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Lições de uma década singular
A América Latina tem um campo de provas avançado da necessária convivência entre grandes e pequenos agricultores. Dez anos de políticas sociais e produtivas em ambiente de expansão econômica formam um repertório singular na trajetória regional. A experiência latinoamericana mostra que oferta abundante não garante segurança alimentar aos que vivem no campo. A pobreza rural desautoriza ilusões na eficácia de automatismos econômicos para corrigir a iniquidade social. O artigo é de José Graziano da Silva.
José Graziano da Silva (*)
(*) Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 20/09/2012)
A superação da pobreza e da fome não pode desperdiçar tempo nem escalas. Há premência de iniciativas públicas e privadas; não se prescinde da agricultura familiar, tampouco do chamado agronegócio. Cabe aos governos e à cooperação internacional harmonizar esse mutirão ecumênico para que os ganhos da oferta se traduzam na redução da carência.
Destinos humanos estão em jogo. A forma como uma sociedade enfrenta esse desafio define não apenas a sorte dos que vivem do lado de fora da cidadania. Ela ajuda a ordenar o padrão do desenvolvimento e influencia as relações entre mercado, Estado e Democracia. Não são opções teóricas nem ideológicas que nos devem guiar nessas decisões.
O melhor critério de avaliação dessas escolhas é ouvir a voz da experiência. A América Latina tem um campo de provas avançado da necessária convivência entre grandes e pequenos agricultores. Dez anos de políticas sociais e produtivas em ambiente de expansão econômica formam um repertório singular na trajetória regional.
Até que ponto esse impulso combinado gerou a aderência estrutural desejada para desmontar o ciclo de reprodução da pobreza? A pergunta e a resposta interessam à agenda mundial da luta contra a fome e a miséria.
Nos anos 80, o fim de um ciclo de liquidez internacional escancarou a fragilidade do modelo latinoamericano de crescimento. Nos anos 90, a adesão ao cânone da autossuficiência dos mercados expôs as economias regionais a sucessivos episódios de colapso financeiro e desmentiram a existência dos contrapesos autorreguláveis prometidos pelo laissez-faire. O custo social foi devastador: 31 milhões de latinoamericanos caíram na miséria nos anos 90.
A contabilidade das perdas e danos abriu espaço a políticas retificadoras, progressivamente incorporadas à agenda regional do desenvolvimento. Um dado resume a abrangência desse novo marco: um em cada cinco habitantes da América Latina e do Caribe, cerca de 113 milhões de pessoas, participa de programas de transferências condicionadas de renda.
Embora inconclusa, essa travessia teve um efeito amortecedor nos impactos da crise mundial iniciada em 2007.
O PIB regional per capita recuou 3% em 2009. Ao contrário do que ocorreu em outras crises, desta vez o saldo dos avanços não se esfarelou: 41 milhões de pessoas deixaram a pobreza e 26 milhões escaparam do torniquete da miséria na região desde 2002; nove milhões retrocederam aos degraus que haviam superado.
Persistem todavia fragilidades estruturais. Elas favorecem recidivas de miséria e fome, sobretudo no espaço que concentra o núcleo duro da exclusão regional: o universo rural.
O contingente dos que vivem na miséria representa hoje cerca de 13% da população regional: 35 milhões no espaço rural; 35 milhões nas cidades.
A simetria aparente é enganosa. A indigência rural equivale a uma fatia de 30% dos habitantes do campo, uma intensidade quase quatro vezes maior que a urbana (8%), segundo a Cepal. Os dados radiografam uma realidade que desautoriza ilusões na eficácia de automatismos econômicos para corrigir a iniquidade social.
Entre 1980 e 2010, mas sobretudo na primeira década deste século, as exportações agrícolas da região foram catapultadas por recordes sucessivos de preços e volumes, puxados pela demanda mundial de commodities.
