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http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/desmilitarizar-bom-comeco-para-uma-seguranca-democratica/
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Desmilitarizar: bom começo para uma segurança democrática
– 26 DE NOVEMBRO DE 2013
Submetidos a hierarquia opressora, policiais transferem frequentemente à população injustiças que sofrem. Este ciclo de violência precisa ser freado
Por Movimento Mães de Maio e DAR, no blog Desentorpecendo a Razão
No dia 5 de outubro, completaram-se 25 anos da promulgação da Constituição Federal. Ao contrário dos que se recordaram da data para celebrar a “Constituição cidadã” ou um suposto início de uma nova etapa de democracia e liberdades civis no país, para nós essa ocasião foi de protesto – assim como o dia 2 de outubro, aniversário de 21 anos do Massacre do Carandiru.
Essas duas datas têm mais do que o começo de outubro em comum. Elas estão tão imbricadas quanto violência e desigualdade social, autoritarismo e racismo, Estado penal e capitalismo: fazem parte de um olhar sobre a história de nosso país que invariável e inevitavelmente nos remete ao sofrimento dos de baixo e ao autoritarismo excludente dos de cima – desde que o Cabral era outro e os Amarildos caminhavam descalços por nossas matas ainda preservadas.
Nosso texto constitucional, no papel até relativamente avançado e garantidor de direitos, deveria ser a consolidação legal de uma transição que poria fim ao ordenamento jurídico e político constituído durante os 21 anos da ditadura civil-militar iniciada em 1964. No entanto, se há algo que os de baixo sabem mais do que ninguém é que o papel e as campanhas políticas aceitam tudo e que a prática é que é o critério da verdade. Será que o legado autoritário e ditatorial foi concretamente superado? Aonde nos levará o eterno discurso do “aprofundamento da democracia”?
Somente em maio de 2006, durante ofensiva do estado paulista contra a população pobre, justificada por uma suposta reação a ataques do PCC, foram executadas e dadas como desaparecidas mais pessoas do que todos os assassinatos políticos oficialmente contabilizados durante o regime civil-militar brasileiro, que teria ceifado 426 vidas de ativistas políticos (os números certamente são maiores e estão em constante revisão).
Se a brutalidade de maio poderia soar como exceção, na verdade ela não passa da regra. Entre 2001 e 2011, o número oficial de mortos por policiais militares em serviço apenas no estado de São Pauloé de 5.591. A média é de 508 mortos por ano, apenas em um dos 26 estados brasileiros! E nós sabemos que os números são bem maiores, posta a prática cada vez mais comum das chacinas por policiais à paisana, em carros pretos com insulfilm ou em motos com garupa – um modus operandi com inúmeros indícios da participação de agentes da lei, a começar pelo emprego de munições de uso restrito em muitos casos. A polícia brasileira é uma das mais letais do mundo, além de ser uma das mais violentas, corruptas, racistas e desacreditadas. Inclusive para seus próprios membros, situação que fica explicitada pelo alto número de suicídios entre integrantes da corporação.
“A polícia sempre dá o mau exemplo/ lava minha rua de sangue/ leva o ódio pra dentro”, cantavam os Racionais MC’s nos anos 1990, e de lá para cá o desprezo das classes populares pelos funcionários do Estado que deveriam garantir sua segurança não teve um motivo sequer para diminuir.
A irracionalidade fardada que ocupou os telejornais e as ruas durante os protestos de junho pelo Brasil afora só serviu para recolocar na agenda pública um debate que, apesar de sempre urgente, ainda não foi encarado de forma suficientemente consequente por nossa sociedade: até quando vamos tolerar ser vigiados, perseguidos, controlados, encarcerados e violentados pelas forças do Estado? Que alternativas há para mudar esse quadro?
Lógica de guerra para gerir os trabalhadores pobres
Levantamento realizado pelo próprio Instituto Sou da Paz – entidade que tem convênios com o governo estadual e é, portanto, insuspeita de inflar as estatísticas – mostra que 93% dos mortos em supostos tiroteios com a Polícia Militar de São Paulo entre 2001 e 2010 moravam na periferia da cidade. Cinquenta e quatro por cento eram negros ou pardos. Os números mostram um quadro que é o mesmo desde as 111 mortes comandadas pelo coronel Ubiratan e pelo governador Fleury em 1992, no Carandiru: é assim que os pretos e os quase pretos de tão pobres são tratados, como bem narra a canção de Caetano e Gil.
