quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A experiência universitária como uma interdição violenta de direitos

carta maior


parte 1
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/A-experiencia-universitaria-como-uma-interdicao-violenta-de-direitos-I-o-inferno-do-acesso/13/30237

A experiência universitária como uma interdição violenta de direitos (I) - o inferno do acesso

Um relato sobre o higienismo e o cinismo das burocracias universitárias que operam nas universidades públicas do estado de São Paulo.


Estudante de Filosofia da Universidade de São Paulo
spresidênciaartística
Carta Maior recebeu, por meio do Centro Acadêmico de Filosofia da USP (Caf-USP), um relato sobre a estarrecedora situação vivida por um estudante de Filosofia na USP enquanto luta por permanência universitária. O relato destrincha a conduta adotada pela burocracia universitária em relação aos estudantes mais pobres que, como pontos fora de uma reta, passam nos vestibulares das grandes universidades paulistas.

Ao divulgar o texto, os diretores do Caf escrevem: "como não é possível sintetizar a violência sofrida pelo aluno, fazemos um apelo para que acompanhem o relato original".Carta Maior reforça o apelo, republicando o texto integralmente, em duas partes. 
Leia, a seguir, o relato. Para acessar a segunda parte do texto, clique aqui.
 
***
 
Nasci no ano de 1990. Meus genitores contavam ambos 19 anos de idade. Nenhum deles chegou a completar a escolaridade de nível médio e, por conseguinte, nenhum deles pôde frequentar uma universidade.
 
Quando nasci, minha genitora teve depressão pós-parto e daí engendrou uma série de problemas mentais: depressão, bipolaridade, esquizofrenia… Desamparada pela inexistência de um aparato público de saúde qualificado para lidar com esse tipo de quadro, a sua vida tem se resumido até hoje em um processo de entrar em crise, ser internada, receber alta e depois de certo tempo entrar em crise novamente, ser internada…e assim ciclicamente.
Nesse aspecto, a existência para mim foi uma experiência bastante traumática. Penso que só é cognoscível para aqueles que conviveram ou convivem com pessoas portadoras de transtornos mentais. Os ataques e crises de minha mãe são de natureza muito violenta; eu e outras pessoas já fomos perseguidos e atacados por ela. Uma série de casos que remontam àquelas que estão entre as piores experiências da minha infância.

As famílias de meus genitores sempre foram apartadas por conflitos, sobretudo por conta da doença de minha mãe. De modo que nos dias de hoje não há nenhum contato entre ambas.
Meus pais se separaram logo após meu nascimento, e eu vivi boa parte de minha vida com a família de meu pai. Isso se deu tanto por conta da doença de minha mãe, como por conta da falta de condições de sua família para amparar outro membro; a família de minha mãe vive até hoje numa casa pequeníssima, pela falta de espaço dormem todos no mesmo quarto. Ocasionalmente eu visitava a família de minha mãe. Dessa maneira eu vivi, sem muito ponto fixo, circulando entre os bairros de Campo Limpo e Jardim Piracuama (próximo de Capão Redondo), regiões periféricas da cidade de São Paulo.

O único membro com quem mantive mais proximidade e por quem desenvolvi afetos na família de meu pai foi sua mãe, minha avó paterna. Morávamos então, além de mim, minha avó, meu pai, e três de seus irmãos na mesma casa. Por volta de meus 14 anos a mãe de meu pai foi diagnosticada com câncer e morreu não muito tempo depois, o que desestruturou completamente a família. Um dos irmãos de meu pai foi embora. Desse período em diante, episódios de violência física e verbal eram constantes, intervalados por uma convivência apática.

Frequentei a escola pública durante toda a vida. Terminei o ensino médio aos 17 anos e comecei a trabalhar, mas nunca desenvolvi uma profissão. A maioria dos membros de minha família não teve acesso ao ensino superior; dos que tiveram, sei que nenhum frequentou uma universidade pública. Assim a primeira realidade que me foi apresentada foi aquela do trabalho – trabalho precarizado (meu último emprego de carteira assinada foi numa empresa de telemarketing, um salário de 545 reais; antes disso trabalhei na portaria de um condomínio de classe alta, na região do Ipiranga – possivelmente a moradia de algum uspiano).

