domingo, 29 de junho de 2014

Professores da USP denunciam prisão e flagrante policial forjado

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Professores da USP denunciam prisão e flagrante policial forjado

De acordo com Padre Julio Lancelotti, que acompanhava Fábio no momento de sua prisão, o flagrante policial foi forjado.


Nós Somos Fábio Hideki Harano dos professores da USP signatários do texto, via e-mail
DAR
Por que as pessoas protestam?
 
Depois de junho de 2013 uma onda de protestos incomoda os porta-vozes das classes endinheiradas na imprensa. Desde a invocação do direito de ir e vir em São Paulo (sic) até a aceitação do protesto (desde que sem vandalismo!), a grande imprensa elenca vários argumentos contra as liberdades democráticas dos manifestantes.
 
Obviamente, as pessoas comuns protestam porque não podem formar lobbies no Congresso; porque não frequentam as altas rodas em que as políticas  reais são conchavadas; porque não acompanham políticos em jatinhos carregados de drogas. As pessoas protestam quando não são indiferentes.
 
Fabio Hideki Harano é um jovem solidário.  Ele foi a atos em defesa da causa negra sem ser negro. Ele acompanhou a marcha da maconha sem ser usuário. Ele foi ao ato do dia 23 de junho sem condenar black blocs, pichadores e outras formas de indignação da juventude. Quem conhece o Fábio sabe que ele é também pacífico.
 
Fábio pertence ao movimento estudantil da USP e para ele escreveu análises muito ponderadas. Fábio não carregava explosivos quando foi preso nas escadarias do Metrô. Ele só ia para casa.
 
Fabio não pertence a nenhuma associação criminosa como a Polícia o acusa. Ele é aluno e funcionário da USP. E está em greve, exercendo um direito constitucional. O Padre Julio Lancelotti, que o acompanhava, viu que o flagrante policial foi forjado.
 
Os policiais, os juízes do Tribunal de Justiça que lhe determinaram prisão preventiva, o Governador da Opus Dei e  seu secretário e os membros da imprensa que tratam de seu caso com “neutralidade” apenas reforçam a nossa Democracia Racionada. Fabio é uma vítima dela.
 
Se Fábio Hideki Harano e o professor Celso Lusvarghi não forem soltos; se não forem retiradas todas  as falsas acusações contra eles, ninguém poderá dormir tranquilo. Se Fabio  foi preso à luz  do dia só por ser um militante político de esquerda, não é preciso perguntar o que a Democracia Racionada guarda para os jovens presos à noite nas quebradas da vida.
 
Todos nós somos hoje Fábio Hideki Harano. A injustiça que pesa sobre ele pesa sobre nós.
 
Nós Somos Fábio Hideki Harano.
 
Assinam os Professores da USP:
Jorge Grespan – Jorge Luiz Souto Maior – Lincoln Secco – Luiz Renato Martins – Marcos Silva – Ricardo Musse – Vladimir Safatle
 

Créditos da foto: DAR

Angra-Paraty-Ubatuba saem em defesa dos Territórios Tradicionais

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Angra-Paraty-Ubatuba saem em defesa dos Territórios Tradicionais

