“A União tenta atender a todo mundo (produtores rurais e indígenas) ao mesmo tempo, mas não atende ninguém”, sustenta o procurador.
Ao defender as
comunidades indígenas, o
Ministério Público Federal não está apoiando um determinado grupo social em detrimento de outros, não se trata, como argumenta
Marco Antônio Delfino de Almeida, simplesmente de defender uma causa, mas de garantir os direitos constitucionais. “É preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a
Constituição Federal. A defesa das comunidades indígenas é igualmente um mandato expresso do Ministério Público Federal”, defende o procurador em entrevista por telefone à
IHU On-Line.
Frente a esta queda de braço, onde de um lado estão as forças políticas amparadas pelo setores mais
conservadores do Congresso e de outro os indígenas e os movimentos sociais, o governo parece se furtar ao debate. “O que vejo, infelizmente, é que a
União fica numa posição extremamente cômoda.
Há um compromisso político, mas com um determinado segmento. E aí se usa o eufemismo de que a demarcação vai avançar com responsabilidade ou acordo e, ao mesmo tempo, se faz compromissos com as lideranças indígenas de que irá cumprir seu papel”, aponta o procurador. “Ou seja, a União tenta atender a todo mundo (
produtores rurais e
indígenas) ao mesmo tempo, mas não atende ninguém. Enquanto não começar a atuar e sair dessa posição cômoda de imobilismo nada vai avançar”, complementa.
Com base em uma falsa “questão de fundo”, o Congressoempurra com a barriga a pauta indígena e mantém sua precária lógica de abordagem dos temas. “A grande questão é que oCongresso acaba entendendo o processo de demarcação sempre como o antagonismo de matéria e antimatéria. O processo de demarcação é sempre visto como um processo de destruição da produção”, explica Marco Antônio.
“
A reforma agrária, tal como
a questão indígena, tem que ter uma adequada atuação. Tem que ter recursos que sejam carreados de forma adequada para que a reforma venha a funcionar. (...) A Reforma agrária também é um mandamento constitucional, ela tem que ocorrer. Não é questão de acreditar ou não. Tem que ocorrer”, ressalta.
Marco Antonio Delfino de Almeida (foto) é procurador do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O Ministério Público no Mato Grosso do Sul - MPF/MS conseguiu determinação judicial para que a União demarque as terras indígenas e pague arrendamento aos fazendeiros que possuem áreas ocupadas por índios em toda a região centro-sul do estado. Qual o significado dessa ação?
Marco Antônio Delfino de Almeida - Nós procuramos demonstrar que há um impasse no processo de demarcação. Um impasse que, obviamente, não interessa a ninguém. E a juíza foi muito feliz em conseguir conciliar o direito constitucional a terra, obviamente garantido aos indígenas, e, ao mesmo tempo, o interesse econômico do proprietário rural. O que nós vemos, infelizmente, é que é um processo que não se iniciou agora, mas se acirrou muito depois da assinatura do
Termo de Ajustamento de Conduta - TAC. O que nós tínhamos antes da assinatura do TAC, que foi celebrado entre a
Fundação Nacional do Índio - Funai e o
Ministério Público Federal - MPF, em 2007, era um processo de “incêndios”. Uma determinada comunidade reivindicava uma área e a
Funai constituía um grupo de trabalho e havia identificação dessa área. Logo em seguida, outra comunidade verificava que houve atendimento daquela e também pleiteava. Ou seja, era um processo a conta-gotas. Sendo que é de pleno conhecimento do governo federal que essa área é de ocupação indígena intensa, plenamente documentada e comprovada. Então, o colega
Charles Pessoa (procurador de Justiça que antecedeu
Marco Antônio Delfino de Almeida em
Dourados, Mato Grosso do Sul) teve a iniciativa elogiosa de efetuar esse TAC, justamente para que, ao invés de se fazer esse processo de conta-gotas, fosse possível se concentrar e não privilegiar uma ou outra comunidade e sim todas ao mesmo tempo. Ou seja, não aquela que, de repente, tem uma influência ou poder político maior, mas todas aquelas comunidades indígenas ao mesmo tempo. E, também, se resolver a questão do ponto de vista de segurança jurídica. Essa era a intenção.