Por volta de meus 18-19 anos meu pai saiu de casa para constituir outra família. Daí por diante vivi por conta própria. Com a saída de meu pai os conflitos se aprofundaram entre mim e seus dois irmãos: a violência física da agressão, da pancada, da discussão e do convívio apático – não tenho analogias ou experiências para expressar o que se configurou ali. Os abusos que vivi e sofri nesse período de minha vida estão para além do que posso relatar ou mesmo processar. Viver em um lugar onde cada um vive por si só é um processo desumanizante; da ocasião de precisar do básico, precisar comer, precisar de um produto de higiene ou limpeza, e em sua própria casa as pessoas esconderem-nos de você… como descrever isso?

Eu tentei sair de lá. Cheguei mesmo a me mudar, mas perdi o emprego e não pude manter o aluguel. Vivi na casa de minha avó materna por um tempo, dormindo num colchão na sala – o único espaço disponível, além de uma porta de um velho guarda-roupa, para guardar roupas e pertences. Como a vida na casa de minha avó estava extremamente precarizada, e como era também um lar repleto de conflitos – um lugar pequeno, com todas as pessoas dormindo no mesmo quarto, a doença de minha mãe… – fui compelido a retornar para onde morava através de uma complicada mediação de meu pai com seus dois irmãos. Isso se deu entre 2012 e 2013.

Quando saí do ensino médio (estudei numa dessas escolas que se assemelham muito a um presídio) não tinha nenhuma noção do que era uma universidade ou o que era a universidade pública brasileira, das suas possibilidades e da possibilidade de um tipo diferente de vida da qual eu vinha levando. Ocasionalmente alguns livros vieram parar na minha mão e eu os ia lendo displicentemente; tive contato com o livro de uma professora do departamento de Filosofia da USP e foi através dessa leitura que eu encontrei os meios de articular pelo discurso certa inclinação de espírito que – penso que é assim para alguns casos – leva os alunos para esse ramo do saber humano.

Foi no ano de 2012 que comecei a frequentar um cursinho popular. E foi aí que comecei a ter noção do que era a universidade pública e a USP. Devido ao meu conturbado retorno à casa da família de meu pai, e a uma série de outros fatores (eu havia perdido emprego, não ia conseguir mais frequentar o cursinho) e entrei num severo processo de depressão. Por volta do meio do ano tentei cometer suicídio – fui "salvo" pelo Estado, como atesta esse texto, todavia tal Estado declara direitos à Educação, Moradia, Transporte, etc. e acaba por interditar a consumação desses direitos (ou pelo menos os interdita através de seus agentes). Tomei antidepressivos por um tempo e com o auxílio de professores e amigos consegui certo nível de estabilidade para poder voltar a frequentar o cursinho.

Como não tinha emprego nem dinheiro, me concederam uma bolsa de estudos integral. Daí por diante minha rotina diária era a seguinte: eu caminhava todos os dias do bairro do Campo Limpo (onde eu morava) até a casa de minha avó materna no Jardim Piracuama e lá almoçava, pois não tinha o que ou como comer em casa. Como eu não tinha dinheiro, um irmão de minha mãe emprestava seu bilhete único do trabalho para que eu pudesse acompanhar o cursinho, então eu ia pro cursinho dois ou três dias por semana assistir as aulas que eu achava as mais essenciais (primeiro porque eu não tinha dinheiro para pagar o ônibus todos os dias, segundo porque era um mal-estar espoliar dessa maneira um irmão de minha mãe que precisava de seu bilhete único para ir trabalhar) e estudava o resto por conta própria.

No cursinho era comum – éramos, somos todos fodidos -, que um ajudasse ao outro: se um levava marmita, dividíamos; se precisávamos de dinheiro nos juntávamos; circulávamos entre nós as obras literárias cobradas pela FUVEST pois não havia cópia para todos e assim por diante. Fico feliz por ter criado laços com essas pessoas, hoje grandes amigos, o mais próximo do que posso chamar de família, e também por tê-los como companheiros hoje na USP – só nós sabemos o veneno que foi transpor as barreiras para entrar aqui.

Eu consigo entender que as pessoas amem suas famílias, que criem laços de afeto com seus pais, irmãos, primos, tios, avós, e assim por diante. Especialmente se essas pessoas vêm de extratos mais altos das classes sociais. Mas para mim a instituição familiar, a Família com “F” maiúsculo, é o que há de pior; é a comunhão na desgraça e na miséria sociais pois não há condições de subsistência concretas para quem as busca na cidade de São Paulo; é onde o conservadorismo é mais conservador, o racismo é mais racista, a homofobia é mais homofóbica, o machismo é mais machista… enfim, o reinado da ignorância e estupidez humanas por excelência. É dessa maneira que a experiência familiar, para mim, se resume em um severo ressentimento e em um ódio fratricida.