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Num dos trechos mais turísticos do litoral brasileiro, quilombolas e caiçaras exigem condições para manter sua cultura e comunidades. Campanha começa sábado, em Ubatuba
Por Redação e Isabela Vieira, da Agência Brasil | Imagem: Antonio GomideDepois da pesca
Comunidades tradicionais da região do litoral norte de São Paulo correm risco de desaparecer. Para tentar evitar este processo, será lançada, no próximo sábado, a campanha “Preservar é Resistir - Em Defesa dos Territórios Tradicionais”. Organizada pelo  Fórum de Comunidades Tradicionais Indígenas, Quilombolas e Caiçaras de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, a campanha quer a garantia dos territórios tradicionais para preservar os modos de vida de suas antigas populações. O lançamento coincide com a tradicional festa de São Pedro Pescador de Ubatuba, que homenageia o padroeiro dos pescadores da cidade e existe há mais de 90 anos. Para a apresentação, será exibido um vídeo junto de apresentações musicais e exposição de fotos.
As comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras que vivem no litoral entre o Rio de Janeiro e São Paulo sofrem com a grilagem de terras na Serra do Mar, com o turismo de escala e com a falta de políticas públicas, como educação e infraestrutura.
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Segundo Vagner do Nascimento, integrante do Fórum das Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba, um dos principais problemas na região é a sobreposição de unidades de conservação nas comunidades. Ele diz que a situação “engessa” a população e desassocia o homem da natureza, fator que garantiu a sobrevivência desses grupos até hoje. Na região, moradores e especialistas querem a recategorização das unidades para parque estadual ou reserva extrativista — modalidade criada pelo ambientalista Chico Mendes.
O vice-presidente da Associação de Moradores do Pouso da Cajaíba, na Reserva da Juatinga, Francisco Xavier Sobrinho, explica que, na prática, morar em uma reserva significa ficar impedido de usar a natureza para sobreviver. Não se pode construir casas de barro, prática agroecológica, as tradicionais canoas caiçaras — esculpidas em um único tronco –, plantar e pescar. “Precisamos resistir para continuar aqui e assegurar o que temos para as novas gerações”, disse.
Na divisa dos estados, o fórum destaca que a legislação atual prejudica as comunidades quilombolas Cambury e Fazenda Caixa, dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina e do Parque Estadual da Serra do Mar. Em ambas, as práticas culturais são reprimidas. “Ou seja, a pessoa vive na pobreza em um território rico porque está impossibilitada de viver com dignidade, conforme suas gerações passaram”, lembrou.
Mais próximo da cidade histórica de Paraty, o fórum denuncia que a sobreposição de unidades de conservação não permite a chegada de energia elétrica e a pavimentação de estradas originais, para não causar impacto ambiental. A situação afeta comunidades caiçaras na costa e indígenas da Aldeia Araponga. Vivendo em uma área apertada, o grupo tem dificuldade de acesso à água, a serviços de saúde, está superlotada e tem problemas com o descarte adequado de lixo.
“Os indígenas têm o território, que originalmente é deles, ameaçado pela especulação imobiliária para a abertura de novas áreas para condomínios e pousadas”, disse Vagner.
Outro problema causado pela especulação imobiliária é a restrição imposta por condomínios de luxo a caiçaras de praias como a do Sono, que perderam o acesso ao mar. Agora, precisam passar por dentro do condomínio, em uma carro cedido pelos administradores para chegar aos barcos. O turismo na costa e em áreas de berçários de peixes, como o Saco do Mamanguá, também avança e está entre as preocupações do fórum, em defesa da pesca artesanal.
Para mostrar como vivem, as comunidades fizaram um vídeo de cerca de dez minutos que lançam junto com a campanha “Preservar é resistir”, na festa de São Pedro Pescador, sábado (28).
Mais informações:
Lançamento da Campanha “PRESERVAR É RESISTIR” — Em Defesa dos Territórios Tradicionais
Ubatuba (SP)
dia 28 de junho, sábado,
a partir das 17h30h,
na praça de eventos da 91º Festa de São Pedro dos Pescadores de Ubatuba, SP
Site da Festa de São Pedro dos Pescadores de Ubatuba, SP
FacebookIssuuPreservar é Resistir – Em Defesa dos Territórios Tradicionais

Dez anos de cotas na universidade: o que mudou?

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Dez anos de cotas na universidade: o que mudou?

