terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Haitianos na Amazônia brasileira: relatos sobre Porto Velho

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Migrantes
02.12.2013
Haitianos na Amazônia brasileira: relatos sobre Porto Velho

Adital
Foto: RondoniaovivoMais de 10.000 haitianos estão no Brasil com o visto, legalmente, enquanto mais de 5.000 ainda estão indocumentados e aguardam emissão desse documento. A Adital reproduz aqui, com pouquíssima edição para não interferir no sentimento do texto, um relato de um antropólogo e uma linguista. Geraldo C. Cotinguiba e Marília Lima Pimentel,que trabalham para o Serviço Pastoral do Migrante em Rondônia, que mapearam a situação de flagelo da rota de migração dessas pessoas.

Desde 2010 os estados do Acre e Amazonas se tornaram os principais lugares que os primeiros haitianos conheceram no Brasil e, a partir de então, seriam as duas principais "portas de entrada”. As cidades por onde os haitianos entraram estão situadas numa área conhecida como tríplice fronteira. No Acre (pelo município de Assis Brasil), a fronteira é entre Brasil, Peru e Bolívia e no Amazonas (pelo município de Tabatinga), entre Brasil, Peru e Colômbia. Nos dois lugares entram, em geral, por pontes que ligam os dois países, salvo caso de travessia de barco.
Entre o Haiti e o Brasil, o trecho percorrido é o seguinte: de ônibus ou de avião para a República Dominicana, voo direto para o Panamá e, de lá, até o Equador, de onde seguem de ônibus para o Peru. Do Peru, mais uma vez de ônibus, cruzam o país até a fronteira com o Brasil, onde entram a pé ou em táxi boliviano ou peruano. Dependendo da rota que é feita, a um preço que pode chegar até US$ 100,00 por pessoa, em viagens com uma média de seis passageiros por veículo.
O custo médio da viagem é de três mil dólares estadunidenses (US$ 3.000,00). No caminho, especialmente no Peru e Bolívia, muitos relataram que foram extorquidos por policiais, em conivência com os coiotes - rede de traficantes de pessoas. Além de casos de estupros e assassinatos. Em alguns casos que temos conhecimento, além da extorsão do dinheiro, ainda lhes eram roubados os objetos pessoais, como roupas e sapatos.
Uma vez no Brasil, afora algumas dificuldades, os imigrantes narram que não sofreram violência, como aconteceu no trajeto realizado. Além das cidades da região amazônica, de acordo com nossa pesquisa etnográfica realizada em Porto Velho, temos informações sobre a presença de haitianos nas cidades de Belo Horizonte (MG); Florianópolis, Itajaí e Navegantes (SC); Cuiabá e Rondonópolis (MT); Campo Grande (MS); Curitiba, Londrina e Pato Branco (PR); Goiânia (GO); Porto Alegre (RS); Rio de Janeiro (RJ); e São Paulo (SP).
Etnografia
O primeiro grupo de haitianos que chegou a Porto Velho foi na primeira semana de março de 2011, quando 105 desembarcaram na cidade. A chegada à cidade foi o que podemos chamar de "acidente de percurso”, pois o plano inicial dos primeiros haitianos era São Paulo ou Rio de Janeiro, cidades que eles imaginavam possibilitar muitos empregos devido à realização da Copa do Mundo de Futebol. Porto Velho foi por indicação obtida no Acre com pessoas do governo local, que lhes informou ter emprego nos canteiros de obra das hidrelétricas em construção no Rio Madeira, Santo Antônio e Jirau.
Uma certeza temos: a de que o momento econômico em que se encontra a cidade de Porto Velho acenou, e continua acenando, como possível empregabilidade para os imigrantes haitianos. Isto, impulsionado pela circulação de capital advindo do processo de construção das duas Hidrelétricas, Santo Antônio e Jirau que pode oferecer emprego, não só diretamente em seus canteiros de obras, mas pela ampliação dos postos de trabalho em toda a cidade. Ou seja, houve um superávit de trabalho, mas o panorama está sendo alterado com a aproximação do fim das obras ou, pelo menos, das principais fases de maior empregabilidade.
Aos poucos, percebemos que, com algumas dificuldades - como a língua, a ausência de uma política nacional e local sobre imigração, falta de respeito às relações trabalhistas, dentre outros - a inserção social dos haitianos na cidade vem ocorrendo com diferentes aspectos. Menos difícil para alguns, mais difícil para outros.
Os principais ramos de trabalho são a construção civil para a maioria, a limpeza urbana, alimentação e serviços. As mulheres encontram mais dificuldades pela limitação imposta pela língua, pois a maioria delas só fala o crioulo haitiano, enquanto os homens, por terem vivido na República Dominicana, falam o espanhol e isso facilita a comunicação, além de muitos falarem o francês, além do crioulo. Isso tem favorecido em alguns aspectos, como a comunicação no trabalho.
Atualmente, estimamos em cerca de mil e duzentos haitianos em Porto Velho, majoritariamente homens. Não se sabe o número exato e isso é um reflexo nacional, pois não há uma triagem do governo brasileiro e de nenhum governo local, o que não é diferente em Rondônia, devido ao permanente fluxo dessa migração que se encontra ininterrupto e assim imaginamos que continuará pelos próximos anos.