Prestei o vestibular e passei em três universidades públicas, provando estar em paridade de ignorância com os outros candidatos aprovados. Optei pela USP, no engodo do discurso da “melhor universidade da América latina” (melhor pra quem?).

Assim foi o inferno do acesso. Começou, então, o inferno da permanência.
 
***
Leia aqui a segunda parte: O Inferno da Permanência

.............
parte 2 - 

A experiência universitária como uma interdição violenta de direitos (II) - o inferno da permanência

Talvez o tom do relato não agrade algumas pessoas. Mas qual tom adotar? A posição de poder de meus opositores, evidentemente, é diferente da minha.


Estudante de Filosofia da Universidade de São Paulo
spresidênciaartística
Sabendo que não havia condições materiais concretas para frequentar a universidade e levar adiante os estudos, bem como ter uma boa formação, na situação em que eu estava vivendo, foi assim que logo após a matrícula recorri à assistência social da universidade. A inscrição para o processo (PAPFE) de 2013 ainda não estava aberta. Desse modo fiz uma solicitação emergencial.
 
No documento de solicitação emergencial estava informado, com letras garrafais e amigáveis, que qualquer caso de omissão de renda concorreria para o não recebimento dos auxílios e das bolsas. Fui pego na inocência e na falta de qualquer mediação estudantil: os colegas do centro acadêmico não estão aparatados para amparar os alunos de origem dos extratos mais baixos das classes sociais e na época eu não sabia da mediação da Amorcrusp (Associação de Moradores do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo).
 
Depois eu vim descobrir que muitos alunos omitem a renda (minha própria assistente admitiu que era assim, para muitos dos moradores) ou que conseguem a moradia graças a suas performances (infelizmente não consegui fazer nenhum escândalo ou chorar na frente das assistentes). Achei por bem apresentar todos os documentos (os quais consegui com muito confronto, eu não sabia sequer a renda das pessoas que moravam no mesmo lugar que eu) que eram solicitados e na conversa que teria com a assistência social esclarecer minha situação, afinal pensei que não negariam os direitos de permanência a alguém que precise deles, como é meu caso. Ledo engano.
 
Assim foi que, na ocasião do meu primeiro encontro com a assistência social, para apresentar a ficha de inscrição de solicitação emergencial, expliquei minha situação, conforme a relatei na parte anterior desse texto. Levando em conta que eu mesmo não tinha renda nenhuma, e que a única documentação relativa à renda era aquela das pessoas que comigo moravam, mas da qual eu não fazia uso, a assistente solicitou uma carta, um relato. Foi o meu primeiro, de muitos.
 
Escrevi a mão, naquela ocasião, uma redação de 6 páginas (afinal, a Fuvest não é o bastante) para tentar explicar e esclarecer as coisas da melhor maneira possível. A assistente reconheceu a minha necessidade e eu consegui uma vaga provisória no alojamento do Crusp (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo). Saída a vaga, fiz uma mudança completa, removi todas as minhas coisas do lugar onde morava e passei a morar nesse alojamento, mesmo antes do processo seletivo oficial, entrei no emergencial.
 
Chegado o prazo do processo oficial, o PAPFE, fiz a inscrição, no campo de justificação do sistema (a inscrição é feita pelo famigerado Jupiterweb) relatei novamente minha situação e preenchi os dados com vista na minha situação real. A assistente que havia me atendido até então, na etapa emergencial, não seria aquela designada para tomar conta do meu caso dali por diante. A responsável seria, e tem sido até então, a assistente [nome omitido]. Da primeira vez que conversei com [nome omitido], foi para repassar passo a passo a inscrição que realizei no sistema, verificando os dados, etc. Ao final da inscrição perguntei sobre a pontuação (a coisa funciona em termos de pontuação; os critérios que geram essa pontuação são inescrutáveis) e fui informado: 130 pontos.
 
É interessante falar sobre a pontuação e como ela opera. O mais óbvio a primeira vista é que ela é reificadora. Nós não somos seres humanos, com histórias, problemas, necessidades, emoções, pensamentos, valores e assim por diante, mas somos uma coisa, um número. E acreditem quando lhes digo que é exatamente assim que somos tratados. Para conseguir os auxílios (moradia, transporte, aluguel, bolsa de livros, e as demais bolsas de critério socioeconômico) é tudo vinculado à pontuação que recebemos. Para uma vaga no CRUSP, por exemplo, saem duas listas por ano. Os alunos que conseguem a vaga são aqueles que obtêm a pontuação entre 120-115. Um outro aspecto da pontuação é que ela tem um caráter perverso de inversão (podemos pensar a burocracia da assistência social uspiana como uma mistura de George Orwell e Kafka) na medida em que o que vale menos vale mais. Ou seja, quanto maior a pontuação, isso significa que o sujeito é mais espoliado socialmente. Menos vira mais, os alunos (assim presenciei) entram num frenesi de competição pela maior pontuação (porque em geral todos que se submetem ao processo precisam da moradia) e acabam por celebrar a própria miséria: ficam felizes por uma pontuação alta, quando isso na verdade expressa a sua condição de necessidade e de desamparo social.
 