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Índice de negros, mestiços e índios no ensino superior multiplicou-se. Seu desempenho é notável. Balanços desmentem preconceito inicial. Mas S.Paulo ainda resiste…
Por Igor Carvalho, na Revista Fórum
Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. O baixo índice indicava que algo precisava ser feito. “Pessoas estavam impedidas de estudar em nosso país por sua cor de pele ou condição social. Se fazia necessário, na época, uma medida que pudesse abrir caminho para a inclusão de negros e pobres nas universidades”, lembra a pesquisadora e doutora em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Teresa Olinda  Caminha Bezerra.
A solução encontrada para que se diminuísse o déficit histórico de presença de negros e pobres nas universidades brasileiras foi a adoção de ações afirmativas por meio de reservas de vagas, que ficaram conhecidas como cotas. Porém, por todo o país, houve resistências à sua implementação.
Em 2003, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul começou a usar fotos enviadas por estudantes para decidir quais poderiam ter acesso às vagas, que foram determinadas por uma lei aprovada pela assembleia legislativa daquele estado. O “fenótipo” exigido era composto por “lábios grossos, nariz chato e cabelo pixaim”. A ação gerou protestos de movimentos negros. Ainda na Uems, em 2004, o professor de Física Adriano Manoel dos Santos se tornou réu em um processo na Justiça do estado por racismo. Ele teria dito, na sala de aula, que a universidade deveria “nivelar por cima, e não por baixo” o ensino, fazendo alusão aos cotistas presentes na sala, entre eles o estudante Carlos Lopes dos Santos, responsável pela ação judicial.
No Rio de Janeiro, em 2004, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou que rejeitaria uma possível política de cotas. O conselho de ensino da instituição, formado por professores, alunos e funcionários rejeitou a ação afirmativa. E o Ministério Público Federal (MPF) do Paraná entrou, em 2004, com um recurso na Justiça pedindo que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) não adotasse o sistema de cotas em seu vestibular. O Judiciário paranaense freou a prática entendendo que a reserva de cotas afrontava “o princípio constitucional de isonomia e reforça práticas sociais discriminatórias.”
Já em 2012, quando a Universidade de Brasília (UnB) já havia completado oito anos de distribuição de vagas pelo sistema de cotas, o Partido Democratas (DEM) entrou com recurso no Superior Tribunal Federal contra a medida, alegando, inclusive “racismo”.
Mas a resistência às cotas não se dava somente no âmbito de conselhos das instituições ou do Judiciário, e muitas vezes se dava por meio de atitudes racistas. Durante um torneio esportivo envolvendo faculdades de Direito, em 2005, torcidas adversárias se referiam à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) como “Congo”, por sua diversidade racial. A alcunha foi adotada pelos alunos da instituição carioca, e até hoje o país africano é símbolo de suas equipes.
Após algumas universidades estaduais e federais aderirem à sistemas de cotas, os números apresentados no começo da matéria começaram a apresentar melhoras. Subiu de 2,2% para 11% a porcentagem de pardos que cursam ou concluíram um curso superior no Brasil; e de 1,8% para 8,8% de negros. Os números são do Ministério da Educação (MEC), em levantamento de 2013. Parte dos movimentos negros questiona os números, considerados “tímidos”. “Não podemos nos conformar com esses dados, são baixos ainda. Há avanços, mas estão muito longe de significar os resultados que buscamos”, afirma Douglas Belchior,  do conselho geral da UneAfro e da Frente Pró Cotas Raciais.
Uerj, o motor propulsor
Em 2013, foram completados 10 anos da primeira experiência brasileira com cotas. A Uerj autorizou, no vestibular de 2002, que Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) autodeclarados solicitassem suas vagas por meio do sistema e a distribuição das matrículas ficou assim: 20% para negros, 20% para alunos de escola pública e 5% para portadores de necessidades especiais. Em 2007, o governador Sérgio Cabral determinou que no percentual de 5% deveriam ser inseridos os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos.
De 2003 a 2012, já ingressaram na Uerj,  pelo sistema de cotas, 8.759 estudantes. Destes, 4.146 são negros autodeclarados, outros 4.484 usaram o critério de renda, enquanto 129 pelo percentual de portadores de deficiência, índios. “O desempenho da UERJ é excelente. Os cotistas derrubaram o mito de que o nível cairia nos cursos, o desempenho deles é ótimo”, elogia Teresa Olinda Caminha Bezerra, que produziu, em parceria com o professor de Administração Pública, também da UFF, Cláudio Gurgel, o artigo “A política pública de cotas nas universidades, desempenho acadêmico e inclusão social”, de agosto de 2011.
Neste estudo, Teresa e Gurgel ajudam a derrubar um dos mitos do discurso anti-cotas. Dos 32 cursos oferecidos pela UERJ, seis são analisados no artigo, todos da turma ingressante no ano de 2006, e apontam para uma equivalência de notas no desempenho entre cotistas e não-cotistas, que contrapõe os valores alcançados no vestibular. No curso de Administração, os cotistas tiveram uma média de 30,48 pontos no vestibular, contra 56,02 dos não cotistas, quase o dobro de diferença. Porém, o desempenho durante o curso mostra um crescimento no rendimento dos cotistas, que chegam à média de 8,077 contra 8,044 dos não cotistas.
Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha.
A superação demonstrada pelos alunos cotistas é considerada “espetacular” por Teresa. “Eles rompem barreiras como preconceito e o histórico de ensino precário, mostrando que esse mito do ‘nível’ é apenas isso, um mito, sem qualquer base cientifica que se justifique.” Outro preceito desmentido no estudo é o da evasão (ver tabela abaixo), o que configuraria um “fracasso escolar”, nas palavras de Teresa e Gurgel. Nos seis cursos avaliados, a evasão de não cotistas é sempre maior.
Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha
Hoje, dez anos depois da experiência da Uerj, 32 das 38 universidades estaduais já adotaram modelos de ações afirmativas. No princípio, leis estaduais obrigavam as instituições a oferecem cotas, caminho seguido por 16 delas. Porém, com o passar do tempo, a outra metade das adesões foi espontânea, se dando por meio de resoluções dos conselhos universitários.
Alckmin e as “ilhas do privilégio branco”
Entre as 32 instituições que tem ações afirmativas há uma divisão importante. Enquanto 30 delas se utilizam do modelo de cotas para a inclusão de negros, alunos de escolas públicas e portadores de deficiência, somente a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) optaram pelo sistema de bônus.
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O formato é criticado por especialistas e movimentos sociais. “O bônus é horrível porque não reserva vagas, não estabelece uma condição para que o estudante negro possa acessá-las. As alternativas que foram colocadas, do College até a atual bonificação são ineficazes, elas não reconhecem o elemento racial como fundamental para a garantia do direito ao acesso às universidades”, explica Douglas Belchior.
