segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Juventude negra interrompida

ibase
http://www.canalibase.org.br/a-juventude-interrompida-pelo-estado/


Juventude negra interrompida

Camila Nobrega
Do Canal Ibase
Marcha contra genocidio negro. Do Coletivo Negro, da USP
Marcha contra genocidio negro. Do Coletivo Negro, da USP
Vivemos em uma democracia. Mas não se pode negar que a noção de liberdade varia de acordo com a classe social, o gênero e a cor da pele de cada cidadão brasileiro. O contexto em que se vive – e o território – influencia até a expectativa de vida de uma pessoa. É um dado ocultado, afirmam especialistas, mas real: a segregação social e espacial acaba determinando, em algumas situações, a quem o direito à vida está garantido. Para denunciar esse cenário, que coloca especialmente jovens negros em situação de alto risco no país, milhares de pessoas foram às ruas na última sexta-feira, 22 de agosto. A II Marcha contra o Genocídio do Povo Negro aconteceu simultaneamente em 13 países. No Brasil, 18 cidades participaram no movimento, entre elas o Rio de Janeiro, onde os manifestantes se concentraram na Estação de Trem de Manguinhos, comunidade que, apenas no último ano, registrou cinco mortes durante ações da polícia, sendo quatro jovens e um idoso.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2012, houve mais de 56 mil homicídios. Isso quer dizer que 154 pessoas foram assassinadas diariamente no país.. Na década analisada (2002 a 2012), morreram 556 mil cidadãos vítimas de homicídio, quantitativo que excede, largamente, o número de mortes da maioria dos conflitos armados registrados no mundo. Entre os negros, as vítimas aumentam de 29.656 para 41.127 nas mesmas datas, um crescimento de 38,7%. No período analisado, a taxa de homicídio dos brancos era de 21,7 por 100 mil habitantes. A diferença é gritante, quando analisamos a estatística para negros: foram 37,5 por 100 mil negros. Em 2002, morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. O crescimento na estatística é assustador: 100,7%, mais que o dobro do dado anterior. A fonte dessas informações é o Mapa da Violência referente ao ano de 2014, publicado pela Secretaria Geral da Presidência da República.
O quadro de violência contra os jovens negros brasileiros vem se agravando. Com os dados alarmantes nas mãos, ativistas do movimento negro e pesquisadores de universidades adotaram uma leitura: trata-se de uma forma de genocídio. A historiadora Natana Magalhães, militante do movimento negro no Rio de Janeiro, explica: “O que ocorre é uma violência estruturada por uma política racista de estado. A violência policial é apenas a ponta da lança. Entendemos o significado de genocídio de uma forma ampla, pensando em gerações inteiras afetadas no Brasil. Para entender o que ocorre hoje, precisamos voltar à formação do nosso país. As populações negras e indígenas foram escravizadas, tiveram dificuldade de acesso à moradia, ao mercado de trabalho. Nunca houve uma reparação histórica. E hoje vivemos em uma sociedade que violenta jovens negros em territórios de favelas e  na periferia, na falta de acesso de mulheres negras à saúde reprodutiva, no encarceramento pelo sistema penal – que prende majoritariamente negros -, entre outros. Isso tudo constitui uma política de estado que leva à morte milhares de negros todos os anos no país.”
Segundo as Nações Unidas, quase 90% das mortes maternas no Brasil ocorrem como consequência da violação de direitos humanos e negligências da saúde pública. A maioria dessas mulheres são negras. Para denunciar as diversas situações de violência a qual o povo negro está exposto,  o chamado para a marcha foi “Reaja ou será morta! Reaja ou será morto!”, slogan criado por ativistas do movimento negro da Bahia. Cada estado que resolveu aderir à marcha a adequou ao seu contexto. No Rio de Janeiro, a morte de jovens pela polícia ganhou destaque, mas o objetivo também foi apontar o racismo no cotidiano, invisibilizado sob a roupagem de igualdade racial, legalmente garantida na democracia no país, mas desrespeitada.
Autos de resistência criminalizam população negra
A própria presidente Dilma Rousseff aponta a questão como um problema de Estado. Em discurso durante a III Conferência Nacional da Igualdade Racial, em novembro de 2013, a presidente afirmou que um dos grandes desafios do governo brasileiro é a criação de políticas de enfrentamento à violência, principalmente nas periferias do país. Ela também usa a palavra “genocídio” para se referir à questão: “Estamos articulando todas as esferas, todos os ministérios, todos os governos estaduais e também a justiça, através do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)  e o Ministério Público, no sentido de assegurar que haja, de fato, um foco no que muitos chamam de genocídio da juventude negra. Nós reiteramos o apoio do governo ao projeto de lei sobre os autos de resistência. Certamente, vai contribuir para reverter a violência e a discriminação que recaem sobre a população negra”, disse a presidente durante o discurso.
No RJ, protesto foi em Manguinhos / Foto: Patrícia Lânes
No RJ, protesto foi em Manguinhos / Foto: Patrícia Lânes