O processo de seleção seguiu. Foram feitas visitas nos endereços que apresentei. Foram confirmadas, em geral, as coisas que falei (não obstante a prerrogativa seja de que todos os que requisitam moradia são grandes mentirosos). Quando conversei com [nome omitido] ela alegou que não era possível colocar “renda zero” no sistema, embora essa fosse a minha condição real e concreta. Uma necessidade foi reduzida a uma questão burocrática, e um direito foi interditado. Minha pontuação foi reduzida para por volta de 80 (até hoje não consegui entender muito bem essa alteração) e eu fui excluído da contemplação dos auxílios. A assistente disse que eu poderia entrar com um “recurso”; ao questioná-la sobre em que consistiria o recurso ela foi bastante obscura, não posso remontar exatamente, mas foi algo como “seja criativo, faça qualquer coisa, se vire aí”.
 
Para o recurso gravei dois depoimentos em vídeo (aqui só vou apresentá-los em áudio, para não expor as pessoas), um deles com minha avó materna, outro com uma tia minha que mora no mesmo quintal da casa de minha avó materna, tia essa que falou com a assistência social da USP na ocasião da visita, além disso compus um documento para que as duas pessoas com quem eu morava (já não estava morando, uma vez que tinha me mudado para o alojamento) assinassem (a última ocasião que os vi, agradeço imensamente por isso) – é claro que isso só pode ser entendido como um absurdo burocrático. Além desses documentos, apresentei também um documento que comprova minha bolsa no cursinho. Os depoimentos e os documentos eu os apresento agora a vocês:
 

depoimento 02 por comissao-permanencia

Documento número 1.
Documento número 2.
Documento número 3.
Documento número 4.
 
Meu recurso, por alguma razão que não se sabe qual, foi negado. Não existiu diálogo, conversa ou justificativa. Nada. Um belo dia recebi via e-mail um parágrafo, que é um texto formal copiado e colado – copiado de alguma instância metafísica – com os seguintes dizeres:
 
Prezado [nome omitido],
 
Seu recurso foi analisado pela equipe de assistentes sociais do Serviço Social da SAS (Superintendência de Assistência Social) e, mantendo-se os critérios técnicos alinhados à Política Nacional de Assistência Social na perspectiva da Matricialidade Sociofamiliar (PNAS, 2004, p. 40-43), com rebatimentos na seleção socioeconômica do PAPFE (Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil) e de acordo com as possibilidades advindas dos recursos disponibilizados pela alta gestão da Universidade de São Paulo, a análise resultou pelo indeferimento da solicitação apresentada.
 
À disposição,
 
Equipe de Assistentes Socais – Serviço Social – SAS/USP
 
Desde o início do processo de seleção da assistencial social fui requisitado inúmeras vezes para conversar com a minha assistente social. Sempre no intuito de justificar minhas necessidades lá eu ia, e por alguma razão a conversa era sempre desviada para um assunto qualquer, desde que não fosse relacionado à permanência e a moradia: se eu tinha uma namorada; se eu já havia visitado os apartamentos do CRUSP e como a [nome omitido] os achava sujos e bagunçados (!); que numa ocasião descobriram o filho de um assessor político omitindo os dados para receber os auxílios (porque é claro que esse caso está em total paridade com o meu); que a minha assistente achava que os estudantes deveriam se espelhar em Gandhi para suas manifestações políticas (!); que deveríamos de fato nos expor, nos submeter, pois os casos de nossas vidas é em que consiste seu objeto de trabalho (!) e assim por diante. Hoje me arrependo amargamente por não ter gravado essas conversas.
 
Quando recebi o e-mail que negava o recurso eu só pude responder:
 
Eu não tenho onde morar, além do alojamento. O que devo fazer?
 