Em meio a este ciclo, porém, a pobreza rural exibiu um recuo pífio na América Latina e Caribe: de 60%, em 1980, caiu para 53% em 2010. É o que mostra o "Boom Agrícola e a Persistência da Pobreza Rural na América Latina e Caribe", estudo conjunto da Cepal, FAO e OIT.
O fato de que mais da metade da população residente no campo continue miserável, coloca-nos diante de dois registros. E ambos verdadeiros. Primeiro, oferta abundante não garante segurança alimentar nem aos que vivem no seu entorno físico. Segundo, o grande negócio agrícola veio para ficar, ocupa papel estratégico na geração de divisas de países em desenvolvimento e é imprescindível no abastecimento mundial.
Mas na América Latina e Caribe ele mostrou mais uma vez que oferta não é sinônimo de acesso. A fome pode conviver perversamente com a abundância.
O paradoxo evidencia a relevância de se consolidar uma terceira perna para harmonizar o conjunto. Esse apanágio pertence às políticas públicas. Cabe a elas consolidar direitos trabalhistas no campo, erradicar a precariedade, respeitar a posse dos pequenos, realizar e incentivar investimentos que promovam a segurança alimentar dos vulneráveis, derrubar barreiras de gênero, fomentar a produção familiar, cooperativizar a escala miúda, elevar a produtividade para gerar excedente, renda e abastecimento no mercado interno.
A coagulação da pobreza e da fome no campo latinoamericano e caribenho não é um ponto fora da curva, razão pela qual as lições da experiência da região tem abrangência mais ampla. Das quase 900 milhões de pessoas atingidas pela fome no planeta, 75% vivem na zona rural. Mas a vulnerabilidade de quem gravita em torno da terra é maior. Um terço da população mundial é formado por pequenos agricultores que cultivam menos de 10 hectares: apenas 2% são tecnificados, mais de 70% tem apenas a força de seus músculos como ferramenta. No século XXI, a agricultura ainda é o maior empregador do mundo, 40% da humanidade gravitam em torno dela.
A agenda latinoamericana de combate à fome e à pobreza, portanto, ecoa carências transcontinentais. O mesmo se pode dizer do requisito das políticas públicas para estender direitos trabalhistas, fomento e cidadania ao campo.
(*) José Graziano da Silva é Diretor -Geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação)
A superação da pobreza e da fome não pode desperdiçar tempo nem escalas. Há premência de iniciativas públicas e privadas; não se prescinde da agricultura familiar, tampouco do chamado agronegócio. Cabe aos governos e à cooperação internacional harmonizar esse mutirão ecumênico para que os ganhos da oferta se traduzam na redução da carência.
Destinos humanos estão em jogo. A forma como uma sociedade enfrenta esse desafio define não apenas a sorte dos que vivem do lado de fora da cidadania. Ela ajuda a ordenar o padrão do desenvolvimento e influencia as relações entre mercado, Estado e Democracia. Não são opções teóricas nem ideológicas que nos devem guiar nessas decisões.
O melhor critério de avaliação dessas escolhas é ouvir a voz da experiência. A América Latina tem um campo de provas avançado da necessária convivência entre grandes e pequenos agricultores. Dez anos de políticas sociais e produtivas em ambiente de expansão econômica formam um repertório singular na trajetória regional.
Até que ponto esse impulso combinado gerou a aderência estrutural desejada para desmontar o ciclo de reprodução da pobreza? A pergunta e a resposta interessam à agenda mundial da luta contra a fome e a miséria.
Nos anos 80, o fim de um ciclo de liquidez internacional escancarou a fragilidade do modelo latinoamericano de crescimento. Nos anos 90, a adesão ao cânone da autossuficiência dos mercados expôs as economias regionais a sucessivos episódios de colapso financeiro e desmentiram a existência dos contrapesos autorreguláveis prometidos pelo laissez-faire. O custo social foi devastador: 31 milhões de latinoamericanos caíram na miséria nos anos 90.