“Os números que eles [USP e Unicamp] mostram são autoexplicativos, é uma política equivocada. Política pública tem que ser pragmática, se ela não produz resultado, não deu certo. O bônus você pode regular para fazer diferença, mas nessas universidades não querem que se faça a diferença”, afirma o cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) João Feres Júnior.
Na USP, a bonificação oferecida à alunos PPI é de apenas 5% na média. Porém, o estudante só terá acesso ao benefício se for aprovado na primeira fase do vestibular. O sistema funciona desde 2006, quando foi criado o Programa de Inclusão Social (Inclusp). Números divulgados pela USP mostram que desde 2006 o índice de ingressantes na universidade por meio do Inclusp variou entre 24% e 29%, sendo que o maior índice foi alcançado em 2009. Em 2012, último ano com dados compilados, o índice ficou em 28%.
Porém, a instituição paulista não desmembra os dados, impossibilitando que se saiba quantos negros e pardos conseguiram entrar na universidade. “A USP tenta mascarar os números, aliás os números falam o que você quiser. Os 28% apresentados pela USP são uma mentira apresentados assim. 28% quem? Quantos são negros? Em quais cursos eles ingressaram?”, pergunta Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama. Em matéria de junho de 2012, o jornal O Estado de S. Paulo revela que, em 2011, dos 26% de aprovados pelo Inclusp, apenas 2,8% eram negros e 10,6%, pardos, totalizando 1.409 alunos, entre os 90 mil da universidade.
Na Unicamp, o sistema de bonificação oferece 20 pontos ao candidato que se autodeclarar PPI e mais 60 para os que pedem acesso por ter baixa renda. Porém, a média de nota da universidade de Campinas é de 500 pontos, chegando a 700 pontos em cursos como o de Medicina. O resultado da política de inclusão da Unicamp é um índice baixo de negros, pardos ou índios que acessaram a universidade. Desde 2003, quando o modelo foi adotado, o percentual variou entre o mínimo de 10,7% no primeiro ano e o máximo de 16% em 2005. No ano de 2013, apenas 13,2% de PPIs entraram na Unicamp.
A culpa para o fraco desempenho é do governo paulista, para Douglas Belchior. “Em São Paulo, há um interesse político, que vem de cima, de manter a USP e a Unicamp como ilhas do privilégio branco. A tropa conservadora do [governador Geraldo] Alckmin tem maioria absoluta na Alesp, onde não se consegue instalar nem mesmo uma CPI sobre o cartel do Metrô, que é um escândalo absurdo. Nas universidades, os conselhos são dominados por educadores ligados ao PSDB e ao Alckmin.” A terceira estadual de São Paulo, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) reservou pela primeira vez, em dezembro de 2013, vagas para cotistas. Foram apenas 391 vagas para negros, pardos e indígenas, do total de 7.259 disponíveis.
A Frente Pró-Cotas Raciais, de São Paulo, iniciou uma campanha com o objetivo de conseguir 200 mil assinaturas para que um Projeto de Lei de iniciativa popular seja encaminhado e votado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). No documento, o movimento pede que o estado separe 25% das vagas disponíveis nas universidades.
Sudeste inclui menos
Geraldo Alckmin (PSDB), tentou, em 2013, aprovar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), projeto que foi massacrado por parlamentares e ativistas, que o consideravam racista, sendo derrotado nos conselhos universitários. O Pimesp propunha que os alunos aprovados no vestibular, na modalidade cotas, passassem a integrar um colégio comunitário que teria o intuito de nivelar os alunos considerados, pelo estado, mais “fracos”. Eram os chamados “colleges”.
Segundo o estudo “As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais”, de novembro de 2013, do Gemaa, coordenado por João Feres Júnior, a inércia paulista coopera para que a região Sudeste (16,7%) seja a que menos inclui no país, contra 40,2% do Centro-Oeste, 32,6% do Nordeste, 29% do Sul e 26,6% do Norte. “São Paulo tem estaduais gigantes que não incluem. O Rio de Janeiro tem uma estadual eficiente e que é pioneira, mas é pequena. Minas Gerais tem um sistema “vagabundo”. Voltando para São Paulo, a USP não funciona, a Unicamp também e a Unesp nunca gerou vagas. O Alckmin nunca criou uma regulamentação decente. O Sudeste, mesmo nas federais, quando aprovada a lei (leia abaixo), foi muito resistente em aceitá-la”, afirma Feres Júnior.
Silvio de Almeida lamenta que Alckmin não siga o mesmo prumo da maioria das universidades estaduais do país. “Ao se colocar numa postura de resistências às políticas de inclusão, que já se provaram eficientes, o governo paulista se coloca de maneira totalmente contrária aos interesses de uma parcela significativa de São Paulo.”
Lei obriga adesão de política de cotas nas federais
No segundo semestre de 2004, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição de ensino superior federal a adotar o modelo de cotas raciais como política de ação afirmativa. À época, se reservou 20% das vagas para quem se autodeclarasse como PPI.
Somente em 2012 foi aprovada a Lei 12.711, determinando que as universidades federais devem destinar 50% de suas matrículas para estudantes autodeclarados negros, pardos, indígenas – conforme definições usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE-, de baixa renda, com rendimentos igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita, e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O número de cotas para negros, pardos e indígenas é estipulado conforme a proporção dessa população em cada estado, segundo último Censo do IBGE, em 2010.
Dados apresentados pelo Gemma em seu estudo “O impacto da Lei 12.711 sobre as universidades federais”, de novembro de 2013, indica um crescimento no número de estudantes negros as universidades comandadas pela União. “Em 2003, pretos representavam 5,9% dos alunos e pardos 28,3%, em 2010 esses números aumentaram para 8,72% e 32,08%, respectivamente”, aponta o documento.
Antes da lei ser aprovada, 18 das 58 universidades federais do país ainda resistiam em aplicar alguma política de cotas ou bônus. Desde o vestibular de 2013, por força da legislação, todas as instituições já aderiram, ampliando o número disponível de vagas para cotistas de 140 mil para 188 mil. Silvio de Almeida, assim como a Frente Pró-Cotas Raciais, entende que a lei federal precisa ser revista, ampliando o número de vagas para cotistas. “Se vamos levar em consideração o percentual da população paulista de negros para estabelecer a quantidade de vagas, isso tem que ser feito em cima dos 100% das vagas, e não dos 50%, porque não seremos, no caso de São Paulo, 34,6% de negros na universidade, mas sim metade desse número. As demais vagas, continuarão nas mesmas mãos.”
O argumento é reforçado por Feres Junior, do Gemaa. “A Lei federal de cotas foi muito difícil de aprovar, acho que politicamente é difícil que os movimentos sociais consigam modificar esse percentual agora. Porém, eles tem razão, da forma como está, você tem um teto baixo. É claro que existem negros entrando pela ampla concorrência, mas ainda é um número tímido.”