Não recebi resposta. Procurei a assistente social [nome omitido], buscando uma justificativa mais clara, mais elaborada, tendo em vista todo o processo pelo qual passei, todos os e-mails que com ela troquei, etc. Encontrei-a em sua sala. Ela segurava uma caneta, não tinha coragem suficiente para olhar na minha cara, ficava então segurando uma caneta, perambulando o olhar entre a caneta e o teclado, tentando balbuciar alguma coisa. Sem o que falar, rompeu o silêncio oferecendo pagar um café na padaria do Crusp. A conversa se seguiu daí em ela tentando justificar que eu não tinha e não passava tantas necessidades conforme relatava, ou então ela perguntando se eu frequentava o Cepe-USP (Centro de Práticas Esportivas da USP), que tênis não era um esporte tão burguês assim (!), enfim, qualquer assunto idiota que não tivesse nada a ver com meu problema real, e com o motivo real de eu tê-la procurado naquela ocasião.
 
Nessa mesma ocasião, porém, a assistente [nome omitido] disse que se eu conseguisse alguma das bolsas da universidade (ensinar com pesquisa, aprender com cultura, etc) ela poderia modificar meus dados no sistema e por conseguinte aumentar a pontuação para que eu fosse contemplado com a moradia. Porém, no fim do ano, quando finalmente consegui uma bolsa, isso não aconteceu. Para quem é do curso de Filosofia, já deve estar familiarizado com histórias de conversas que não aconteceram em lugares que não existiram.


Acho pertinente relatar o que tem sido viver tanto tempo sem renda no alojamento do Crusp.
 
Ao contrário de meus colegas, que recebiam apoio financeiro de seus pais, e que tinham lugar para voltar nos fins de semana, etc., felizmente eu fui acolhido por alguns moradores: um gesto que, aliás, nunca poderei recompensar – abriram para mim as portas de suas casas, me ofereceram sua comida, e numa ocasião cuidaram de mim um par dias enquanto estive doente; uma coleção de gestos que há muito não encontrava em minha vida. Como a alimentação é comprometida nos fins de semana – não há jantar nos restaurantes universitários – eu recorri a essas pessoas para poder me alimentar; quando necessitei de um sabonete para tomar banho ou de sabão em pó para lavar roupa, também foram elas que me ajudaram.
 
A vida nos alojamentos do Crusp é extremamente precarizada, não havendo sequer papel higiênico nos banheiros; para que a nossa estadia se dê ali da forma mais heterônoma possível a limpeza dos quartos do alojamento é feita pelos funcionários terceirizados da limpeza, algo que bem poderia ser feito pelos próprios alunos que ali estão.
 
Em uma ocasião o quarto foi invadido por cupins. Foi uma situação extremamente complicada para todos; o lugar que vivíamos, onde dormíamos, onde muitas das vezes estudávamos e onde às vezes fazíamos nossas refeições, infestado de insetos.
 
No meu caso, como o ninho dos cupins ficava sobre a minha cama, tive de amarrar uma sacola plástica, para evitar que a cama ficasse completamente suja, como vinha acontecendo, com a movimentação dos insetos. Eu contatei a assistência social, que por sua vez contatou a manutenção dos prédios. Todavia o problema só foi resolvido definitivamente com a ação de nós, os próprios alunos, que ali morávamos.
 
Outro aspecto da falta de renda é que isso prejudica o andamento da graduação. Na Filosofia a bibliografia dos cursos abrange vários idiomas, embora a graduação não nos ofereça curso de línguas. Tive vontade de cursar o curso do Nele (Núcleo de Estudos de Línguas Estrangeiras), organizado pelos estudantes de Filosofia para remediar essa lacuna existente na graduação, mas não pude.
 
Uma das contradições – dentre tantas outras que permeiam esse relato – é que só consegui dinheiro quando participei do Programa Embaixadores da USP 2013. É um programa no qual os alunos de graduação da USP vão às escolas públicas para falar da USP e de seus (supostos) auxílios para aqueles de origem social dos extratos mais baixos das classes sociais. Ou seja, para conseguir dinheiro (aliás, eu não teria conseguido bancar o custo em xerox do segundo semestre, se não tivesse participado desse programa) eu tive de advogar para USP em uma escola pública, e dizer que a universidade oferece uma série de benefícios de permanência, quando eu próprio, um aluno de graduação e de origem periférica como a deles (fui numa escola em Francisco Morato) estava na universidade e tendo o acesso aos auxílios interditado. É claro que, para além da contradição, tentei encarar isso como um trabalho social de fato, no sentido de que mais estudantes de escolas públicas, sobretudo os negros, pobres e periféricos, ocupem o espaço da USP.
 