|
"É preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a Constituição Federal"
|
Só que, o momento que houve a assinatura também foi o momento em que houve o
julgamento do caso de Raposa Serra do Sol. E lá houve aquela questão de marcação contínua, descontínua e foi um processo que mobilizou intensamente os movimentos rurais. E houve em
Raposa Serra do Sol um caso em que quiseram transpor para cá e que, absolutamente, não existe. Diziam que o TAC abarcaria cidades, que cidades desapareceriam. Então, desde 2008, esse clima de terrorismo impede que o processo de demarcação avance. O próprio governo federal recuou politicamente. Ele entende que politicamente não é uma briga que vale à pena de ser travada. E, desde 2008, sustenta que há uma reação entre os produtores que impede a ação governamental. Porém, na verdade o que nós temos é uma questão política que o governo não tem interesse em superar.
O que temos é um cenário absolutamente de impasse e que só prejudica todo mundo. Temos várias decisões judiciais que asseguram aos indígenas permanência no território. Essa é uma permanência precária. Uma vez conseguida através de aparelhos públicos, é necessário que demandemos novas medidas judiciais para assegurar escola, para água, para produção, entre outras. Também são áreas pequenas, que para os indígenas representam uma pequena fração do território a que eles tem direito.
Ou seja, tem todos os empecilhos jurídicos para que seja plenamente utilizado. Por parte dos produtores rurais é um prejuízo econômico, por conta da retirada dessa área da parte produtiva. Para a União também é extremamente cômodo por que ela fala simplesmente: “não, essa área está em litígio”. E assim, simplesmente, permanece silente. As mesas de negociação que ocorreram não avançaram. Nós não temos uma perspectiva, em médio prazo, de solução. O governo, de uma forma muito clara, tem ações contraditórias.
IHU On-Line - Houve um momento, em 2007, que governo e MPF sentaram numa mesa, houve negociação e daí surgiu o TAC. Mas, pelo que o senhor afirma, já no outro ano as determinações desse documento não valiam mais para o governo. É isso mesmo? E o MPF está tendo, agora, que intervir nesses mesmos pontos apenas para fazer com que o TAC seja cumprido?
Marco Antônio Delfino de Almeida - Sim, sim, é isso. São vários problemas. O TAC é um compromisso que normalmente o MPF celebra com particulares, eventualmente com órgãos públicos. Via de regra, é um instrumento que obviamente obriga aquele que assinou a cumprir. Agora, é extremamente complicado, num país que nós entendemos que as instituições venham a funcionar, que o órgão responsável realmente cumpra. O que o TAC diz é isso: “Funai, ao invés de se fazer esse processo à conta-gotas, a identificação de territórios, faça de uma forma concentrada, cumpra-se essa obrigação”. Obrigação essa que a lei 6.001 estabeleceu, desde 1978, que, em cinco anos, todas as terras deveriam ser demarcadas. Aí, esses cinco anos foram parar lá na Constituição.
Ou seja, até 1993, todas as terras deveriam ter sido demarcadas. Não foram. Então, já é uma omissão grave do Estado brasileiro em não cumprir uma ação que a
Constituição determina. Aí, você determina que o órgão que deveria já ter feito isso desde 78, e depois de 93, faça o que manda a lei. Então, dá prazo adicional para que ele cumpra. Ele – o governo federal - vai lá, com toda a pompa e circunstância, e assina um compromisso. E entende que, a partir do momento que é assinado pelo presidente da Funai, que está submetido ao Ministério da Justiça, que tem autorização do Ministério, tenha que cumprir. Eu não quero crer que o presidente da Funai assinou um TAC sem o Ministério da Justiça saber e sem que tenha havido o compromisso do governo federal como um todo. Mas, todo esse compromisso é descumprido. Simplesmente fala: “esqueçam o que assinei”. Mostra o quão pouco as instituições, que deveriam ter o mínimo de respeito com a
Constituição,encarem suas obrigações.
