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http://www.canalibase.org.br/o-que-os-gays-tem-a-ensinar-aos-ativistas-do-clima/
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Lições do movimento LGBT para o debate do clima
Renzo Taddei*
Para o Canal Ibase
Para o Canal Ibase
Há alguns anos participo de um centro de pesquisas multidisciplinar, sediado na Universidade de Columbia, em Nova York, dedicado a estudar como as pessoas e grupos entendem informações científicas sobre o clima, e como isso afeta (ou não) suas vidas. Na última reunião anual no centro, em maio passado, notei a presença de pessoas desconhecidas, uma das quais em farda militar. Tratava-se de um almirante da marinha norte-americana, recentemente feito membro do conselho científico do referido centro. Munido dos meus mui latino-americanos preconceitos sobre tudo o que seja militar, e sabendo dos esforços de conservadores republicanos para impor sua atitude de negação do problema climático ao Pentágono, enchi-me de preocupação: o que seria aquilo? Um movimento estratégico do centro de pesquisa, rumo à direita, de modo a tentar salvar-se em um contexto de políticas de financiamento hostil às ciências sociais e humanas?
Minha preocupação durou apenas até o almirante pedir a palavra, durante uma discussão sobre as dificuldades envolvidas na criação de estratégias para a transformação da opinião pública norte-americana sobre o fato das mudanças climáticas e sobre a necessidade da transformação nos padrões de produção e consumo de energia. “Precisamos tomar o movimento gay como exemplo”, ele disse, contrariando todas as minhas expectativas. “Há alguns anos, gays eram massivamente estigmatizados e hostilizados neste pais; hoje em dia, há uma aceitação muito maior da diversidade sexual. O movimento gay obteve um sucesso estrondoso em seu esforço de transformar a opinião pública, e precisamos entender como o fizeram”.
Tenho certeza de que muitos ativistas do movimento LGBT colocariam esse sucesso estrondoso em questão, mostrando que a homofobia e a transfobia ainda fazem vitimas. Mas é inegável que há elementos do universo LGBT que se fazem presentes no imaginário coletivo sem os constrangimentos do passado, em especial no que diz respeito à mídia e às artes. No Brasil, as telenovelas são talvez o exemplo paradigmático disso: em cerca de uma década, os personagens gays se multiplicaram e se diversificaram, ganharam complexidade psicológica e protagonismo mais significativo nos enredos. O cenário é complexo, o estereótipo empobrecido de alguns autores convivendo com abordagens mais ricas de outros; no entanto, há avanços sensíveis. O primeiro beijo gay do horário nobre da TV americana ocorreu em 2001; no Brasil, isso se deu apenas em 2011.
Ocorre que a fala do almirante se deu pouco mais de um ano após a defesa de uma excelente tese de mestrado, de autoria de Luiz Henrique Coletto e por mim orientada, sobre as estratégias usadas por uma das mais importantes organizações de ativismo cultural LGBT na mídia nos Estados Unidos, a Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD). As palavras do almirante fizeram com que ambas as coisas – a questão climática e o ativismo LGBT – se conectassem em minha mente. Ninguém naquela reunião era capaz de responder ao almirante; talvez, relendo a tese do Luiz Henrique Coletto, eu possa ensaiar uma resposta, apontando alguns fatores relevantes.
Antes, no entanto, é preciso que se diga que, apesar de seu papel fundamental na transformação da opinião pública nos Estados Unidos, não se pode reduzir às ações da GLAAD todos os avanços do movimento LGBT daquele país. Nenhum universo sociopolítico se resume à sua existência midiática (nem mesmo as eleições no Brasil, apesar do que se possa pensar); se fosse necessário reduzir a complexidade dos embates políticos contemporâneos intranacionais a apenas duas dimensões fundamentais, uma seria provavelmente o par mídia-opinião pública, e a outro seria os embates legislativos. Para resumir: relações públicas e advogados. As ações da GLAAD se dão apenas no campo das relações públicas. E a dimensão jurídica é obviamente fundamental, tanto para o tema das mudanças climáticas quanto para as causas LGBT.
O que a pesquisa do Luiz Henrique revelou é que a GLAAD adota uma abordagem pragmática, onde os sucessos e fracassos são medidos de forma objetiva e em função dos resultados de suas ações e iniciativas. A estrutura da entidade é profissionalizada, e seus integrantes fazem um corpo a corpo diário e incessante com as corporações de mídia, autores, atores, e mesmo patrocinadores dos programas de TV. Conteúdos de TV avaliados como positivos em relação às causas LGBT resultam em elogios públicos da entidade aos autores e produtores; programas homofóbicos são criticados nos meios de comunicação, denunciados às autoridades e, em casos extremos, campanhas de boicote são movidas contra os patrocinadores de tais programas. Os sucessos são medidos por análise quantitativa e qualitativa do conteúdo televisivo, de forma profissional. Não há organização equivalente no Brasil; os avanços por aqui tendem a refletir o ativismo individual de atores isolados, dentre os quais alguns autores de TV de destaque.