O militarismo que historicamente se instaurou nesse processo chamado Brasil não é só uma forma de repressão ou de proteção da propriedade privada. É uma maneira de gerir populações. A novidade é que agora nossos presos, mortos e desaparecidos têm nome, deixaram de ser estatísticas ou “efeitos colaterais” de planos de valorização imobiliária ou de grandes eventos esportivos e comerciais. Deixaram de ser “o traficante”, “o elemento suspeito de cor padrão” “que tinha passagem”, “o bandido que trocou tiros com a polícia”, para ser o ajudante de pedreiro que ganhava R$ 300 por mês, o funcionário terceirizado que buscava restabelecer sua vida depois do período passado no cárcere etc. A indignação pelas mortes de Ricardo e Amarildo vai além da revolta contra a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados; ela é a gota d’água para escancarar uma realidade com a qual cada vez menos pessoas podem aceitar conviver – sob pena de serem as próximas vítimas.
A Polícia Militar brasileira se organiza e trabalha historicamente sob a lógica da guerra e vê nos pobres e nos divergentes os inimigos a serem combatidos, exterminados. Não é à toa que o discurso mais usado para legitimar os extermínios praticados pelas forças estatais é o de “combate ao tráfico”. A guerra às drogas não é, apesar do nome, uma guerra contra substâncias. Guerras são contra pessoas. Vivemos todos, portanto, em uma guerra, como qualquer outra, com ocupações militares, mortes, prisioneiros de guerra, botim de guerra, contrainformação. E com uma característica peculiar: o Estado a dirige contra (alguns de) seus próprios cidadãos − que “custam menos que a bala que os mata”, nas palavras de Eduardo Galeano.
“Querem controlar, mas são todos descontrolados”
De acordo com a Anistia Internacional, em 2011 foram executadas 276 pessoas em vinte países que adotam a pena de morte. No Brasil, onde a legislação não dá ao Estado o direito de tirar a vida de ninguém, durante o mesmo período foram oficialmente mortas 961 pessoas em ações policiais. “Era traficante.” Parece ser a saída mágica para legitimar a aplicação da pena de morte no país. Existem algumas categorias sociais que simplesmente são matáveis. Assim, a proibição das drogas e a lógica militar se retroalimentam, com o mercado ilegalizado, a fim de seguir existindo, mimetizando a militarização que o combate.
A Polícia Militar é, ainda, altamente hierarquizada e intransigente com seus escalões inferiores, que transferem para os cidadãos a lógica de medo e desumanidade à qual são submetidos desde seu primeiro dia de treinamento. Para coroar o quadro, a PM oferece péssimas condições trabalhistas a pessoas que, por meio de seu poder, podem influir em mercados ilegais altamente lucrativos, o que gera um nível de corrupção só comparável ao do Congresso Nacional.
Em relação aos “abusos”, a resposta é o descontrole. A justiça militar permite que os crimes cometidos por policiais sejam julgados por seus próprios pares, e a enorme maioria dos integrantes do Poder Judiciário (exceção feita às ainda frágeis defensorias públicas) é conivente, legitimadora e até incentivadora da violência policial que deveria controlar externamente. Sem qualquer controle independente ou confiável, a PM emerge de maneira autoimune.
Pessoas são agredidas em manifestações, torturadas em delegacias e chacinadas em bares de suas quebradas, e as respostas oficiais são sempre da mesma ordem de cinismo: “A polícia está investigando os fatos e os possíveis responsáveis serão punidos”. E “que se foda minha mãe”, como canta Mano Brown.
Passados mais de 25 anos da proclamada Constituição cidadã, o Estado brasileiro ainda não formulou nenhuma política efetiva de assistência e reparação às vítimas e seus familiares (covítimas) da violência policial, conforme determinam o artigo 245 do texto magno e diversas resoluções internacionais das quais o país é signatário – por exemplo, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas de Abuso de Poder, da ONU.
Desmilitarizar as polícias
Evidentemente, as causas que levaram o Brasil a ser tão violento, excludente e discriminatório são antigas, diversas e complexas. No entanto, é igualmente claro que a constatação do tamanho do problema não pode significar imobilidade diante do imperativo de enfrentá-lo, mesmo que seja por meio de medidas parciais, paliativas. Iniciais.
Uma delas, que surgiu depois de junho como bandeira de diversos movimentos e setores sociais, é a desmilitarização das polícias, algo que para nós faz sentido dentro de um projeto mais amplo de desmilitarização do conjunto da vida social e, no limite, de resistência e transformação. Se para atingirmos o mundo que buscamos é necessário muito mais do que uma polícia desmilitarizada, certamente ele não é sequer imaginável dentro do atual cenário.
