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Enfim, algo se fez!
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Enfim, algo se fez!
ESCRITO POR DÉBORA F. CALHEIROS |
QUI, 31 DE JANEIRO DE 2013 |
Diante da cegueira, inércia, omissão e conivência coletivas e deliberadas em relação a todo o absurdo processo de revisão do Código Florestal, que recebeu até a denominação de “novo” (embora de novo não tenha nada, já que é tecnicamente e legalmente retrógrado...) e chegou a ser aprovado como lei (Lei 12.651/2012), alguém agiu com o profissionalismo que se espera pelo posto que ocupa: a Procuradora-Geral da República em exercício, Sra. Sandra Cureau.
“O processo legislativo foi dominado por propostas que tinham como pano de fundo um único objetivo: desonerar os proprietários rurais dos deveres referentes à proteção das florestas e, ainda, ‘anistiar’ ilegalidades antes cometidas”, avaliou a Procuradora (1), questionando a constitucionalidade do texto sancionado.
Tudo que afrontosamente tivemos o desprazer de acompanhar neste vergonhoso drama kafkaniano e freyriniano, sob pressão direta e indireta de apenas um setor da sociedade, o setor do agronegócio, o mais interessado economicamente em sua aprovação... Foi uma clara afronta à nossa Leia Magna, que deveria ser seguida à risca por todos, em especial os do poder público, mas contou com chancela presidencial.
Afronta ao Artigo Constitucional 225, a tudo que se possa imaginar em termos de embasamento técnico, às políticas públicas nacionais e internacionais e à Política Nacional de Meio Ambiente e de Recursos Hídricos e legislação vigentes, sem falar nos aspectos ético e moral. O Código Florestal original não era perfeito, mas, ao menos, tinha bom senso e era técnico.
Uma afronta também aos cientistas de instituições de renome como USP/ESALQ, UNESP, UNICAMP, UFRJ, INPA, INPE, UFMT, UnB, UNIFESP (2), entre várias outras, além da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Até mesmo a Embrapa, considerada como referência pelo próprio setor ruralista, embora tenha se omitido deliberadamente do debate público e censurado funcionários, tem – como era de se esperar, dada a qualidade de seu corpo técnico – inúmeras publicações (3) de qualidade sobre o tema.
Uma afronta à Ciência, com “C” maiúsculo, com rigor técnico e comprometimento com o bem público. Desrespeitados foram também os brasileiros que se manifestaram contrariamente nas ruas e nas redes sociais através de cerca de 3 milhões de assinaturas entregues oficialmente à presidente nas diferentes campanhas do “VETA DILMA!”.
Tudo absurdamente ignorado: leis, políticas públicas, ciência, bom senso e opinião pública. Entretanto, cede-se vergonhosamente às pressões políticas de um setor que tem sido historicamente um dos mais privilegiados deste país e com grande participação e responsabilidade no nível de degradação ambiental e social na área rural – obviamente, com conivência e omissão de órgãos públicos.
Quem respeita a lei é, mais uma vez, desrespeitado neste país. Quem avilta a lei continua sendo favorecido. Inversão total de valores mantida por governos que se afirmavam popular, republicano e democrático. Acontece no caso dos transgênicos, no uso indiscriminado de agrotóxicos e se repete no caso do Código Florestal. Cria-se o fato ilegal, argumenta-se com base em pseudociência e muda-se a legislação. Simples assim.
Desde a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (também conhecido como Estocolmo+30 e Rio+10), realizada em 2002 em Johanesburgo, a ONU e a OMS têm enfatizado a importância de se considerar o uso de água doce como uma questão ética, salientando a necessidade de se incluir o aspecto de gênero relacionado ao papel da mulher na ética do uso da água (4). Como a água é a fonte da vida e porque a água potável é um componente crucial da saúde, a questão ética é uma questão de sobrevivência para a humanidade (!).
As mulheres, também como fontes de vida, têm um papel de liderança na promoção da ética ambiental. Mulheres, especialmente as de comunidades e povos tradicionais, segundo a ONU, têm conhecimento sobre as relações ecológicas e a gestão de ecossistemas frágeis, conhecimento fundamental para a sobrevivência da humanidade (!). De acordo com a mesma ONU, ações para o desenvolvimento sustentável que não envolvam as mulheres não terão sucesso.
Como mulher e cientista da área de recursos hídricos, ecologia de rios e gestão de bacias hidrográficas, me espanta tamanha desmoralização da ciência e das políticas públicas, realizada por pessoas que deveriam responsavelmente embasar suas decisões em informação de qualidade. Ignorar ciência na era da informação é praticar um desserviço ao país; é praticar improbidade administrativa no caso de funcionários públicos; é agir inconstitucionalmente.
Pergunta-se: como imaginam que se possa fazer gestão ambiental e de recursos hídricos na escala de uma bacia hidrográfica, levando em conta regras diferenciadas para cada propriedade em separado, sem considerar o sistema como um todo? Não só a Constituição foi desrespeitada, mas a Lei de Administração Pública, a Lei de Recursos Hídricos, as políticas da ONU, a Convenção Ramsar, a Convenção do Clima e a de Diversidade Biológica, a ética...
Que bom, então, que a Sra. Sandra, uma mulher, fez o seu papel como funcionária pública e agiu. Ou teria ela, porventura, se sensibilizado e bebido da mesma fonte das avós do projeto “A Voz das Avós – no Fluir das Águas”? (5)
Outras mulheres com poder político, como as Sras. Dilma, Izabella, Gisela e Kátia, frente a tudo que já sabemos nesses finais da Década da Água (6), precisam urgentemente beber muito dessa fonte que as tornariam mais femininas no amplo sentido da relação maternal de cuidado com a vida, com a água, com a mãe Terra.
Notas:
(3) Exemplos de publicações da empresa - bioma Cerrado:
http://www.cpac.embrapa.br/download/365/t
http://www.cpac.embrapa.br/download/1360/t http://www.cpac.embrapa.br/download/1547/t http://www.cpac.embrapa.br/download/1297/t http://www.cpac.embrapa.br/download/1922/t
PS- Sugestão técnica: Recomeçar todo o processo novamente para se discutir e elaborar uma nova legislação, respeitando a Política Nacional de Recursos Hídricos, regida pela Lei Nacional de Recursos Hídricos, ou seja, garantindo a participação de toda a sociedade, necessária para a efetiva gestão de recursos hídricos como previsto nas referidas Política e Lei. A legislação determina que a gestão seja participativa e tripartite, garantindo que representantes de todos os setores da sociedade (usuários, sociedade civil e governos), de forma paritária, exerçam sua cidadania, mas com o devido embasamento técnico da SBPC, ABC, Embrapa, Universidades e outras instituições de pesquisa. Para tanto, poder-se-ia utilizar o método das Conferências Nacionais, muito bem realizadas durante o governo Lula, com o apoio dos comitês de bacia e universidades locais, mas tendo como produto final a efetiva produção de um Projeto de Lei. Tal proposta coletiva seria posteriormente analisada pelos Conselhos Nacional de Recursos Hídricos e de Meio Ambiente, e posteriormente referendada por meio de Plebiscito Nacional. Água é assunto coletivo. Proponho então esta inovação. Fala-se tanto em inovação tecnológica atualmente, mas, na área de gestão de recursos hídricos, uma inovação (apesar de não tecnológica) simples de ser implantada seria o respeito às leis vigentes e às Convenções das quais o país já é signatário, todas bem embasadas em Ciência.
Débora F. Calheiros é bióloga.
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