Há dois elementos de contraste marcado, quando esse cenário é colocado lado a lado com o panorama do ativismo climático. Os dois elementos, no entanto, são lados da mesma moeda: o perfil dos ativistas climáticos da atualidade, nos Estados Unidos e no Brasil, e a forma como esse perfil induz a certas formas de ação política. A maioria dos ativistas do clima são cientistas, ou são indivíduos que se pautam pelas formas de pensamento e ação dos cientistas. Não há nada de estranho aqui: os cientistas que fazem pesquisas ambientais são capazes de monitorar as transformações em curso na atmosfera de forma como os demais indivíduos não o são, e em geral as narrativas que elaboram sobre as alterações atmosféricas ajudam a dar sentido a transformações em curso em outras dimensões dos ecossistemas (extinção de espécies animais, acidificação dos oceanos, alteração do regime de glaciação dos polos, etc.).
Neste contexto, o primeiro elemento mencionado refere-se à pouca atenção dada à comunicação como campo complexo de ação social. Não vou me deter nessa questão; o ponto aqui é que, conforme já pontuei em outro lugar, não há curso de meteorologia no Brasil ou nos Estados Unidos que treine o futuro profissional das ciências da atmosfera para gerir as tarefas de comunicação social das agências em que irão trabalhar. No processo de treinamento do meteorologista, num primeiro momento ele ou ela é levado a crer que a linguagem é transparente (e não pode interferir na comunicação dos resultados das pesquisas científicas – como se isso fosse possível -, que são necessariamente comunicados textualmente, em artigos científicos); num segundo momento, em que começa a trabalhar em uma agência meteorológica, o meteorologista tem seus primeiros encontros e embates com o jornalismo, dos quais nem sempre sai ileso. Com sorte, e depois de muita improvisação, tentativa e erro, o meteorologista aprende o que fazer e o que evitar em sua atividade de comunicação. A desconfiança mútua entre meteorologistas e jornalistas, no entanto, é endêmica. Presenciei isso não apenas no Brasil e nos Estados Unidos, mas também no México, na Inglaterra, na Argentina e no Uruguai.
O segundo elemento, sobre o qual acredito que seja preciso discorrer um pouco mais detalhadamente, diz respeito à atitude dos cientistas frente às demais visões – “não-científicas” – sobre o meio ambiente. Em geral, se há respeito, por parte dos cientistas, a essas outras visões, ele é muito pequeno. Obviamente estou incorrendo aqui no risco de cometer injustiças ao generalizar da forma como o faço. Mas ocorre que me refiro a algo que não é característica exclusiva de meteorologistas: em geral, médicos se irritam frente a rituais “tradicionais” de cura, astrônomos abominam serem confundidos com astrólogos, agrônomos tem a tendência de tratar camponeses como ignorantes. Quanto mais próximo da pesquisa dita “pura” (e mais longe de alguma forma de atendimento ao público), mais marcada é essa característica. Infelizmente, o fato é que nossas universidades produzem intolerância a visões não-científicas do mundo (com variações que vão do sentimento mal disfarçado de superioridade à arrogância declarada) em larga escala – independente, obviamente, das inquestionáveis boas intenções de todos os envolvidos. Há, obviamente, exceções, tão honrosas quanto isoladas.
Um exemplo do que menciono aqui pode ser encontrado em uma das apresentações do humorista John Oliver, em seu programa semanal, Last Week Tonight, transmitido pelo canal HBO em maio passado. Outro exemplo é um artigo de Chris Mooney, da revista Mother Jones, onde este refere-se aos simpatizantes do partido republicano dos Estados Unidos que negam a crise climática como vítimas do “efeito de idiota esperto”; a eles, soma-se a categorias do indivíduo sujeito ao “efeito de idiota rico”, após a divulgação de pesquisa que mostra que, quanto mais rico o republicano, maior sua tendência de negar a crise climática. Mais um exemplo: em um post de fevereiro de 2013, o site Moron Watch afirma que
“debater as mudanças climáticas com negacionistas é, em geral, tão útil quanto discutir com [religiosos] criacionistas. Eles não têm as evidências a seu favor, mas isso não lhes parece causar a menor consternação. Dado que tais pessoas conseguiram passar pela escola sem absorver o mínimo de teorias científicas, não faz sentido tentar ensiná-las agora”.