sábado, 28 de junho de 2014

O general militante

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28/06/2014 - Copyleft

O general militante

O que fazer com o Exército argentino em um país sem probabilidade de conflito, com estratégias regionais de integração e com uma lei de segurança taxativa?


Mario Antonio Santucho
Arquivo

Certa vez, Néstor Kirchner falou para sua ministra da Defesa: “Não quero um exército politizado porque, se eu tenho um exército kirchnerista hoje, amanhã terei um exército antikirchnerista”. A sensatez da razão torna ainda mais chamativa a evolução das Forças Armadas desde o aparecimento do fator Milani. O atual chefe do Estado Maior do Exército declarou em uma entrevista a Hebe Bonafini em dezembro de 2013 que “nos últimos dez anos, consolidou-se um processo de transformação nas Forças Armadas, que começaram a ver um projeto nacional ou um modelo de país no qual as Forças querem se inserir muito profundamente”.

Os notáveis avanços e os surpreendentes retrocessos do oficialismo nessa questão têm apenas uma explicação possível: os motivos da aliança entre o governo e o general Milani são inconfessáveis. Ao cabo de uma década na qual a política assegura ter recuperado o protagonismo graças à influência do consumo reparador, à reposição de soberania estatal e aos discursos midiáticos, as forças conservadoras e invariantes que pululam nos subsolos da espionagem vêm à superfície para influenciar no que está por vir. Há quem diga que é inevitável mexer na fonte dessa racionalidade noturna de espionagem, escutas e caça-fantasmas quando o que se pretende é consolidar a hegemonia de um projeto de poder. Mas à medida que o “dia seguinte” se aproxima, os militares recuperam autonomia e geram as condições para que voltem a ocupar um lugar na cena.

