segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ébola: um falhanço da ação coletiva internacional

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Ébola: um falhanço da ação coletiva internacional

A comunidade internacional deve mostrar o seu compromisso coletivo e a solidariedade mundial que têm estado ausentes no início deste surto para acabar com ele. Se não o fizer, permitirá que se produza um desastre sem precedentes na África Ocidental. Artigo da revista The Lancet.
Serra Leoa - Foto de CE dg echo/flickr
Quando um menino de 2 anos de idade adoeceu a 6 de dezembro de 2013 na região Guéckédou da Guiné, ninguém sabia que a sua doença marcava o início do maior e mais complexo surto de Ébola que o mundo já vira. Em meados de agosto registaram-se 2.240 casos e 1.229 mortes na Guiné, na Libéria, na Nigéria e na Serra Leoa. Mas a OMS acha que estes números podem ser muito inferiores aos reais, já que o número de mortos e infetados aumenta rapidamente na Libéria e na Serra Leoa. A 8 de agosto, após uma reunião de dois dias do Comité Internacional de Regulação Sanitária de Emergência, a OMS declarou o surto uma “emergência de saúde pública de importância internacional”. Não se deve a que o surto tenha potencial pandémico. Não o tem. Se o Ébola chegar a países de elevados e médios rendimentos, será rapidamente contido. A OMS declarou a emergência para intensificar a resposta nacional, regional, e internacional no epicentro do surto na África Ocidental, reconhecendo que constitui um “acontecimento extraordinário”.
Continua a ser difícil controlar o surto. Os trabalhadores sanitários enfrentam numerosos problemas de uma magnitude a que não tiveram que fazer frente quando lutavam contra o Ébola no passado na África central e oriental. Isto implica sistemas sanitários incrivelmente débeis, com pouco pessoal, equipas escassas e instalações pobres, o que torna a vigilância da doença, o isolamento e a atenção de apoio praticamente impossíveis sem ajuda externa. Os altos níveis de temor e desconfiança face à doença e aos profissionais de saúde também levou à fuga dos pacientes dos hospitais e a que as comunidades escondam os doentes. Além disso, a circulação transfronteiriça entre os três principais países afetados tem facilitado a propagação numa enorme extensão. Todos estes fatores tornaram o rastreio efetivo dos contactos, que é crucial para a contenção, extremamente difícil, especialmente nas zonas remotas e rurais.
Ainda que a OMS dirija agora a resposta internacional à crise, reagiu inicialmente com lentidão na hora de intervir com o nível forte que se precisava. A sua preocupação não coincide com a de outro ator importante neste surto: os Médicos Sem Fronteiras (MSF). A 24 de junho, os MSF declararam que o surto estava “fora de controlo”, que as suas equipas tinham atingido o limite do que podiam fazer, e pediu uma deslocação massiva de recursos para a região. A OMS tardou a lançar o seu plano de resposta conjunta até 31 de julho, fazendo um apelo aos doadores de 71 milhões de dólares e anunciando a deslocação de várias centenas de técnicos sanitários para o oeste de África. Mas a OMS não é a única culpada de não ter atuado rapidamente. Os estados membros e os doadores são também responsáveis. A OMS tem tido severos cortes orçamentais nos últimos anos. O seu orçamento para responder às crises e surtos foi reduzido em 50% de 2012-13 (469 milhões de dólares) para 2014-15 (228 milhões de dólares). A crise mostra a importância de manter níveis suficientes de financiamento multilateral para a OMS, o único organismo internacional capaz de coordenar a resposta a uma crise de saúde de dimensões globais.
Há outras lições deste surto, incluindo a necessidade de um maior investimento no fortalecimento do sistema de saúde. Os sistemas sanitários frágeis são incapazes de responder quando surge uma situação de emergência repentina e rápida. As experiências das comunidades sobre o pobre funcionamento dos sistemas sanitários também poderá explicar parte da sua desconfiança durante esta crise. O Banco Mundial comprometeu-se com 200 milhões de dólares para fazer frente ao surto e reforçar os sistemas sanitários na África Ocidental, mas são necessários mais investimentos de outras fontes para desenvolver sistemas sanitários suficientemente fortes na região.
Não existe vacina nem cura para o Ébola. Este surto impulsionou o interesse nos tratamentos em desenvolvimento. Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos estão a preparar o mais rápido que podem a fase de ensaios em humanos de uma vacina experimental. No início de agosto, um comité de ética da OMS decidiu que se podiam utilizar neste surto medicamentos não aprovados. No entanto, como foi comentado, provavelmente existiria hoje uma vacina se o Ébola afetasse um grande número de pessoas nos países de elevados rendimentos, de maneira que a investigação e o desenvolvimento dos tratamentos fossem financeiramente atraentes para as empresas: uma situação que John Ashton, presidente da Escola de Saúde Pública do Reino Unido, descreveu como “a bancarrota moral do funcionamento do capitalismo na ausência de um quadro ético e social".
Os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças dos EUA estimam que o surto vai durar pelo menos outros 3 a 6 meses. A 15 de agosto, os MSF, que contam com cerca de 700 trabalhadores sanitários no terreno, qualificou o esforço internacional para conter o surto de “perigosamente inadequado”; continua a ser necessária a mobilização imediata e em massa de recursos humanos e técnicos para a região, não só para fazer frente à epidemia, mas também para reconstruir os sistemas de saúde que estão a colapsar. A comunidade internacional deve mostrar o seu compromisso coletivo e a solidariedade mundial que têm estado ausentes no início deste surto para acabar com ele. Se não o fizer, permitirá que se produza um desastre sem precedentes na África Ocidental.
Artigo publicado na revista The Lancet, traduzido para espanhol por Gustavo Buster para Sin Permiso e para português por Carlos Santos para esquerda.net

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