|
"A defesa das comunidades indígenas é igualmente um mandato expresso do Ministério Público Federal"
|
Nós estamos falando de uma situação extremamente grave, plenamente relatada na
Organização das Nações Unidas - ONU, em diversos relatório da
Anistia Internacional. Ou seja, até as pedras sabem que os indígenas do Mato Grosso do Sul esperam. Nos últimos dez anos, mais de 600 suicídios, o maior número de violência intraétnica. O
Mato Grosso do Sulestá na casa de 150, 160 homicídios por 100 mil habitantes. As pessoas estão morrendo, esperando que a solução para esse problema seja gerada. Um problema que a União, de uma forma clara, teve e que não pode se apartar, dizer que desconhece. Talvez os
Guaranis Kaiowás, por exemplo, sejam a comunidade mais etnografada, fotografada, de todas as que existem no país. É uma questão muito estudada.
IHU On-Line - O senhor quer dizer que não tem como a União argumentar que não conhece essa realidade do Mato Grosso do Sul?
Marco Antônio Delfino de Almeida - Não tem como dizer! Desde 1917, o FBI (Fundação Brasileira do Índio, órgão que antecedeu a Funai) está em Mato Grosso do Sul. Ou seja, há quase 100 anos. Então, é uma realidade que eles conhecem há 100 anos.
IHU On-Line - O senhor pontua duas questões: 1) a União não está respeitando a própria Constituição; 2) em função disso foi necessário que o MPF firmasse um acordo. E nem esse acordo está sendo respeitado. Diante desse cenário, de que maneira o MPF se torna um mecanismo de solução dos problemas devido a incompetência do estado em resolver a questão indígena?
Marco Antônio Delfino de Almeida - Ainda que nós, muitas vezes, tenhamos essa pecha de que somos defensores incondicionais dos direitos indígenas, é preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a Constituição Federal. A defesa das comunidades indígenas é igualmente um mandato expresso do Ministério Público Federal. E entendemos que em Mato Grosso do Sul o MPF está cumprindo a Constituição Federal. Está fazendo com que as determinações constitucionais sejam plenamente cumpridas, inclusive assegurando a todos aqueles que de alguma forma esquecidos.
A União não pode se esquivar. Estava aqui há 100 anos, é parte indissociável desse processo. Todas essas terras indígenas estavam nessa faixa de fronteira, de 66 para 100, 150 quilômetros. No entanto, títulos estaduais, por exemplo, que foram fornecidos tinham que ser ratificados para serem plenamente válidos. Ora, se a União ratificou títulos, é porque minimamente ela se omitiu no dever dela de pesquisar se naquelas áreas havia ou não presença de comunidades indígenas. E não satisfeita da forma omissiva de ratificar títulos, a FBI e posteriormente a Funai removeram populações indígenas. E pode dizer que isso foi em outra realidade, na década de 40. Mas não é verdade. Isso são dados de 1978, em que a Funai – veja, a Funai, não FBI. Poque isso é muito colocado. Como se as instituições, só por trocar de nome mudassem, resolvessem. Os vícios permanecem, as práticas permaneceram – pegou índio, botou no caminhão e mandou para 400 quilômetros de distância. Isso é o que? É limpeza étnica. É a mesma coisa que se faz na Sérvia, em outros lugares. É deslocar populações. Mas, não satisfeita com isso, em 1993, fez a mesma coisa: pegou população e deslocou de local.
E o interessante é que em 1993 foi após a Constituição de 1988. O ano de 1993 é uma data interessante porque, teoricamente, é o ano em que todas as terras deveriam ter sido demarcadas. Só que, nesse mesmo ano, a Funai ainda estava removendo indígenas de um lado para outro. Traz para Dourados. Não, Dourados está muito cheio. Agora, manda para Amambaí. Ah, mas lá também não dá. Enfim, pegando indígenas e removendo como se fossem engradados de cerveja, armários. Era essa a prática.
E, reitero, não satisfeita com essa prática de remoção, ainda fez a titulação em área indígena. Nós tivemos a
Colônia Agrícola Nacional de Dourados. Área de 300 mil hectares, boa parte dela dentro de território indígena. Nós tivemos o
Projeto Integrado de Colonização de Sete Quedas, dentro de área indígena. Tivemos
Projeto de Colonização de Iguatemi, dentro de área indígena.