A inteligência sem Estado

Em outubro do ano 2000, Nilda Garré assumia a Secretaria Executiva da Unidade Especial de Investigação criada pelo governo da Aliança com o objetivo de esclarecer o atentado à AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina). Um ano depois, ela renunciou por conta das pressões que se colocaram diante de seus interesses de desfazer a teia que o menemismo havia tecido na Justiça para manipular a investigação do fato. A onda expansiva da queda das Torres Gêmeas havia chegado até Buenos Aires.

Naquela época, a então senadora do Partido Justicialista Cristina Kirchner integrava a Comissão Mista de acompanhamento à Investigação dos atentados à Embaixada de Israel e ao edifício da AMIA, criada em setembro de 1996. A voz de Cristina foi uma das poucas dissidentes naquele corpo legislativo especial orientado a dar respaldo à duvidosa atuação do juiz federal Juan José Galeano e dos promotores – entre os quais, Alberto Nisman. Quando o século vinte agonizava, tanto Cristina como Nilda conheceram a teia de espionagem local, cujos fios se estendiam dos Estados Unidos até Israel. Daquela época data a amizade de ambas com Fernando Pocino, um agente da SIDE (Secretaria de Inteligência do Estado) de origem radical que, durante o kirchnerismo, ganharia relevância. Durante o dezembro mais quente da história argentina, alguns políticos voltaram a bater à porta dos quarteis.
 
A declaração de Estado de Sítio de 19 de novembro de 2001 foi concebida pelo então ministro da Defesa Horacio Jaunarena como o primeiro passo de uma estratégia prevista pelo artigo 32 da Lei de Segurança Interna: “o Presidente da Nação (…) empregará elementos de combate das Forças Armadas para o restabelecimento da situação normal de segurança interna, prévia declaração do estado de sítio”. Um assessor militar encontrou no escritório de Jaunarena, entre seus papéis abandonados logo após o estalido do governo de De La Rúa, um decreto cuidadosamente redigido por meio do qual se criavam os Comandos Operacionais previstos pelo inciso “b” do artigo citado acima: “Será designado um comandante operacional das Forças Armadas e a ele serão subordinadas todas as demais forças de segurança e policiais”. A janela legal rumo à militarização da segurança interna estava a ponto de ser aberta. Mas foi aí que se escutou o “que se vayan todos” (“que todos sumam daqui”).

Por aqueles dias, um desconhecido César Milani era promovido a coronel do Exército.

 
Garra para o processo

Em apenas quatro anos de exposição pública, César Milani é perfilado como o protagonista do terceiro ato relevante do pálido filme militar na democracia. O primeiro ato foi a luta nos anos 80 entre os genocidas em debandada e a estridente aparição dos caras pintadas. O segundo, um aflito general Balza oferece à tribuna uma autocrítica em relação ao passado e neutraliza as hipóteses de politização na década neoliberal. Empaladas pela vergonha de ter sido a pior fábrica do autoritarismo, esvaziadas até a inanição e incapacitadas de imaginar novos horizontes de desenvolvimento, as Forças Armadas chegaram ao século XXI com a língua de fora.

A gestão de Nilda Garré frente ao ministério entre 2005 e 2010 foi um divisor de águar porque tentou remover as bases de sustentação institucionais, atacando ao mesmo tempo o aspecto ideológico (os direitos humanos como valor supremo), a questão cultural (modificação radical da formação militar), e defendendo a presença feminina no interior das Forças. Do ponto de vista político, Garré avançou decididamente sobre a autonomia militar no manejo das Forças.

Para Marcelo Saín, autor do livro Os votos e as botas (2010), a gestão de Garré foi a melhor do período democrático na área da Defesa, “já que teve como horizonte a construção de capacidade de mando ministerial sobre o aparato militar, apropriando-se com êxito da capacidade de condução que historicamente haviam sido delegada aos Estados Maiores de cada Força”. O autor considera que “depois desse processo exitoso, muito pouco valorizado politicamente porque foi mais um projeto ministerial e não governamental, com a chegada de Puricelli tudo volta a ser como antes”. Mas sua preocupação não está no nível dos políticos, mas na expansão da influência de Milani, a quem em seu livro se referia (sem nomeá-lo) como um “assessor de inteligência de pouca importância que opera no entorno de Nilda Garré”.

