dora Martins, Juíza da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, e membro da Associação de Juízes para a Democracia (AJD).
 
No Congresso Brasileiro, dezenas de projetos tratam do tema maioridade penal.
O senador Aloysio Nunes, do PSDB, quer a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 33/2012) para baixar a idade penal. O político sugere que o Estado crie um novo tipo de presídio para abrigar jovens que cometeram crimes hediondos ou são considerados de “alta periculosidade” pela sociedade. A ideia do tucano seria estender a pena para alguns adolescentes e isolá-los do convívio com os demais. No entanto, a medida fere as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 
“A visão do nosso Estado sempre foi a de que o menor dá problema, e que ele é preto e pobre. Assim veio o Brasil no século XX. A partir da Constituição de 1988, muda-se o foco da criança e do adolescente com o ECA, criado em 1990. O Estado não vai mais olhar para a criança como um incomodo. Ela se transforma num sujeito de direito. Ele tem direito a convivência familiar, direito a estudo, direito a moradia, direito ao lazer. O Brasil e as instituições ainda não conseguiram entender a mudança de paradigma. Somente quando entendermos isso na prática é que iremos conseguir construir um caminho diferente”, garante a juíza Dora Martins.
 
 
Políticas de reciclagem 
 
Após constantes denúncias da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), a antiga Febem fechou as portas em São Paulo. Desde 2006, as instituições passaram por uma restruturação político pedagógica para melhorar o atendimento aos jovens infratores. Segundo a Fundação Casa, após a mudança, o nível de reincidência nas internações caiu de 29% para 13,5%. No mesmo ano, foi criado a Escola para Formação e Capacitação Profissional da CASA (EFCP), mas muitos servidores não conseguiram se adequar ao novo método de trabalho.
Marlon não esquece as pancadas que levou dos funcionários da Fundação Casa de Guarulhos, onde ficou um ano internado. “Alguns eram ignorantes, ainda traziam aquela bagagem da antiga Febem de que o menor é marginalizado e tem que ser espancado para aprender. Não é assim que funciona. Na escola, você não aprende apanhando, você aprende educando. Por que lá tem que ser diferente?”, afirma o ex-interno.
Segundo o Conanda, a partir do mês de abril todas as instituições socioeducativas do país devem começar a aderir a um projeto pedagógico de ressocialização dos funcionários. De acordo com o órgão, a Escola Nacional de formação dos profissionais será instituída através de uma parceria com a Universidade de Brasília (Unb). A ideia é oferecer um módulo de ensino presencial e também a distância para melhorar o atendimento aos meninos e meninas em conflito com a lei.
 
“Todas as instituições socioeducativas deveriam se assemelhar a escolas. Nós temos uma situação estrutural de marginalização social e pauperização da família brasileira e de proletarização da classe trabalhadora que acabam gerando um conjunto de fatores que levam a delinquência e a criminalidade. Se não dá para apontar um único fator responsável pela delinquência infanto-juvenil, pelo menos é possível descartar outros fatores”, afirma o professor da Faculdade de Educação da USP, Roberto da Silva. 
“Ninguém está discordando que deva haver uma forma especifica de tratamento para o adolescente que cometeu um crime de alta periculosidade. O ECA já prevê essa distinção. Mas não é só deixa-los guardados lá dentro. O Champinha, por exemplo. Ele mora com mais dois ou três em uma prisão especial. Essa unidade não é nada. Não conseguem recuperá-lo, ninguém sabe o que fazer com ele até hoje. Será que o Estado vai ter uma estrutura de construir unidades especiais para analisar o adolescente em todos os aspectos? Você não pode olhar o adolescente infrator da mesma forma que você olha o preso comum”, diz a juíza da Vara da Infância e da Juventude de São Paulo.
 
 
O caso Champinha 
 
Liana Friedenbach seguia num ônibus de jovens da Congregação Israelita Paulista a Ilhabela, no litoral de São Paulo. Pelo menos era assim que Ari Friedenbach imaginava. Preocupado, achou melhor ligar, queria saber como estava sua filha. “Está tudo bem, estão todos meio dormindo”, disse a garota para confortar o pai, que não voltou a vê-la novamente.
 
A estudante de 16 anos foi assassinada por Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido como Champinha, que na época tinha 16 anos. Ela foi estuprada e morta ao lado do namorado, Felipe Caffé, ao acampar em um matagal de Embu-Guaçu, na periferia da Grande São Paulo.
 
Dez anos depois, o vereador Ari, do PPS, está em sua sala, no gabinete da Câmara Municipal de São Paulo, franzindo as sobrancelhas diante da reportagem. “O menor que matou a minha filha é um psicopata perigoso. O que fazer com menores psicopatas? Não adianta você internar ele na Fundação Casa por três ou oito anos, não importa o tempo que for, porque ele é irrecuperável. Não se sabe o que fazer com o psicopata”, argumenta o pai de Liana.
 
Após cumprir os três anos previstos pela lei, um laudo psiquiátrico concluiu que Champinha apresentava problemas mentais e precisaria ficar sob a custódia do Estado. Atualmente, Champinha tem 26 anos e já não pode mais ser resguardado pelas leis do ECA. O rapaz está detido em uma unidade na Zona Norte de São Paulo, e um novo laudo psiquiátrico feito por peritos do Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo (Imesc) deve determinar o futuro do criminoso.
“Recebemos uma denúncia de que essa unidade em que o Champinha está é uma unidade de contenção. Fizemos a pesquisa no Cadastro Nacional de Estabelecimentos da Saúde (CNES) e constatamos no sistema do Ministério da Saúde que a unidade não está cadastrada”, informa o Procurador-Geral da República, Pedro Antônio Machado, que pede o fechamento da unidade.
 
Já a promotora de Justiça Maria Gabriela Mansur, diz que é o juiz quem irá decidir se Champinha será ou não posto em liberdade. “A sociedade não pode pagar essa conta. Se o médico vier falando que o Champinha não pode conviver em sociedade iremos ver onde ele pode ficar. Podemos e devemos opinar pela manutenção do Champinha na unidade”, alega a representante.
 
De acordo com relatório do Ministério Público, há jovens com transtornos mentais graves em 15% das unidades de internação do país. Pela Lei, os jovens deveriam estar em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas não é isso o que acontece. Ainda de acordo com o órgão, em unidades de Salvador e Rio de Janeiro apenas 6% dos adolescentes com alta prevalência de transtornos psiquiátricos recebem o tratamento adequado previsto pelo ECA.
 
Para a psicóloga do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Sandra Amorim, é adequado que a sociedade busque corrigir a conduta dos seus cidadãos a partir de uma perspectiva socioeducativa. “A violência não é solucionada pela punição, e sim pela ação nas instâncias psíquicas, sociais, políticas e econômicas que a produzem. Por isso, é urgente garantir o tempo social de infância e adolescência, com escola de qualidade, visando condições aos jovens para o exercício e vivência de cidadania, que permitirão a construção dos papéis sociais para a constituição da própria sociedade”, afirma.

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