Os autos de resistência são apontados atualmente como uma forma de institucionalizar a violência em alguns territórios. Trata-se de uma medida administrativa criada durante a Ditadura Militar. Naquela época, acabava por legitimar assassinatos protagonizados pelas forças policiais. Na prática, quando a polícia entrava em conflito com um “criminoso” – incluam-se aí presos políticos – a alegação era de que teria havido resistência à prisão. A questão é que, trinta anos depois do final do regime, os autos de resistência ainda justificam milhares de mortes praticadas pela Polícia, sem que haja investigações. Tornou-se um procedimento padrão. Em 2011, 42% das mortes foram registradas como autos de resistência nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Grande parte deles contra negros.
Uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com dados oficiais, aponta que o número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a população branca. Os dados revelam que 61% das vítimas da polícia no estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. Já os policiais envolvidos são brancos (79%), sendo 96% da Polícia Militar. Para especialistas, trata-se de racismo institucionalizado.
Grupos de entidades ligadas aos Direitos Humanos e diversos movimentos sociais querem acelerar a aprovação de um projeto de lei de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que propõe várias medidas, inclusive a alteração da denominação “autos de resistência” (ou “resistência seguida de morte”) nos registros das ocorrências, para algo como “lesão corporal (ou morte) decorrente de intervenção policial”. O projeto é de 2012 e ainda não foi votado.
Jovem de 19 anos morto em Manguinhos com tiro nas costas: investigação a passos lentos
Foi exatamente essa expressão, auto de resistência, que policiais usaram para tentar explicar a moradores da favela de Manguinhos a morte do jovem Jonathan de Oliveira Lima, de 19 anos, em maio deste ano. Ele nasceu e foi criado na favela e morava com os pais. Segundo a mãe, a pedagoga Ana Paula Gomes de Oliveira, ele havia saído para deixar a namorada em casa, quando foi atingido por um disparo. A família garante que ele não tinha armas de fogo. Os moradores que testemunharam a cena também afirmam que o jovem não portava arma alguma. A Polícia argumentou que o jovem teria sido ferido durante confronto com policiais, após atirar contra a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A versão da polícia, porém, foi contestada pela perícia no local, que não encontrou nenhuma outra marca de balas na parede e contra o laudo do Instituto Médico Legal. Jonathan foi ferido pelas costas, sem possibilidade de defesa. O laudo também contraria a tese do auto de resistência. “O que me contaram é que houve um burburinho na frente da UPP, uma confusão qualquer com os moradores e a polícia quis dispersar. Usou uma arma letal e matou meu filho que estava passando. Ele não teve garantido seu direito de ir e vir na comunidade em que nasceu.”
Oito meses antes, a família teve que sair de uma casa que os pais de Jonathan construíram, removidos pela Secretaria Municipal de Habitação. “Achei que aquela pressão era o maior sofrimento que eu ia passar. Não esperava o que estava por vir. A gente vê muitos casos e acaba acreditando que a maioria dos mortos é de criminosos. Até que acontece de seu filho ser morto sem possibilidade de defesa e a realidade cai.”
Atualmente, Ana Paula integra o Fórum de Manguinhos, formado para debater a violência policial na comunidade, entre outros problemas. O Fórum é um espaço de resistência e posicionamento político importante dentro da favela.
Nos Estados Unidos, tensão racial aumenta após morte de jovem
Nos últimos dias, o mundo inteiro voltou os olhos para a cidade de Ferguson, no Missouri, Estados Unidos, onde centenas de pessoas iniciaram uma onda de protestos após a morte de Michael Brown, de 19 anos. O jovem foi morto a tiros por um policial, em uma rua, em circunstâncias que ainda não estão esclarecidas. A Polícia investiga o caso, mas até agora sabe-se que Brown estava desarmado. O que mais chama atenção no caso, porém, são as possíveis justificativas encontradas para o crime. Após as manifestações no país, a polícia afirmou que ele seria suspeito de um roubo em uma loja. A partir daí, centenas de pessoas fizeram comentários, ressaltando essa justificativa. O mesmo ocorre no Brasil, como ressaltou também a mãe de Jonathan: “Mesmo no caso de jovens acusados de serem traficantes ou criminosos, há racismo envolvido. Porque, se no nosso país não há pena de morte, todo mundo tem direito a ser julgado e, se for o caso, punido”, disse Ana Paula.
Nos Estados Unidos, o caso fez com que a sociedade norte-americana também trouxesse à tona a crítica ao assassinato de negros, cuja estatística também é muito mais alta do que a de brancos. Segundo informações de professores, amigos e parentes do estudante, em uma reportagem do jornal Washington Post, Brown não tinha histórico de conflitos e havia acabado de conseguir seu diploma no Ensino Médio, apesar de várias dificuldades. Agora, Brown é parte de um debate nacional sobre como a polícia trata os jovens negros. O racismo é um fenômeno mundial, com configurações diferentes em cada território. A trajetória dos Estados Unidos de segregação, até mesmo por leis em um histórico muito recente, faz com que um acontecimento como esse gere esse tipo de mobilização.
“No Brasil, o contexto é outro, porque o mito da democracia racial oculta o racismo e suas consequências em nossa sociedade”, diz a pesquisadora Marina Ribeiro, coordenadora de um projeto em parceria com Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, que debate o problema no país.
Os avanços são lentos no debate, mas as consequências graves. No ano passado, em todos os meses houve mortes em alguma favela. É hora de correr atrás do tempo.

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