Saín está convencido de que “o governo, assim como não estava de todo consciente do que significava a agenda de Nilda na Defesa, tampouco conhecia bem a mudança que Milani significava para o interior das Forças Armadas. Não está dentro do Painel de Controle do Governo Nacional e muito menos de um governo em retirada, imerso em uma crise econômica”.

Elevador verde 

César Santos Gerardo del Corazón de Jesús Milani foi promovido a general de Brigada em 2007. Nesse mesmo ano, uma operação exitosa de inteligência é realizada. Enquanto finalizavam os preparativos para a troca de Néstor por Cristina, os funcionários compravam suas fichas e faziam suas apostas. O multifuncional Aníbal Fernández, então ministro do Interior, especulava para assumir a Defesa. Para consegui-lo, conspirava com o titular do Exército, Roberto Bendini, e com o chefe da Inteligência Militar (conhecida como J-2), Osvaldo Montero. Essa foi a versão que o segundo de Montero apresentou à ministra Garré, de maneira reservada. A ação desencadeou a demissão do chefe dos espiões e a promoção de Milani ao comando da J-2. No ano seguinte, Bendini, o general que tirou os quadros, foi aposentado, sem honras.

Toda a liderança militar é construída em dois terrenos distintos. De um lado, está a carreira profissional, que não se rege por parâmetros puramente meritocráticos. Para subir, é preciso assumir determinados estilos, tecer cumplicidades e ser portador de uma certa representatividade corporativa. O tom conservador impregna as condutas desde o mesmíssimo Colégio Militar. Para aqueles que chegam a um plano superior, a bajulação passa a ser o elemento determinante. O vínculo com os atores políticos se constitui no fator-chave.

Milani jurou lealdade ao projeto de Garré e deu a entender que colocava à sua disposição o aparato de Inteligência do Exército. Os primeiros movimentos logo em 2007 foram de sedução. O general depurou todos os agentes envolvidos com a repressão ditatorial e acatou com entusiasmo a modernização do serviço de espionagem. A hierarquização da inteligência militar foi um dos principais itens no redesenho da Forças Armadas imaginado pelo ministério, em função das novas teorias sobre a questão bélica, o que se expressou no crescimento significativo do orçamento dedicado a isso. Também resultou na considerável expansão de sua rede de influência, implantando secionais em quase todas as unidades que o Exército possui no país, por menores que fossem.

2010 foi o ano da reviravolta nessa história. Nos primeiros dias de janeiro, uma peça-chave da equipe de Nilda Garré pediu demissão; o então vice-ministro Germán Montenegro, atual titular da Polícia de Segurança Aeroportuária, saiu do ministério incomodado com o crescimento de Milani nas Forças Armadas. Na imprensa, Montenegro relata uma aliança entre o general espião e outro homem-chave da espionagem nacional, o atual chefe do Departamento de Reunião Interior da Secretaria de Inteligência do Estado, Fernando Pocino. O alcance dessa conexão é e continuará sendo um enigma, mas é possível deduzir sua importância como base de sustentação do projeto de Milani.

Em fevereiro do mesmo ano, a revista Veintitrés publicou “Todos os nomes do Batalhão 601. Um documento histórico: a lista completa de todos os que integraram o organismo de inteligência da ditadura militar entre 1976 e 1983”, uma informação tornada pública por Milani. Três meses depois, o Exército participou de maneira entusiástica das festas do Bicentenário, um impactante e inesperado momento de reunificação pátria. Segundo o pesquisador Máximo Badaró, “a celebração do dia do Exército, o 29 de maio, se transformou na ocasião privilegiada para reescrever seu passado institucional e restaurar a sintonia entre a memória militar e a memória nacional. Para isso, as autoridades militares construíram um relato que omitia seu protagonismo na última ditadura e ressaltava em contrapartida sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social do país, e seus vínculos com a sociedade no contexto democrático atual” (Histórias do exército argentino, 2013).