E o post segue sugerindo 10 questões que supostamente mostrariam a tais indivíduos a irracionalidade ou incoerência de suas posições. A décima questão é: “Olhe no espelho. O que você vê se assemelha a uma pessoa capaz de entender conceitos científicos? A) Sim, b) Não, c) c) Não sei ler – não faço ideia de como consegui chegar até esse ponto do post. E os exemplos se multiplicam, como uma rápida busca na Internet pode demonstrar. O ponto é que tratar o oponente como ignorante e intelectualmente inferior não dá vantagem a ninguém na arena de embates climáticos.
O post do Moron Watch está certo em afirmar que mais argumentação baseada em fatos científicos não tem eficácia; no entanto, a ridicularização do oponente também não (trata-se de um site de humor politicamente incorreto, de modo que não há por que esperar algo diferente de tal fonte). O que ocorre é que o que dá autoridade a cada ideia varia de acordo com o meio social em questão. Entre cientistas e indivíduos “cientifizados”, ou seja, fruto de uma escolarização que privilegia a visão científica, a autoridade vem do emprego correto e consistente dos protocolos de pesquisa científica. Não há nada de autoevidente nisso; para aceitar a visão da ciência, o indivíduo precisa, no mínimo, de longos anos de escolarização.
Ou seja, a abordagem científica é entendida como superior entre aqueles que aprenderam a vê-la como superior. Em outros meios sociais, a autoridade para falar e ter suas ideias aceitas vem de outras fontes (credenciais políticas, sobrenome, possessão da arma de fogo, etc.). A questão aqui não é quais dessas formas são superiores ou inferiores, mas como convencer alguém que vive em um mundo onde as ideias são instituídas ou destituídas de autoridade em função de critérios com os quais você não está acostumado. Em contextos fortemente religiosos, por exemplo, quando uma informação científica chega “emoldurada” por algo que remeta à disputa religião x ciência (a forma como os fatos estão descritos, ou as memórias das pessoas sobre debates anteriores sobre o tema), a ciência vai, invariavelmente, perder a disputa. Na minha percepção, é esse o elemento que o movimento gay nunca teve (ou, se teve, jamais fez disso sua estratégia principal de ação política). A GLAAD, por exemplo, parece se pautar pelos valores do oponente: colocar pressão junto aos patrocinadores de um programa, ameaçando boicotes entre consumidores, é muito mais eficaz do que acusar um determinado programa televisivo de ser homofóbico. Procuram explorar a própria linguagem televisiva, estimulando o uso de histórias de interesse humano sobre pessoas LGBT (um jovem gay agredido; uma mãe aflita porque a filha lésbica foi ofendida na escola), ao invés de utilizar um discurso argumentativo típico de ativistas indignados.
Outro ponto do debate é que o ativismo gay nunca demandou dos seus oponentes que passassem a ver o mundo como este o vê. O objetivo sempre foi mais pragmático: liberdade sexual também é liberdade de pensamento. O que se exige é espaço de existência da multiplicidade, e não a sincronia dos cérebros. Essa lição é fundamental ao ativismo climático: este se preocupa demais com o que pensam os que não pensam como eles, e ao invés disso deveriam se preocupar com o que fazem os que têm agendas que se contrapõe às suas. As duas coisas não são iguais. Cito, por exemplo, e mais uma vez, a afirmação do grande xamã ianomâmi Davi Kopenawa: em uma apresentação no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2011, ele afirmou que muitos dos xamãs amazônicos vêm trabalhando na mitigação das mudanças climáticas há muitos anos, e o que os cientistas são capazes de detectar, em seus equipamentos, é apenas o que os xamãs indígenas não foram capazes de corrigir. Esse é o tipo de afirmação que irrita muitos cientistas, ainda que isso seja uma atitude equivocada: Davi Kopenawa está tão preocupado, senão mais, do que os ativistas do clima, e seus objetivos são os mesmos. As grandes corporações petroleiras, por outro lado, entendem o mundo exatamente como os ativistas do clima; seus objetivos, no entanto, são diametralmente opostos. Quem é amigo e quem é inimigo nesse panorama?
Para não dizer que não se está fazendo nada a esse respeito, é preciso mencionar que centros de investigação sobre como comunicar de forma efetiva as questões climáticas surgiram em diversas instituições de pesquisa, como o Yale Forum on Climate Change & The Media, na Universidade de Yale, o Media, Ethics and Climate Change Project do Center for Science and Technology Policy Research da Universidade do Colorado em Boulder, o Center for Climate Change Communication na Universidade George Mason, o Center for Research on Environmental Decisions na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos; no Brasil, há o Labjor, da UNICAMP, além de um número crescente de pesquisadores trabalhando de forma independente. O que ocorre, no entanto, é que o trabalho destas instituições e pesquisadores ainda não foi capaz de mudar o tom do debate.
*Renzo Taddei é antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo
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