Diante do imenso desafio de pensar soluções concretas, vamos caminhando com perguntas, exigências mínimas, e temos bastante claro o que não queremos. Não visamos ao fortalecimento de um policiamento civil. Tampouco nos faz diferença que coloquem a palavra “paz” no nome da polícia, que continua perpetuando as ocupações de territórios, os extermínios e os desaparecimentos em plena “democracia”. Precisamos da desconstrução de uma lógica e de práticas, não de aulas de direitos humanos em meio ao treinamento de capitães nascimentos.
Por estar estabelecida na Constituição, a militarização legalmente precisa ser revertida por meio de proposta de emenda constitucional. Como movimentos autônomos, não temos esperanças que partam do Estado as mudanças que o desestruturarão. Mas acreditamos na pressão e na força dos de baixo, e, nessa caminhada rumo a uma mudança de mentalidade ampla, que abarque o militarismo das instituições e também de nosso cotidiano e vida, vemos algumas medidas concretas como necessárias e urgentes a curto prazo.
É preciso fortalecer o controle externo pela sociedade civil da atividade policial e judicial, bem como a autonomia das perícias criminais. O fortalecimento da Defensoria Pública da União e das defensorias públicas estaduais, além da criação de outros mecanismos de assessoria jurídica popular autônoma, igualmente se fazem prementes.
Outras medidas importantes seriam a criação imediata de mecanismos de combate à tortura (incluindo limitações às armas menos letais), a melhoria das condições das prisões e instituições de medidas socioeducativas, começando pelo reforço de amplos mutirões carcerários que avancem no desencarceramento imediato das pessoas ilegalmente presas (provisórios tornados permanentes; presos em regime fechado quando deveriam estar em semiaberto etc.), e a criação emergencial de uma Política Nacional de Reparação Integral às Vítimas Torturadas e às Famílias de Vítimas do Estado Brasileiro (reparação psíquica, moral, física e material).
Defendemos ainda o fim do crime de desacato e a aceleração de medidas para a federalização (deslocamento de competência) dos crimes de maio de 2006 no estado de São Paulo e o avanço no direito à memória, verdade e justiça para as vítimas do Estado, da ditadura e de hoje, com a possível criação de uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça para os Crimes do Estado Democrático.
No entanto, como dito anteriormente, seria ingenuidade ou má-fé acreditar que apenas um controle externo e a desmilitarização das práticas policiais resolveriam o problema da violência estatal em nosso país. Assim como a cultura do cárcere transborda cada vez mais para fora dos muros da prisão, dado o imenso e crescente índice de encarceramento, também a militarização das práticas institucionais abarca uma série de outros âmbitos da vida, contra o que são necessários muito mais avanços e transformações do que ajustes legais e institucionais urgentes como os que propusemos anteriormente.
A questão do encarceramento em massa e da generalizada lógica penal-punitiva (inclusive entre pessoas “de esquerda”) é, inclusive, crucial nessa discussão. Desde o Massacre do Carandiru, nos dois lados dos muros, os massacres contra a juventude negra só aumentaram. Muro adentro, a população carcerária cresceu mais de 300% de 1992 para cá, contra aproximadamente 30% de crescimento da população em geral. Hoje são quase 600 mil pessoas presas em celas superlotadas, cerca de 270 mil apenas em São Paulo, sem acesso às assistências médica, social e jurídica, nem a qualquer oportunidade de estudo ou trabalho. Mais de 60% da população carcerária é formada por negros e jovens, 90% nem sequer completou o ensino médio e cerca de 80% está presa por acusação de crimes contra o patrimônio ou por pequeno tráfico de drogas. Mais punições e prisões resolverão o quê?
De tão evidente, chega a ser redundância falar em já basta. Junho de 2013 foi só mais um passo na explicitação dessa digna raiva, que tem raízes muito mais fortes do que quaisquer desses discursos que se importam mais com (determinadas) vidraças do que com (determinadas) vidas. Outra redundância? Vândalo mesmo é o Estado, “respeito é pra quem tem”. Desmilitarizá-lo é um passo para pelo menos equilibrar um pouco a luta cotidiana por dias melhores.
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Movimento Mães de Maio
Combate a violência estatal desde que ela o gerou, em maio de 2006, e integra a Rede Nacional de Familiares e Amigos de Vítimas do Estado. Página do Facebook: https://www.facebook.com/maes.demaio
DAR – Desentorpecendo a Razão
Coletivo antiproibicionista de São Paulo, fundado em 2009, é um dos organizadores da Marcha da Maconha-SP e membro da rede autônoma Protesta. Site: coletivodar.org.
Ilustração: Daniel Kondo
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