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O que não nos mata, nos fortalece
Por Michèle Sato
Era inverno na Europa e Portugal se revelava mais fria do que das últimas vezes que lá estive. O céu escuro me dava certeza de que o centro-oeste brasileiro estava distante um oceano inteiro. Em ritmo de sol nictêmero, chuva e vento marcavam o frio que me obrigava a usar diversas roupas no incômodo do movimento, mas simultaneamente no prazer do frio incomum de quem vive num clima totalmente tropical do lado de baixo do Equador.
Dois eventos marcaram o mês de janeiro nas terras da lusofonia. O primeiro evento denominado “Earth Condominium[1]” foi organizado pela Quercus, uma organização não governamental ambientalista (ONGA), que possui enorme respeitabilidade em Portugal. Entre seus diversos projetos, eles lançavam mais uma proposta econômica ao planeta. Ancorado nas leis espanholas que permitem que um condomínio seja território mais amplo que o privado, as dimensões da camada de ozônio, proteção da biodiversidade e mudança climática eram as portas de entrada de uma arrojada proposta mundial de se valorar o ambiente. Ainda em plena construção, foram convidados 6 debatedores internacionais para discutir a proposta, mas para além disso, tecer considerações sobre as diversas especialidades oriundas de diversos países.
Honrava o evento a presença do sheik da Arábia Saudita, que superando minhas expectativas em relação à realeza, dava pistas claras que sua visão ambiental associava-se à injustiça social. De fato, os debates calorosos durante o evento reportaram os Direitos Humanos como condição sine qua non de sustentabilidade planetária. A proposta ainda está em plena construção, e no início tive certa dificuldade em compreendê-la, pois me parecia uma mistura de várias propostas, como a ênfase na economia e biodiversidade da avaliação ecossistêmica do milênio, mas também havia ligação com a inusitada teoria Gaia de Lovelock. De tudo, o que se fazia nítido era o desejo de salvaguardar um planeta já em estado avançado de deterioração socioambiental.
O evento aconteceu no auditório do Parque Biológico de Gaia, um espaço deliciosamente bem cuidado que agrega um bom alojamento aos visitantes, zoológico, horto florestal, fazenda sustentável e alguns museus temáticos muito bem feitos do ponto de vista científico e tecnológico.
De Porto, parti para Leiria, um município muito bonito com muitos atrativos turísticos, como catedral, castelo, ruas medievais ao lado de prédios modernos, arquitetura contemporânea e a estética entre o velho e o novo da paisagem europeia. O espaço central, entre o teatro municipal, o mercado e as ruas periféricas foram tomados pelos participantes da XX Jornadas da Associação Portuguesa de Educação Ambiental (ASPEA)[2], organismo que anualmente promove os encontros dos educadores ambientais, além de coordenar alguns projetos socioambientais com muito talento.
Convidada oficialmente como representante da Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA), minha conferência de encerramento trouxe a dimensão de SOCIEDADES sustentáveis, no contraponto ao DESENVOLVIMENTO sustentável.
Em 2005, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) lançava a década do “desenvolvimento sustentável” na Europa, e a ASPEA promoveu o encontro me convidando para debater a orientação mundial que se apresentava confusa, já que além de fixar um período de 10 anos, direcionava a educação para apenas um determinado fim: o desenvolvimento. A análise foucaultiana diria que a Unesco quis controlar o que pode ser dito numa certa época para filtrar os perigos e as possíveis subversões que poderiam aparecer. Convém sublinhar que a educação é atemporal, isto é, ela é um processo duradouro e não se limita aos períodos temporais fixos.
Foi exatamente a noção desenvolvimentista que trouxe as desigualdades sociais, com autorização absoluta da destruição da natureza, já que esta representava o primitivo selvagem e a ordem (e o progresso) era ancorada na modernidade urbana. Em nome deste desenvolvimento, diversas agressões foram cometidas contra a natureza, que na maioria das vezes trazia consequências desastrosas aos grupos humanos economicamente desfavorecidos, em completa violação dos direitos humanos.
Mas o jargão “desenvolvimento sustentável” conseguiu ser hegemônico: virou discurso cotidiano aos jovens sufistas, aos sindicalistas de esquerda, aos movimentos sociais e inclusive aos latifundiários, eliminando as diferenças, mascarando o antagonismo ideológico das identidades dos sujeitos. Pasteurizou-se o conceito, na supremacia de um discurso que ainda encerra o velho capitalismo, mas agora com nova roupagem.
De fato, após 7 anos do lançamento da década da UNESCO, pouco se fez ou se concretizou em termos desta educação direcionada ao desenvolvimento sustentável, e foi na América Latina que a Unesco encontrou mais resistência. Podemos ignorar a orientação hegemônica da Unesco, mas ela não conseguiu nos ignorar. A educação ambiental assim se fortaleceu, já que no contexto histórico nietzschiano “o que não nos mata, nos fortalece”. Seus belos frutos continuam palpitando e mostrando a beleza nas XX Jornadas da ASPEA, que não se sucumbiu ao poder hegemônico e permaneceu viva e dinâmica.
No Brasil, a educação ambiental é pautada na premissa de que onde há um crime ambiental, há também um crime social que atinge os grupos sociais vulneráveis. É no contexto de tentar proporcionar possiblidades de escolhas que os direitos humanos têm sido sublinhados nas agendas de compromissos dos educadores ambientais. Obviamente há que se lembrar que há várias leituras da educação ambiental, assim como diversos grupos atuantes de direitos humanos. É na diferença que se constrói a cidadania, ainda que pelos diálogos tensivos de quem não mais deseja a mediação pedagógica, pois reconhece que a sociedade democrática é tensiva por causa de suas diferenças. Se a proteção da biodiversidade é um completo consenso entre os educadores ambientais, talvez esteja na hora de enfrentarmos com mais seriedade sobre a diversidade étnica, sexual, cultural, social, econômica ou espiritual. São bandeiras de lutas que aproximam a educação ambiental dos direitos humanos, e em suas dimensões mais amplas que transcendem o antropocentrismo, fazendo emergir também os direitos da Terra.
Michèle Sato é líder do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte (GPEA) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
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