Ou seja, projeto de colonização, projetos de incentivo ao povoamento, feitos pela União. Então, a União tem papel central nesse processo. E foi muito feliz a juíza ao trazer a União para o papel que ela deve assumir. Ela não pode se afastar do papel central na evolução dessa questão. Não é possível que nós tenhamos um país em que três ministros de estado, três altas autoridades públicas, façam declarações públicas, como foi feito em 2013, de que a resolução da questão indígena emMato Grosso do Sul demoraria 90 dias.
E passados um ano e meio nada acontece. É extremamente complicado se entender que, mesmo no Brasil, as instituições tenham tanta fragilidade. Se bem que já é esperado. Se a partir de um momento que um TAC é assinado pelo presidente da instituição que, teoricamente, garante o direto dos índios e o TAC não é cumprido, não é de se surpreender que autoridades públicas caminhem no mesmo sentido.
IHU On-Line - Em que medida a questão indígena é uma pauta que não evolui no Congresso e no Executivo por incompetência e inabilidade em tratar do tema?
|
"O que vejo, infelizmente, é que a União fica numa posição extremamente cômoda"
|
Marco Antônio Delfino de Almeida – O que vejo, infelizmente, é que a União fica numa posição extremamente cômoda. Há um compromisso político, mas com um determinado segmento. E aí se usa o eufemismo de que a demarcação vai avançar com responsabilidade ou acordo e, ao mesmo tempo, se faz compromissos com as lideranças indígenas de que irá cumprir seu papel. Ou seja, a União tenta atender a todo mundo (produtores rurais e indígenas) ao mesmo tempo, mas não atende ninguém. Enquanto não começar a atuar e sair dessa posição cômoda de imobilismo nada vai avançar.
A União sustenta que ela precisa de segurança jurídica nas suas ações. Ora, o
Conselho Nacional de Justiça - CNJ já fez um relatório apontando um rol de soluções. Já há várias decisões judiciais sustentando que a indenização é uma possibilidade. Só que a União recorre de tudo. Essa decisão de agora, com certeza, vai recorrer e tentar suspender. Ela, definitivamente, não tem interesse em solucionar. O interesse é manter essa solução em que pequenas áreas são ocupadas. O prejuízo é imenso para todo mundo, mas é mais cômodo do que efetivamente cumprir seu papel, tomar uma atitude que seja efetivamente englobante, sistêmica. E volto a afirmar: está longe de ser um imobilismo ocasionado por desconhecimento da situação. Só de relatórios aqui tem vários, diversos. Não há como dizer que desconhece a realidade local.
IHU On-Line - E o papel do Congresso? Não poderia pressionar a União para quebrar esse imobilismo?
Marco Antônio Delfino de Almeida – A grande questão é que o Congresso acaba entendendo o processo de demarcação sempre como o antagonismo de matéria e antimatéria. O processo de demarcação é sempre visto como um processo de destruição da produção. Ora, no caso específico de Mato Grosso do Sul, o que nós temos é: os indígenas ocupam 80 mil hectares, o que vai dar 0,3% da superfície do território do estado. Mato Grosso tem 27% de sua superfície ocupada por terras indígenas. E é o maior produtor de grãos, mesmo tendo restrições ambientais, porque parte do Mato Grosso está no bioma amazônico, tem área de transição de serrado e apenas uma parte, ao sul, tem um regime de regramento ambiental semelhante ao Mato Grosso do Sul. Nele, você pode plantar em 80% da área da propriedade rural. Ainda que você tivesse esse número elevado para 1%, 1,5%, acreditar que isso irá de forma grave afetar a produção é uma falácia. Imagine-se que essa área passe de 0,3% para 2% da superfície do estado. Apenas em terras degradadas hoje, no Brasil, nós temos 18 milhões de hectares. É algo em torno de 2,5% da superfície do país. São terras degradadas que não produzem e que poderiam produzir se fossem adequadamente tratadas. Essa oposição entre demarcação e produção não se sustenta. É dar a uma população que historicamente tenha o direito àquilo o que é seu. E não estamos falando em presente, mas sim em cumprir a legislação. É apenas isso: dar a cada um o que é seu. O Estado Romano tinha três fundamentos: viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o que é seu. O que se está defendendo: que se dê aos indígenas é o que é deles, que foi retirado deles.