Gostaria de me deter, se possível com algum escrutínio, no conteúdo dos inúmeros e-mails que troquei com a assistente [nome omitido] – a responsável pelo meu caso – para fazer ver aí o que me parece ser parte da essência do modus operandi da assistência social.
 
Uma primeira característica – isso já pode ser observado nos primeiros e-mails que troquei com a assistente – é a de nunca se dirigir ao que objetivamente é falado no e-mail, especialmente se isso diz respeito à moradia, permanência, bem como o apontamento das incongruências durante o processo de seleção. Há, todavia – minha assistente tem se mostrado uma grande mestra nisso – um cordialismo cínico e uma falsa preocupação com os problemas dos alunos.
 
Num dos e-mails (do dia 18-05-2013) a assistente assim descreveu seu próprio trabalho:“(…) Fazemos a chamada ‘mediação’ entre o Estado e o usuário (não só o usuário, mas o coletivo) e vice-versa. Temos uma coisa que na profissão é chamada de ‘autonomia relativa’. Agora, penso que a discussão deva girar em torno de como está se dando essa efetivação de direitos.” Ora, o que se deu, o que se tem dado agora, não é justamente o oposto? Tenho uma necessidade concreta de moradia, pois não tenho onde morar, e onde de fato o trabalho da assistência social tem incidido, para além desse discurso canalha (“canalha”, aliás, na acepção mais cruspiana do termo, que entoa tradicionalmente esse grito), tem incidido justamente na interdição de direitos. Se há uma e única coisa que a assistência social tem promovido até então é a não obtenção de direito, não só posta como uma barreira, mas mesmo como uma força que atua no sentido oposto do que é o interesse estudantil.
 
Não bastasse a interdição de direito, há a dimensão, que acaba por dar o caráter perverso (e por que não pervertido?) disso tudo, a dimensão da vigilância. É assim que noutro e-mail (do dia 14-06-2013) minha assistente sugere que é muito difícil me localizar no alojamento do Bloco C; o pressuposto aí, é claro, é o de que eu tenho de estar predicado como localizável e rastreável. A resposta dada a esse e-mail também não recebeu réplica.
 
Como um dos expedientes favoritos da assistente [nome omitido] era o de, isto é, nas horas vagas de seu papel de não-mediadora de diretos, me enviar links, vídeos, ou referências das mais estúpidas, me senti impelido a compartilhar com ela um estudo, publicado na Folha de São Paulo em 2004:
 
http://www.rc.unesp.br/pef/20040530/pef.htm
 
O título é “Bairros de elite de SP dominam vaga na USP”. Escancara as disparidades entre as diferentes origens de classes sociais, ilustradas através de um garoto que mora no extremo da zona leste (em Guaianases) e uma garota dos bairros centrais. Para se ter ideia do que se está querendo dizer aqui, um excerto expressivo do texto diz tudo: “(…) Apenas uma rua, a Bela Cintra, na região dos Jardins, conseguiu, no vestibular de 2004, emplacar mais moradores nos bancos uspianos do que a soma de 74 bairros periféricos da zona sul. A Bela Cintra, porém, é apenas o caso mais vistoso de um quadro de hiperconcentração da oportunidade de acesso ao ensino superior público nas mãos de uma pequena parcela da população”. Além da dificuldade que permeia nosso ingresso na universidade, a dificuldade de acesso aos nossos direitos de moradia e demais auxílios aos que deles necessitam se apresentam como uma nova e inesperada barreira da vida universitária.
 
Falava há pouco da vigilância. A consumação máxima do abuso da vigilância se deu quando a assistente resolveu me stalkear via redes sociais. Conforme ela própria anunciou via e-mail (do dia 29-07-2013) : “obs: ahá, duvido vc acertar essa: o que é o que é: foi difícil te achar e vc era uma criança bonita (duvido acertar essa)”. Não é uma gracinha? Esse expediente de infantilização através do discurso é outra coisa que ocorreu inúmeras vezes; outro caso que está registrado via e-mail é quando ela diz que ia “colorir a sala para me receber” (o que quer que isso signifique). Fica também a print-screen:
 
Como ela própria diz, “foi difícil me achar”. Difícil certamente, pois meu perfil está configurado com todas as restrições de privacidade, e tal modo que não é possível localizá-lo nem via nome, nem via e-mail. Notoriamente o trabalho de um stalkerprofissional.
 
