sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Jornadas de junho: três enganos e uma hipótese

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Jornadas de junho: três enganos e uma hipótese

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Conjuntura rara permitiu que setores sociais com interesses opostos estivessem juntos nas ruas. Tensões maiores virão no futuro próximo
Por Luís Fernando Vitagliano
Em se tratando dos fatos políticos recentes, nossas ciências sociais estão claramente em dívida. Não temos, ao largo do que se escreveu e/ou discutiu, uma explicação razoável sobre os fatos. Refiro-me especificamente às manifestações de junho no Brasil e quero centrar essa análise em suas interpretações e recentes desdobramentos.
Geralmente, um relativo consenso se estabelece a respeito dos fatos sociais que, com maior ou menor grau de radicalismo, nutrem a memória coletiva. Ao analisar diferentes visões sobre os acontecimentos, tenho o propósito de afastar-me dos desejos políticos que hoje motivam as paixões da grande maioria dos analistas. De tudo que foi publicado sobre as manifestações, seleciono pelo menos três perspectivas sintomáticas.
Uma das visões é defendida por intelectuais como Marilena Chauí e outros professores de Ciência Política, como os presentes no debate da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), em Águas de Lindoia em setembro (entre eles Claudio Couto e Adriano Codato). Para esta linha, o que ocorreu no Brasil foi um princípio de intolerância política com fortes traços de fascismo. As manifestações foram interpretadas a partir de fontes eminentemente conservadoras e com pautas que substituíram as questões públicas pela defesa de moralismos perigosos à democracia. A pauta acabou sendo sequestrada por reações antipartidárias que beiravam o golpismo barato. Esta visão foca, portanto, nos traços reacionários que se destacaram em vários momentos de junho. Mas não explica como estes traços foram capazes de substituir as pautas inicialmente progressistas (transporte público de qualidade, melhores condições sociais, políticas universais de saúde, educação e cultura etc). Também não explica como a direita tomou as ruas, já que este é um espaço de ação política usado por uma maioria crítica ao capitalismo. Parece ser, portanto, uma interpretação distorcida, ao forçar a sobreposição da pauta de direita sobre a da esquerda — o que não ocorreu em proporções tão grandes, se é que ocorreu.
Outra visão associa os protestos de junho a manifestações mais amplas e de abrangência mundial que começaram bem antes, com os movimentos antiglobalização de Seattle, passando pelo recente Occupy Wall Street. Tratando de interpretar os acontecimentos por este rumo, surgiram (inclusive em Outras Palavras) vários artigos. Intelectuais como David Harvey e Manuel Castells destacaram as semelhanças entre os movimentos. Até Francis Fukuyama, à direita, comparou as manifestações de junho no Brasil com a “Primavera Árabe” – lógico que apresentou ambos os casos como sintomas de que a democracia liberal está se expandindo pelo mundo. No Brasil sobressaiu-se, na defesa deste ponto de vista, Vladimir Safatle. Mas há vários problemas também com essa visão. Um deles é supor que os manifestantes faziam ligações entre os acontecimentos locais e os globais, que grupos como os Black Blocs do Brasil ligavam-se em rede aos outros movimentos internacionais. O Brasil não viveu os efeitos da crise de 2008 como os países desenvolvidos. Em grande parte da Europa atingida pela crise, o desemprego entre os jovens é alarmante. Aqui, o máximo de internacionalização do movimento que conseguimos foi relacionar as políticas públicas com a Copa de 2014, como em um cartaz que ficou famoso: “Queremos hospitais no padrão FIFA!” De resto, o antiglobalismo e o anticapitalismo surgiram de forma muito mais autoritária e antidemocrática que nos casos citados internacionalmente. Nem os manifestantes daqui são iguais aos do “primeiro mundo”, nem os poucos que se identificavam com movimentos internacionais de resistência converteram-se em atores significativos – não foram convincentes e estão muito mais para figurantes que protagonistas.
Uma terceira linha, da qual o principal porta-voz talvez tenha sido o ex-presidente Lula (e que ganhou muita audiência nos quadros do governo), refere-se ao triunfo da mobilidade social. Para Lula, um dos fatores para a mobilização de junho foi a ascensão dos pobres. A conquista de melhores condições de vida pelos menos favorecidos teria gerado pressão por melhorias imediatas nos serviços públicos. O motivo de os cidadãos se insurgirem (ou surgirem…) teria sido reclamar seus direitos. Agora têm carro; querem locomover-se; o trânsito das metrópoles os impede. Ou: agora que têm emprego, querem mais ônibus para ir ao trabalho. Têm celular, e querem que as redes das operadoras funcionem. Plano de saúde, educação. Enfim: maior padrão dos serviços, que agora passaram a ter ou a poder comprar. Essa visão tem pelo menos o mérito de partir de fatos verificáveis, mas seu problema está no mesmo limite das hipóteses anteriores: é uma interpretação limitada. Ignora o papel da direita política. Além disso, desconhece que a pauta se ampliou, como revela um slogan frequente em junho: “não são apenas vinte centavos”. Os pobres que conquistaram direitos não foram menos importantes que a classe média que criticava os políticos e reivindicava  uma campanha anticorrupção.
Poderíamos dizer que há uma quarta visão: a crítica ao governo e suas medidas. Mas essa é, principalmente, uma tecla ensaiada pelos partidos de oposição para sequestrar o momento político. É simplista e não nos vale mais que citar, por sua pobreza evidente…  Ou esta visão está contemplada na primeira — e apresentou faces autoritárias –, ou é apenas marketing político que não colou.