E não há que se falar coisas como: “ah, vão devolver então a Copacabana”. Mas alguém está reivindicando Copacabana? Não. Também é outra falácia muito sonora do ponto de vista argumentativo, mas que também não se sustenta.
IHU On-Line - Diante de todos esses argumentos, se constrói a seguinte equação: de um lado há o produtor rural, que já foi posto naquela terra, e de outro há o índio que não tem a terra que é sua por direito. Como resolver essa equação? O caminho da indenização é a solução?
Marco Antônio Delfino de Almeida - É o caminho. Porque boa parte desses títulos dados aos produtores foram feitos pelos estados, em muitos casos ratificados pela União. Não há como a União, nesses casos, voltar e, 30 anos depois, esquece aquele ato de retificação e considerar o título nulo. Está certo que estamos acostumados a mandatários não cumprirem aquilo que eles se obrigam a fazer. Mas o Estado, principalmente em casos documentais, tem uma obrigação clara. Então, nesses casos em que tiver havido ou a colonização pelo governo federal ou a ratificação do título pela União, eu não vejo outra solução que não seja a indenização.
IHU On-Line - Hoje, a Funai é ligada ao Ministério da Justiça. Há quem defenda uma desvinculação, levando-a para outra pasta. O senhor acredita que isso traria uma efetividade maior para a Funai? E qual seria o melhor ministério para abrigá-la?
|
"A Reforma Agrária também é um mandamento constitucional, ela tem que ocorrer"
|
Marco Antônio Delfino de Almeida - O
FBI ficou durante muito tempo ligado ao
Ministério da Agricultura, porque o objetivo era usar os indígenas como mão de obra. Especialmente no Mato Grosso do Sul eles foram usados amplamente como mão de obra. O que é outro ponto interessante.
Toda a base econômica do estado foi calcada na mão de obra indígena. Posteriormente, o
FBI teve idas e vindas e durante em toda a sua existência, na maior parte do tempo, esteve vinculado ao Ministério da Agricultura.
Eu, sinceramente, não vejo uma eventual desvinculação da Funai do Ministério da Justiça como algo que vá ocasionar uma alteração drástica na realidade que tem. Como verificamos se uma ação é prioritária? Há um mandato constitucional que determina que em até cinco anos toda a terra indígena seja demarcada. Isso seria em 1993. A mora já é uma mora de 22 anos. Se tenho mora de 22 anos, eu minimamente vou entender essa ação como prioritária.
Se me proponho a respeitar a Constituição, a entender a Constituição como lei maior que deve nortear as questões de Estado, eu entendo que a mora constitucional é algo gravíssimo. E, assim, deve ser reparada o mais breve possível. Logo, tenho que angariar a maior quantidade de recursos para que essa mora seja purgada, não exista mais. E essa priorização não deve ocorrer com a mudança de caixinha, daqui para lá. Vai ocorrer com recursos humanos e materiais, com suporte político, o que a Funai não tem há muito tempo.
IHU On-Line - Como é viver num Estado que é considerado pelo Ministério Público Federal como o maior conflito fundiário do Brasil? Qual o maior desafio?
Marco Antônio Delfino de Almeida – Do ponto de vista pessoal você tem alguns problemas. A gente já teve algumas ameaças à atuação. Não ameaças físicas, mas reações. Ações foram movidas para tentar tolher a atuação do Ministério Público, supostamente e para que os procuradores não atuassem. Foram pedidos de indenizações movidos pelos sindicatos rurais num intuito claro de tolher a atuação institucional. Mas entendo isso como uma reação despropositada. Porque o Ministério Público está aqui para cumprir a Constituição.