Pulando um pouco mais adiante, quero finalizar dizendo o que ocorreu entre os e-mails do dia 04-11-2013 e 12-12-2013. É nessa série de e-mails que pergunto à assistente (conforme relatei anteriormente) se seria possível a alteração da pontuação e por conseguinte a obtenção oficial da moradia tendo em vista a aquisição da bolsa. Fui informado que não (embora isso contradiga o que a própria assistente falou) e que eu deveria esperar o próximo processo. Segundo ela: ”A equipe informa que, com vistas ao encerramento do 2º semestre deste ano e dando andamento à divulgação das listas de Apoio Moradia referentes à seleção do PAPFE 2013, não é possível neste momento realizar novas análises e alterações nas pontuações, pois a seleção deste ano encontra-se finalizada. Para o PAPFE 2014, pedimos que apresente sua situação atualizada no ato da inscrição para que a equipe de assistentes sociais faça análise técnica.” (e-mail do dia 13-11-2013). É de extrema importância notar que a partir deste e-mail a minha assistente passou a enviá-los com cópia para todas as assistentes sociais da SAS – talvez num espírito de intimidação.
 
Após isso eu procurei minha assistente, para conversar, tentar tirar mais esclarecimentos. Nessa ocasião ela se negou a me receber ou mesmo a trocar qualquer palavra, disse apenas que doravante eu só seria atendido em equipe (muito cabível para quem, até então, se mostrava um “doce” de ser humano, não?). Como eu não fui atendido pessoalmente, continuei insistindo via e-mail. Foi então que a assistente sugeriu uma reunião, com todas as assistentes sociais, para analisar meu caso. A princípio recusei, pois minha situação até então é a de estar à deriva no meio desse processo, bem como não haveria ninguém para me acompanhar. Mas como dias depois fui ‘escalado’ – pra dizer na linguagem periférica – pela portaria do CRUSP sobre a minha permanência no alojamento me vi compelido a tentar agendar a tal reunião. A reunião não aconteceu, pois segundo a assistente: “Hoje pela manhã recebemos uma informação de nossa supervisora; que ela não poderá participar da entrevista que vc solicitou e que havia sido agendada para amanhã (28/11-13h30), pois nossa supervisora estará em atividade externa.” Se isso é verdade ou não – para usar a própria lógica da assistência social, que assume, a priori, que estamos mentindo – fica a dúvida. O fato é que desisti dessa via para tentar uma mediação estudantil – pelo meu departamento, centro acadêmico, Amorcrusp e assim por diante.
 
No dia 06-01-2014 eu fui informado pela portaria do CRUSP de que deveria comparecer na assistência social para justificar minha permanência no alojamento. Ao que parece, esse é um dos mecanismos de pressão para que os alunos sejam mandados embora. Conversei brevemente com as assistentes [nome omitido] e [nome omitido] (outras assistentes, não a responsável pelo meu caso), na aparência desarticulada de seu ofício não trouxeram absolutamente nada do meu processo, nada do que eu até então havia exaustivamente apresentado até agora. A única coisa dita foi que, como nós alunos que estávamos no alojamento, ao ingressar, havíamos assinado um documento dizendo que de lá sairíamos por volta da metade do mês de dezembro. Era só isso. Não se tratava de uma questão humana, de uma questão de necessidades ou carências reais e concretas. Tratava-se de uma questão burocrática. Essa é mais uma maneira pela qual a violência opera através desse processo. E por que digo de aparência desarticulada? Porque é justamente no nível da aparência, da aparência de um sistema que deveria funcionar para acolher os alunos necessitados, mas que na realidade opera articuladamente um processo violento de exclusão. Foi solicitado, então, uma carta que justificasse a continuação da nossa estadia ali. Compartilho também com vocês este documento.
 
Eu quero que fique claro a acepção do que quero dizer quando digo “interdição violenta de direitos”. Não se trata apenas da violência na sua acepção mais pobre, da violência física. Se trata sobretudo de uma violência velada, sofisticada, que acaba por nos objetificar, e assim por diante. Quero fazer um relato breve de dois casos – um mais próximo, outro mais distante – de interdições violentas de direito.
 