A contabilidade das perdas e danos abriu espaço a políticas retificadoras, progressivamente incorporadas à agenda regional do desenvolvimento. Um dado resume a abrangência desse novo marco: um em cada cinco habitantes da América Latina e do Caribe, cerca de 113 milhões de pessoas, participa de programas de transferências condicionadas de renda.
Embora inconclusa, essa travessia teve um efeito amortecedor nos impactos da crise mundial iniciada em 2007.
O PIB regional per capita recuou 3% em 2009. Ao contrário do que ocorreu em outras crises, desta vez o saldo dos avanços não se esfarelou: 41 milhões de pessoas deixaram a pobreza e 26 milhões escaparam do torniquete da miséria na região desde 2002; nove milhões retrocederam aos degraus que haviam superado.
Persistem todavia fragilidades estruturais. Elas favorecem recidivas de miséria e fome, sobretudo no espaço que concentra o núcleo duro da exclusão regional: o universo rural.
O contingente dos que vivem na miséria representa hoje cerca de 13% da população regional: 35 milhões no espaço rural; 35 milhões nas cidades.
A simetria aparente é enganosa. A indigência rural equivale a uma fatia de 30% dos habitantes do campo, uma intensidade quase quatro vezes maior que a urbana (8%), segundo a Cepal. Os dados radiografam uma realidade que desautoriza ilusões na eficácia de automatismos econômicos para corrigir a iniquidade social.
Entre 1980 e 2010, mas sobretudo na primeira década deste século, as exportações agrícolas da região foram catapultadas por recordes sucessivos de preços e volumes, puxados pela demanda mundial de commodities.
Em meio a este ciclo, porém, a pobreza rural exibiu um recuo pífio na América Latina e Caribe: de 60%, em 1980, caiu para 53% em 2010. É o que mostra o "Boom Agrícola e a Persistência da Pobreza Rural na América Latina e Caribe", estudo conjunto da Cepal, FAO e OIT.
O fato de que mais da metade da população residente no campo continue miserável, coloca-nos diante de dois registros. E ambos verdadeiros. Primeiro, oferta abundante não garante segurança alimentar nem aos que vivem no seu entorno físico. Segundo, o grande negócio agrícola veio para ficar, ocupa papel estratégico na geração de divisas de países em desenvolvimento e é imprescindível no abastecimento mundial.
Mas na América Latina e Caribe ele mostrou mais uma vez que oferta não é sinônimo de acesso. A fome pode conviver perversamente com a abundância.
O paradoxo evidencia a relevância de se consolidar uma terceira perna para harmonizar o conjunto. Esse apanágio pertence às políticas públicas. Cabe a elas consolidar direitos trabalhistas no campo, erradicar a precariedade, respeitar a posse dos pequenos, realizar e incentivar investimentos que promovam a segurança alimentar dos vulneráveis, derrubar barreiras de gênero, fomentar a produção familiar, cooperativizar a escala miúda, elevar a produtividade para gerar excedente, renda e abastecimento no mercado interno.
A coagulação da pobreza e da fome no campo latinoamericano e caribenho não é um ponto fora da curva, razão pela qual as lições da experiência da região tem abrangência mais ampla. Das quase 900 milhões de pessoas atingidas pela fome no planeta, 75% vivem na zona rural. Mas a vulnerabilidade de quem gravita em torno da terra é maior. Um terço da população mundial é formado por pequenos agricultores que cultivam menos de 10 hectares: apenas 2% são tecnificados, mais de 70% tem apenas a força de seus músculos como ferramenta. No século XXI, a agricultura ainda é o maior empregador do mundo, 40% da humanidade gravitam em torno dela.
A agenda latinoamericana de combate à fome e à pobreza, portanto, ecoa carências transcontinentais. O mesmo se pode dizer do requisito das políticas públicas para estender direitos trabalhistas, fomento e cidadania ao campo.
(*) José Graziano da Silva é Diretor -Geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação)
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