Infelizmente, cumprir a Constituição não é algo que seja simples. Muitas vezes também não é cômodo e é isso que as pessoas acabam não vislumbrando. O que queremos é que os direitos constitucionais sejam plenamente exercidos. Tanto uma eventual reparação pelo erro do Estado como o direito a terra assegurado às populações indígenas. Mas é obvio que isso causa uma reação. Nada que venha a afetar de forma expressiva nossa atuação.
IHU On-Line - O senhor acredita em Reforma Agrária?
Marco Antônio Delfino de Almeida - A
Reforma Agrária, tal como a questão indígena, tem que ter uma adequada atuação. Tem que ter recursos que sejam carreados de forma adequada para que a reforma venha a funcionar. E uma série de filtros tem que ser colocados para que efetivamente ocorra. Eu falo isso porque a
Reforma Agrária também é um mandamento constitucional, ela tem que ocorrer. Não é questão de acreditar ou não. Tem que ocorrer. Agora, a implementação é que depende de alguns pontos. Especialmente nos locais onde a terra é muito valorizada, como no caso do
Mato Grosso do Sul. Aqui, há regiões na faixa de 20 a 25 mil hectares e você tem, ao mesmo tempo, da mesma forma como a
Funai, um órgão que não recebe a quantidade de recursos humanos e materiais necessários ao seu desempenho. O
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra foi perdendo número muito grande de servidores. Vários servidores de um concurso da década de 80, na faixa de 20 a 30%, vão sair. Tanto a
Funai quanto o Incra perdem esses servidores sem a perspectiva de reposição, especialmente nesse cenário que é de contenção de despesas.
Então, precisa realizar determinada ação de reforma agrária. Não há recursos humanos e materiais disponíveis para fiscalizar a implementação. Falo daqueles recursos para os assentamentos, que deveriam vir para que a pessoa possa produzir, ter uma vida digna, cumprir efetivamente um mandamento constitucional que é produzir e inverter esse fluxo que é do campo para a cidade. É esse recurso que não aparece. Então, as pessoas ficam sem água, sem acesso a linhas de crédito. Essa pessoa, no artigo valiosíssimo que é a terra, faz o que? Comercializa. Se não houver atuação adequada do órgão fundiário, também vamos ter problema.
É um problema de mais fácil solução do que a questão indígena. Acho que o problema é de gestão. A gestão do órgão agrofundiário tem vários problemas, ás vezes causados por falta de recursos, mas que tem que ser solucionado se quisermos uma reforma agrária de qualidade.
IHU On-Line - O senhor acompanha os problemas dos Guarani Kaiowá de perto. Gostaria que o senhor atualizasse esse tema. Qual a atual situação?
Marco Antônio Delfino de Almeida - Os Guarani Kaiowá são uma comunidade indígena, a segunda maior do país, com 40 mil indígenas. Temos um cenário de extrema vulnerabilidade dessas comunidades. Se pegarmos os mais variados índices que medem a qualidade de vida dessas pessoas, veremos que os índices são muito ruins. Em 2006, tivemos um quadro gravíssimo de desnutrição infantil. E aí houve toda uma atuação do Estado. Quando o Estado quer, ele atua. Houve muitas reportagens em 2006 e 2007 que retrataram de forma brutal essa desnutrição das comunidades, quando as pessoas simplesmente morriam de fome. E a partir do momento que essa questão foi minimamente resolvida, a atuação do Estado não mais passou a ser prioritária. E ainda índices de violência elevadíssimos, na faixa de 150, 160 homicídios por 100 mil habitantes. Em São Paulo, o índice é de 8 a 9. O índice de alerta da Organização Mundial da Saúde - OMS é 10 e no Brasil é 25 ou 24. E, mesmo com as nossas ações, os índices permanecem. Não há uma atuação sistêmica, global.
O Estado age sempre de forma pontual e demandada pela ação judicial. Não tem uma política que venha contemplar de forma expressiva essa população. Então, talvez apenas quando houver uma determinação internacional, uma condenação na corte interamericana, é que o governo vai se mobilizar. Algo semelhante à
Lei Maria da Penha. A violência contra a mulher é uma realidade no país. Mas, apenas quando houve a condenação houve toda essa mobilização de aprovação da legislação, construção de centros e tudo mais. O conhecimento do problema era de todas as autoridades, mas não havia uma mobilização para a sua solução.