Em busca de uma visão de síntese sobre junho, que supere os limites apontados anteriormente, proponho partir das próprias contradições do movimento. As manifestações de junho foram um evento sem precedentes, único e irreprodutível nas suas origens. O inusitado de uma janela histórica permitiu reunir contradições sociais muitos fortes, a ponto de deixar as mentes mais perspicazes em paralisia — ou seja, com enorme dificuldade para entender o que levou tanta gente diferente às ruas.
Junho foi único. O Movimento Passe Livre (MPL) surpreendeu em termos de reivindicação e capacidade de mobilização. Mas sua atuação não explica o que se sucedeu. Seus sucessos iniciais estão ligados à dificuldade dos governos para ler as insatisfações — muito mais para lidar com elas. Os jornais falharam. A polícia ainda age como se estivesse em tempos de ditadura. Diante da paralisia das velhas instituições, as mídias sociais surgiram como grande novidade e tiveram um papel catalizador. A mídia alternativa foi fundamental para desbancar as maquiagens arquitetadas por governos e forças políticas antidemocráticas. O jogo mudou na medida em que o mar de descontentes reconheceu a legitimidade de protestar. Em algum momento, protestar por qualquer coisa ganhou vasto apoio da sociedade.
À mobilização dos grupos ligados à agenda social somaram-se as insatisfações das classes médias, que há muito ensaiavam ir às ruas. Ambos os vetores somaram-se porque, quanto maior a massa, mais as pautas ganhavam destaque. A direita empresarial do antigo movimento “Cansei” e o MPL nas ruas, lutando por transportes públicos de qualidade e contra a corrupção. Cada um a seu modo, mas todos nas ruas. Tanto é verdade que, tão logo as contradições começaram a tornar-se claras, o movimento geral perdeu fôlego e dispersou.
Porém, mais do que contraditórias, as pautas de junho eram genéricas, pouco claras. Congregaram interesses distintos, embora isso não tenha sido percebido, num primeiro momento. Vale a pena um esforço para entender as forças presentes nos protestos como de fato são — e não como se manifestam na aparência.
Não seria útil rotular junho como movimento majoritariamente de direita ou de esquerda, social ou político, mas como um momento epifânio de explosão de muitas pautas — que, em situações de normalidade, nunca seriam postas nas mesmas ruas. Como não havia uma mesa de negociações, esses muitos movimentos inicialmente não se viram como contraditórios. No primeiro susto a respeito do que se esperava com os protestos, parte dos militantes que deram os primeiros passos em direção às ruas recuou.
Minha tese é que as contradições no seio da sociedade motivaram os protestos de junho. Foi um momento em que os contrários não se dividiram, somaram-se. Pouco antes, a pauta pública havia deixado de se renovar. As ruas expressaram o esgotamento dos avanços sociais. Ambos os extremos da sociedade pressionavam por políticas governamentais que os favorecessem. Lula tem razão: a necessidade de melhorias para os cidadãos é uma agenda fundamental. Isso explica porque um Celso Russomano, com sua pauta de reivindicações focada nos consumidores, teve tanta audiência na  disputa pela prefeitura de São Paulo, um ano antes. É uma pressão que vem dos setores oprimidos.
Mas, não devemos ignorar a relação dialética entre os ganhos sociais e as classes. A visão das esquerdas mostra-se míope por não perceber que os setores abastados também foram afetados (ainda que indiretamente) pelos movimentos das classes subalternas. Seja no aumento das filas nos aeroportos, seja pelo custo dos serviços em geral ou pelo “ultrajante” resgate da cidadania, que permite ao oprimido reclamar seus direitos… A dialética sugere que nenhuma ação histórica existe sem sua antítese. E não se eleva o poder dos pobres sem alterar a correlação de forças com os ricos. O governo é o colchão que acomoda todas essas demandas. Nas ruas, em junho, foram os governos os alvos. Porque eles estavam na linha de frente da defesa dos interesses dos opressores e na retaguarda dos ganhos dos oprimidos.
Diante de todos esses contrastes, erraram todos os que viram, nas ruas de junho, consequências de longo prazo. Os protestos não desencadearam mudanças; por enquanto, eles expressaram reações diante do que houve anteriormente: maior acesso das maiorias a uma parcela da riqueza; incômodo de setores da classe média com isso. Talvez o próprio projeto de ampliar benefícios sociais sem alterar a estrutura de renda esteja no seu limite. É possível que manter a trajetória iniciada há dez anos não seja mais praticável, sem produzir fissuras nas estruturas que reproduzem desigualdade e privilégios. Isso, naturalmente, despertará reações no chamado “andar de cima”. Para escandalizá-lo, nem é preciso falar de reforma agrária — basta mencionar a reforma tributária…
Junho não pode ser visto como algo maior do que foi. Foi um momento de catarse, não de transformações sociais. Nenhum dos movimentos que se uniram naquela ocasião têm hoje força para lançar isoladamente uma convocação expressiva de protesto. Os fatores históricos que permitiram aqueles acontecimentos dispersaram-se e os diferentes setores, antes unidos em uma mesma luta, já não se reconhecem.
Se a pauta de reivindicações não pôde ser capturada pelas direitas, hoje na oposição, uma boa dose de realidade permitirá perceber a dimensão dos desafios com que se deparam as esquerdas, no futuro próximo. Para que sejam efetivos, os avanços sociais deverão atingir diretamente os privilégios das classes dominantes. Haverá vontade e força suficiente para tanto? Caso contrário, como isso comprometerá o projeto político que chegou ao governo há dez anos?
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