A cada dia, haitianos chegam e saem das cidades. A permanência ou a locomoção se dá em função do trabalho ou pela segurança de uma baz, ou seja, uma base, na qual pode contar com o apoio de um membro da família ou amigo íntimo. É possível percebermos que o grupo está se organizando por meio de ações como a formação de uma associação, criada há um ano, que promoveu a festa da bandeira, em 18 de maio deste ano.
As mulheres são minoria, algo que pode ter relação por questões de tradição em uma sociedade que o homem ainda é o provedor principal. A faixa etária média é entre 25 e 35 anos para ambos os sexos. Há cerca de 100 crianças, muitas já nascidas na cidade e outras vindas do Haiti. Algumas fazem parte do processo de reunião familiar, recurso de direito do imigrante que se encontra no Brasil e tem o visto de permanência.
Ajuda
A esfera governamental que dispensa um trabalho em relação aos haitianos é a Secretaria Estadual de Assistência Social (SEAS), agindo como interlocutora entre os haitianos e algumas empresas locais interessadas na contratação. Também tem intermediado a relação com empresas de outros estados que buscam esses trabalhadores. No âmbito municipal, nenhum projeto ou ação aconteceu até o momento. Os serviços públicos na área de saúde e educação são utilizados pelos haitianos por iniciativa dos necessitados – mesmo com alguns entraves, em alguns casos –, assim como resolução de problemas advindos em alguns contratos de trabalho, quando recorrem a advogados que se dedicam a causas trabalhistas. Na esfera municipal não há, até o momento, projeto algum em relação a esses imigrantes.
O trabalho humanitário tem sido realizado, principalmente, pelo Serviço Pastoral do Migrante (SPM) da Igreja Católica desde a chegada do primeiro grupo. Além do empenho de algumas paróquias que atuam junto aos migrantes que chegam. Há ainda, algumas igrejas evangélicas que realizam atividades voltadas para os haitianos, arrebanhando, assim, mais fiéis. Os espíritas oferecem atendimento básico de saúde – indistinto de nacionalidade – que são utilizados por alguns haitianos, além de um bazar de roupas usadas a preços módicos. Além disso, há duas igrejas – de vertentes evangélicas –, uma das quais foi inaugurada no dia 23 de novembro. Em ambas, os cultos são realizados em crioulo, a língua materna dos haitianos.
A Universidade Federal de Rondônia (UNIR) oferece um curso de português para os haitianos, por meio de um projeto de extensão universitária, em que estudantes de Letras, coordenados por uma linguista e um antropólogo (os autores desse relato), têm a oportunidade de vivenciar a experiência da sala de aula como uma forma de estágio, além da possibilidade de fazerem pesquisa e, acima de tudo, poder conviver de perto com os imigrantes e experimentar, na prática, a alteridade. O curso tem como objetivo oferecer, além das aulas de português, noções sobre a cultura brasileira, leis trabalhistas, geografia, economia, além da possibilidade de ensino de francês pelos haitianos, que até o momento foi realizado apenas um curso dessa natureza.
O projeto de extensão da UNIR teve início em julho de 2011, no auditório da Paróquia São João Bosco, onde permaneceu por um ano. Em 2012, devido ao aumento dos alunos imigrantes, foi mudado para a Escola Estadual 21 de Abril. Até o momento já foram atendidos mais 700 haitianos com diferentes períodos de permanência, às vezes um mês, outros dois ou três. A permanência é de acordo com o horário ou local de trabalho. Muitos frequentam alguns dias, aprendem um pouco de português e seguem para outras cidades.
O material didático é produzido pelos professores e os estudantes, adequado à realidade e à necessidade. Mesmo com a alta rotatividade, há um grupo que se mantém desde o início e apresenta bom domínio da língua portuguesa. As turmas são divididas em níveis: iniciantes, intermediários e avançados. O público é heterogêneo, pois há pessoas com pouquíssima escolarização e àqueles que concluíram o ensino universitário no Haiti. Isso se mostra como uma dupla faceta, uma dificuldade por um lado, com a necessidade de nos adequarmos à demanda; e, por outro, desenvolver a habilidade de conciliar essa heterogeneidade e lograr êxito nessa empreitada.
O quadro geral atual é o seguinte:
6519 receberam vistos de Residência Permanente expedidos no Brasil até 17/09/2013;
3.500 entraram documentados no país;
4.622 vistos permanentes foram outorgados pelo Consulado Brasileiro no Haiti até 8/11/2013;
-1.060 vistos a título de Reunião Familiar foram outorgados até 8/11/2012 pelo Consulado Brasileiro no Haiti até 8/11/2013;
150 180 vistos semanais é a capacidade média de emissão de vistos no Consulado Brasileiro no Haiti;
10.000 haitianos ou mais estão no Brasil com o visto;
5.000 haitianos ainda estão indocumentados e aguardam emissão desse documento;
20.000haitianos no Brasil é a estimativa do SPM.
* Geraldo C. Cotinguiba é antropólogo e colaborador do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) e Marília Lima Pimentel é dra. em Linguística da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

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