O primeiro ocorreu com minha avó materna (é a senhora que fala no primeiro depoimento em áudio que disponibilizei nesse relato). É um caso que ela sempre conta. Ela veio do nordeste brasileiro ganhar a vida em São Paulo. Ela conta essa história vez e outra, tentar dar ares de humor, mas é possível captar tanto nas palavras quanto em seu olhar o ressentimento, tal qual um sabor amargo. É analfabeta. Quando criança, fora à escola apenas uma vez. Ela muito feliz diz que naquele dia aprendeu rapidamente o alfabeto e como escrever o próprio nome. Ao chegar em casa, porém, seu pai, ao descobrir que ela havia ido pra escola, deu-lhe uma surra como nunca havia dado antes. A justificativa era que “filha minha não vai pra escola pra aprender a escrever carta para namorado”. A interdição violenta de direitos (neste caso, do direito a educação, mas também de extrema violência machista) opera de tal modo que a vida daqueles que a sofrem é alterada, senão permanentemente, ao menos em grande medida. Minha avó trabalhou a vida toda em “casa de família”, como ela costuma dizer, como faxineira; devido a problemas de circulação teve a perna amputada e passa uma vida de grandes dificuldades como cadeirante.  Não é difícil imaginar que ela teria uma vida muito diferente se não tivesse o acesso à educação sequestrado de si.
 
O segundo caso é de um dos depoimentos de uma garotinha, uma criança. No documentário “Pinheirinho Um Ano Depois”, da ocasião de uma das maiores barbáries da sociedade contemporânea. No depoimento a garotinha diz não entender por que a Juíza assinou o despejo/desocupação que ocasionou a perda de seu lar. Quando perguntada sobre como se sente ela diz, confusamente: “deu vontade de correr, deu vontade de chorar… deu vontade até de matar aquela Juíza”.
 
É assim que eu me sinto. Foi assim que me senti quando fui convocado no dia 06-01-2014 para falar com as assistentes sociais, eu sequer conseguia olhar na cara delas, pois estava completamente dominado por um desespero, uma vontade de chorar ou mesmo de gritar, embora ficasse ali inerte.
 
Não consigo descrever o que tem sido, para mim, os últimos meses. O que vai acontecer? Será que vou ser despejado do alojamento? Mesmo após fazer esse relato, me sinto de tal forma como se o signo das palavras e das imagens se transferisse de um para outro, em busca de um significado que não consigo apreender, numa celeridade que não consigo acompanhar, rumo ao incognoscível. Eu ando pelo Crusp e me sinto nauseado, porque é como se tudo isso que eu tentei verbalizar aqui passasse pela minha cabeça ao mesmo tempo, e eu já não conseguisse pensar ou dormir direito (como tem acontecido, algumas noites).
 
A graduação é tudo que tenho de concreto em minha vida. Vim para universidade em busca de uma formação – a formação que me foi sequestrada desde as etapas básicas da educação tendo em vista a excelsa qualidade da escola pública. O curso encerra meus interesses e minhas paixões. É a minha via de emancipação para obter condições de subsistência. Até agora só pude continuar no curso por duas razões principais, que é o que tem dado a base concreta de minha permanência na universidade: o fato de eu estar no alojamento e de estar recebendo a bolsa alimentação (pelo menos até abril de 2014) – aliás o diagnóstico de que o aluno de escola pública vai à escola [também] para comer não deixa de ser menos verdadeiro na universidade -; bem como é só através da satisfação dessas necessidades elementares (moradia e alimentação) é que poderei prosseguir a graduação e meus estudos.
 
***
 
Talvez o tom do relato não agrade algumas pessoas. Mas qual tom adotar? A posição de poder de meus opositores, evidentemente, é diferente da minha. Sinceramente, se minhas palavras parecerem ao leitor demasiadamente imbuídas de ódio ou sentimento que o valha é porque eu próprio estou imbuído de desespero ao fazer tudo isso.
 
Antecipo também o tom de advertência de alguns amigos e colegas, de que essa não seria a melhor ou mais inteligente coisa a ser feita (em geral, isso me parece um cálculo despolitizado), porque em geral a relação dos moradores com a assistência social é uma relação de coerção e medo. Dirigimo-nos a elas como se estivéssemos pedindo um favor a alguém. A verdade é que a assistência social não está em posição de prestar favores a ninguém, embora seja essa a relação que se dê. Nós temos direitos, e não há nada de mal ou errado em exigir que eles sejam cumpridos e respeitados. É essa zona cinzenta que existe hoje entre a moradia estudantil e a assistência social que precisa ser preenchida com direitos, para que eles não mais sejam interditados. Isso está no cerne da atividade estudantil e universitária, aliás bem expresso por um professor da Filosofia:
 
(…) se não colocamos a própria universidade em questão, que sentido teria colocar em questão qualquer outra coisa a partir da universidade, isto é, a partir de uma certa inserção histórica e cultural que se expressa numa determinada maneira de investigar, de criticar, de conhecer e mesmo de propor condutas?
 
Silva, Franklin Leopoldo e. Universidade: A ideia e a história.

Nenhum comentário:

Postar um comentário