A situação dos
Guarani Kaiowá é semelhante. Não há como colocar ar de surpresa e dizer que não sabia. Como não sabia? Há agentes públicos aqui há quase 100 anos, em contato direto com essa realidade. Como é que o governo vai desconhecer isso. Não estamos falando de uma comunidade recém contatada, com outros problemas. Estou falando de uma realidade em que as reservas do Mato Grosso do Sul existem há quase 100 anos.
Essa é outra questão. Muitas vezes as pessoas naturalizam e colocam que lugar de índio é na reserva. Como se a reserva fosse local de índio. A reserva é um local que foi escolhido, determinado para abrigar indígenas. Tem um livro de Couto Magalhães chamado Os Selvagens (Itatiaia Editora: Belo Horizonte, 1975), que é praticamente a política governamental indígena. Essa época em que se passa Os Selvagens, nos Estados Unidos estavam discutindo o que iriam fazer com os indíos. Iriam exterminá-los, mas o extermínio era muito caro porque as guerras são muito caras e há uma reação pública a tudo isso. Paralelamente a discussão dessa posição dos Estados Unidos, o custo das guerras indígenas que ocorreram tanto no Chile quanto na Argentina também são levados em conta e se pensa: “não, as guerras são muito custosas e com certeza serão o mesmo no Brasil. Então, é interessante pegar esse um milhão de braços e utilizar para explorar como mão de obra nas lavouras para colonizar o país”. E as reservas são nesse sentido. São espaços para colocação de mão de obra, que era utilizada nas fazendas. Os indígenas foram usados como mão de obra na cultura de erva-mate. Depois nas fazendas, para derrubada de mata, plantio de gramas. Nas década de 60, 70 passaram a atuar nas lavouras de cana.
Então, na linha de Os Selvagens, o indígena foi essa mão de obra que foi usada ao invés de exterminar. Mas para que fossem feitas as reservas você teve que retirar populações. E há 100 anos essas populações indígenas são retiradas. Essas reservas são, do ponto de visto jurídico, campos de deslocados internos. Que é, na verdade, uma espécie de parente do refugiado. Só que o refugiado tem esse viés externo, fora do país. O deslocado interno é aquele deslocado de sua área, mas que fica dentro de seu país. É o caso da Nigéria, agora, por exemplo, BoKo Haram. E no Brasil não foi nenhum grupo terrorista, foi o próprio Estado Brasileiro que fez todo processo de retirada.
Os índios e Copacabana
E nesse sentido que volto ao exemplo de Copacabana. “Se os indígenas quiserem nossa Copacabana, o que vamos fazer?”, dizem. Ora, e o que esses mesmos senhores que fazem toda essa declaração pomposa fariam se um caminhão encostasse na porta do prédio deles em Copacabana, no Rio de Janeiro, pegasse todos os pertences, com a família e todos os parentes e os levasse a 400 quilômetros de distância. O que fariam? Isso foi feito com os indígenas aqui. E nós estamos falando em 1978, 1993, 1994. Não estamos falando em 1500, 1600. Mesmo assim, há uma dificuldade em se reparar essas comunidades.
Essa questão do marco temporal também é interessante. O próprio Supremo Tribunal Federal - STF, a ministra Carmem Lúcia, entendeu que reparações econômicas de crimes contra humanidade são imprescritíveis. Então, se fui torturado eu posso demandar do Estado sem qualquer marco temporal. Se o fato for hoje, posso entrar com reparação econômica contra o Estado daqui há 20 ou 30 anos. Ora, e a reparação que visa estabelecer a dignidade dessas comunidades? Aí se estabelece um marco temporal. Se você não estava em seu território em 1988, não tem direito a reparação. Mas porque a diferença? Também nesse caso, se estabelece uma diferenciação. Uma diferenciação que havia lá no século XVI, entre humanos e não humanos. Será que os índios são humanos ou não humanos? Será que tem alma? Então, para os humanos há flexibilidade e para os não humanos se estabelece o marco temporal.
Por João Vitor Santos e Ricardo Machado