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http://www.canalibase.org.br/a-juventude-interrompida-pelo-estado/
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Juventude negra interrompida
Camila Nobrega
Do Canal Ibase
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Vivemos em uma democracia. Mas não se pode negar que a noção de liberdade varia de acordo com a classe social, o gênero e a cor da pele de cada cidadão brasileiro. O contexto em que se vive – e o território – influencia até a expectativa de vida de uma pessoa. É um dado ocultado, afirmam especialistas, mas real: a segregação social e espacial acaba determinando, em algumas situações, a quem o direito à vida está garantido. Para denunciar esse cenário, que coloca especialmente jovens negros em situação de alto risco no país, milhares de pessoas foram às ruas na última sexta-feira, 22 de agosto. A II Marcha contra o Genocídio do Povo Negro aconteceu simultaneamente em 13 países. No Brasil, 18 cidades participaram no movimento, entre elas o Rio de Janeiro, onde os manifestantes se concentraram na Estação de Trem de Manguinhos, comunidade que, apenas no último ano, registrou cinco mortes durante ações da polícia, sendo quatro jovens e um idoso.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2012, houve mais de 56 mil homicídios. Isso quer dizer que 154 pessoas foram assassinadas diariamente no país.. Na década analisada (2002 a 2012), morreram 556 mil cidadãos vítimas de homicídio, quantitativo que excede, largamente, o número de mortes da maioria dos conflitos armados registrados no mundo. Entre os negros, as vítimas aumentam de 29.656 para 41.127 nas mesmas datas, um crescimento de 38,7%. No período analisado, a taxa de homicídio dos brancos era de 21,7 por 100 mil habitantes. A diferença é gritante, quando analisamos a estatística para negros: foram 37,5 por 100 mil negros. Em 2002, morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. O crescimento na estatística é assustador: 100,7%, mais que o dobro do dado anterior. A fonte dessas informações é o Mapa da Violência referente ao ano de 2014, publicado pela Secretaria Geral da Presidência da República.
O quadro de violência contra os jovens negros brasileiros vem se agravando. Com os dados alarmantes nas mãos, ativistas do movimento negro e pesquisadores de universidades adotaram uma leitura: trata-se de uma forma de genocídio. A historiadora Natana Magalhães, militante do movimento negro no Rio de Janeiro, explica: “O que ocorre é uma violência estruturada por uma política racista de estado. A violência policial é apenas a ponta da lança. Entendemos o significado de genocídio de uma forma ampla, pensando em gerações inteiras afetadas no Brasil. Para entender o que ocorre hoje, precisamos voltar à formação do nosso país. As populações negras e indígenas foram escravizadas, tiveram dificuldade de acesso à moradia, ao mercado de trabalho. Nunca houve uma reparação histórica. E hoje vivemos em uma sociedade que violenta jovens negros em territórios de favelas e na periferia, na falta de acesso de mulheres negras à saúde reprodutiva, no encarceramento pelo sistema penal – que prende majoritariamente negros -, entre outros. Isso tudo constitui uma política de estado que leva à morte milhares de negros todos os anos no país.”
Segundo as Nações Unidas, quase 90% das mortes maternas no Brasil ocorrem como consequência da violação de direitos humanos e negligências da saúde pública. A maioria dessas mulheres são negras. Para denunciar as diversas situações de violência a qual o povo negro está exposto, o chamado para a marcha foi “Reaja ou será morta! Reaja ou será morto!”, slogan criado por ativistas do movimento negro da Bahia. Cada estado que resolveu aderir à marcha a adequou ao seu contexto. No Rio de Janeiro, a morte de jovens pela polícia ganhou destaque, mas o objetivo também foi apontar o racismo no cotidiano, invisibilizado sob a roupagem de igualdade racial, legalmente garantida na democracia no país, mas desrespeitada.
Autos de resistência criminalizam população negra
A própria presidente Dilma Rousseff aponta a questão como um problema de Estado. Em discurso durante a III Conferência Nacional da Igualdade Racial, em novembro de 2013, a presidente afirmou que um dos grandes desafios do governo brasileiro é a criação de políticas de enfrentamento à violência, principalmente nas periferias do país. Ela também usa a palavra “genocídio” para se referir à questão: “Estamos articulando todas as esferas, todos os ministérios, todos os governos estaduais e também a justiça, através do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o Ministério Público, no sentido de assegurar que haja, de fato, um foco no que muitos chamam de genocídio da juventude negra. Nós reiteramos o apoio do governo ao projeto de lei sobre os autos de resistência. Certamente, vai contribuir para reverter a violência e a discriminação que recaem sobre a população negra”, disse a presidente durante o discurso.
Os autos de resistência são apontados atualmente como uma forma de institucionalizar a violência em alguns territórios. Trata-se de uma medida administrativa criada durante a Ditadura Militar. Naquela época, acabava por legitimar assassinatos protagonizados pelas forças policiais. Na prática, quando a polícia entrava em conflito com um “criminoso” – incluam-se aí presos políticos – a alegação era de que teria havido resistência à prisão. A questão é que, trinta anos depois do final do regime, os autos de resistência ainda justificam milhares de mortes praticadas pela Polícia, sem que haja investigações. Tornou-se um procedimento padrão. Em 2011, 42% das mortes foram registradas como autos de resistência nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Grande parte deles contra negros.
Uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com dados oficiais, aponta que o número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a população branca. Os dados revelam que 61% das vítimas da polícia no estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. Já os policiais envolvidos são brancos (79%), sendo 96% da Polícia Militar. Para especialistas, trata-se de racismo institucionalizado.
Grupos de entidades ligadas aos Direitos Humanos e diversos movimentos sociais querem acelerar a aprovação de um projeto de lei de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que propõe várias medidas, inclusive a alteração da denominação “autos de resistência” (ou “resistência seguida de morte”) nos registros das ocorrências, para algo como “lesão corporal (ou morte) decorrente de intervenção policial”. O projeto é de 2012 e ainda não foi votado.
Jovem de 19 anos morto em Manguinhos com tiro nas costas: investigação a passos lentos
Foi exatamente essa expressão, auto de resistência, que policiais usaram para tentar explicar a moradores da favela de Manguinhos a morte do jovem Jonathan de Oliveira Lima, de 19 anos, em maio deste ano. Ele nasceu e foi criado na favela e morava com os pais. Segundo a mãe, a pedagoga Ana Paula Gomes de Oliveira, ele havia saído para deixar a namorada em casa, quando foi atingido por um disparo. A família garante que ele não tinha armas de fogo. Os moradores que testemunharam a cena também afirmam que o jovem não portava arma alguma. A Polícia argumentou que o jovem teria sido ferido durante confronto com policiais, após atirar contra a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A versão da polícia, porém, foi contestada pela perícia no local, que não encontrou nenhuma outra marca de balas na parede e contra o laudo do Instituto Médico Legal. Jonathan foi ferido pelas costas, sem possibilidade de defesa. O laudo também contraria a tese do auto de resistência. “O que me contaram é que houve um burburinho na frente da UPP, uma confusão qualquer com os moradores e a polícia quis dispersar. Usou uma arma letal e matou meu filho que estava passando. Ele não teve garantido seu direito de ir e vir na comunidade em que nasceu.”
Oito meses antes, a família teve que sair de uma casa que os pais de Jonathan construíram, removidos pela Secretaria Municipal de Habitação. “Achei que aquela pressão era o maior sofrimento que eu ia passar. Não esperava o que estava por vir. A gente vê muitos casos e acaba acreditando que a maioria dos mortos é de criminosos. Até que acontece de seu filho ser morto sem possibilidade de defesa e a realidade cai.”
Atualmente, Ana Paula integra o Fórum de Manguinhos, formado para debater a violência policial na comunidade, entre outros problemas. O Fórum é um espaço de resistência e posicionamento político importante dentro da favela.
Nos Estados Unidos, tensão racial aumenta após morte de jovem
Nos últimos dias, o mundo inteiro voltou os olhos para a cidade de Ferguson, no Missouri, Estados Unidos, onde centenas de pessoas iniciaram uma onda de protestos após a morte de Michael Brown, de 19 anos. O jovem foi morto a tiros por um policial, em uma rua, em circunstâncias que ainda não estão esclarecidas. A Polícia investiga o caso, mas até agora sabe-se que Brown estava desarmado. O que mais chama atenção no caso, porém, são as possíveis justificativas encontradas para o crime. Após as manifestações no país, a polícia afirmou que ele seria suspeito de um roubo em uma loja. A partir daí, centenas de pessoas fizeram comentários, ressaltando essa justificativa. O mesmo ocorre no Brasil, como ressaltou também a mãe de Jonathan: “Mesmo no caso de jovens acusados de serem traficantes ou criminosos, há racismo envolvido. Porque, se no nosso país não há pena de morte, todo mundo tem direito a ser julgado e, se for o caso, punido”, disse Ana Paula.
Nos Estados Unidos, o caso fez com que a sociedade norte-americana também trouxesse à tona a crítica ao assassinato de negros, cuja estatística também é muito mais alta do que a de brancos. Segundo informações de professores, amigos e parentes do estudante, em uma reportagem do jornal Washington Post, Brown não tinha histórico de conflitos e havia acabado de conseguir seu diploma no Ensino Médio, apesar de várias dificuldades. Agora, Brown é parte de um debate nacional sobre como a polícia trata os jovens negros. O racismo é um fenômeno mundial, com configurações diferentes em cada território. A trajetória dos Estados Unidos de segregação, até mesmo por leis em um histórico muito recente, faz com que um acontecimento como esse gere esse tipo de mobilização.
“No Brasil, o contexto é outro, porque o mito da democracia racial oculta o racismo e suas consequências em nossa sociedade”, diz a pesquisadora Marina Ribeiro, coordenadora de um projeto em parceria com Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, que debate o problema no país.
Os avanços são lentos no debate, mas as consequências graves. No ano passado, em todos os meses houve mortes em alguma favela. É hora de correr atrás do tempo.
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