A partir da morte de Néstor Kirchner em outubro de 2010, e especialmente logo após os enfrentamentos de dezembro no Parque Indo-americano da Cidade de Buenos Aires, em que três pessoas morreram como consequência da repressão das forças policiais, um novo esquema foi montado na área de Segurança. A magnitude alcançada por um novo tipo de conflito social que transformou os territórios provocou o transbordamento das polícias federais e provinciais, que foram penetradas pela potência econômica das redes criminosas, anulando a histórica regulação do delito exercida pelas forças de segurança. Nesse contexto, decidiu-se aprofundar a intervenção da Gendarmaria Nacional e da Prefeitura Naval em tarefas policiais, remanejando milhares de efetivos das fronteiras em direção às cidades. Em 10 de dezembro, criou-se o ministério da Segurança e Nilda Garré foi nomeada para comandar a nova estrutura. Arturo Puricelli, um velho político de Santa Cruz, assumiu como ministro da Defesa. A partir desse momento, os assuntos militares foram decididos diretamente entre César Milani e a presidenta Cristina.

Antes do Natal, Milani é promovido a general de Divisão e passa a controlar a subchefatura do Exército. Pela primeira vez, sua figura é questionada publicamente durante a discussão da sua indicação no Senado, na qual se aponta uma suposta afinidade com os caras pintadas. Mas, em vez de discutir sua situação no presente, aqueles que exigem a demissão do novo homem forte do Exército buscam argumentos unicamente no passado para desautorizá-lo.

Fronteiras da lei

O terrorismo foi a primeira das “novas ameaças” assinaladas pelo Comando Sul do Exército Norte-americano e presentes no país. Segundo as investigações judiciais, ela vem do Irã. Duas décadas depois do narcotráfico, proveniente da Bolívia, do Paraguai e da Colômbia, isso ocupa o centro das obsessões dos serviços secretos.  

De acordo com as informações obtidas por Saín entre oficiais atualmente na ativa, o Exército Argentino vem realizando atividades de patrulha militar no norte desde pelo menos outubro de 2011. Os efetivos escalados para tarefas relacionadas com o combate ao narcotráfico pertencem às Brigadas, V com sede em Salta, XII em Posada e III em Resistencia. As patrulhas estão conformadas pelo pessoal do Exército, que participa com restrição das ações, embora portando armas e sempre sob o comando formal de algum oficial. Tais manobras fazem parte da Operação Fortín II, a maior mobilização operacional das Forças Armadas desde a Guerra das Malvinas.

Fortín II é o dispositivo criado para incluir as Forças Armadas na Operação Escudo Norte, uma iniciativa do ministério de Segurança durante a gestão Garré. As leis de Defesa Nacional e de Segurança Interior promulgadas na democracia impedem expressamente que os militares intervenham em tarefas policiais, embora esta última preveja que “o Ministério da Defesa disporá, em caso de requerimento do Comitê de Crise, do apoio das Forças Armadas nas operações de segurança interior”. Como costuma acontecer em toda trama normativa que incorpora a excepcionalidade como possível, a interpretação se torna um campo elástico sujeito às correlações de forças.

A leitura dos decretos e resoluções despertam uma tensão significativa sobre como as distintas Forças iriam se envolver. A Resolução Ministerial que estabelece o Fortín II foi assinada pelo ministro da Defesa em 12 de julho de 2011 e apenas indica “incrementar e fortalecer as capacidades de vigilância e reconhecimento da matéria aeroespacial”. Uma semana depois, o decreto de criação do Estudo Norte diz que ele “terá por objetivo incrementar a vigilância e o controle do espaço terrestre, fluvial e aéreo da jurisdição nacional nas fronteiras nordeste e noroeste da República Argentina”.

Ambas as operações começaram em 20 de junho e deveriam ser concluídas em 31 de dezembro de 2011. As Forças Armadas contribuiriam com a informação solicitada pelo Sistema Nacional de Vigilância e Controle Aeroespacial (Sinvica), um plano de radarização que data de 2014 com o objetivo de monitorar o tráfego aéreo. O procedimento consiste em detectar “os voos irregulares” e transmitir esse “dado neutro” às forças de segurança para que procedam à eventual detenção. Em 7 de agosto, duas semanas depois de iniciadas formalmente as operações, um helicóptero da Gendarmaria derrubou um pequeno avião Cessna com 70 quilos de maconha em Campo de Gallo, a 200 quilômetros ao norte de Santiago del Estero. O Eurcopter AS350 de Gendarmaria também caiu ao solo logo depois de ser atacado pelo pequeno avião do narco.

Dentro desse contexto operacional, o Exército não tinha o maior protagonismo. Mas começou a pressionar. Até que, em 9 de setembro do mesmo ano, foi assinada uma Resolução Conjunta que prevê “a transferência do Sistema de Defesa Nacional para o Sistema de Segurança Interior todos os dados neutros relacionados a movimentos terrestres que foram oportunamente registrados pelas Forças Armadas no marco do exercício regular de suas funções de vigilância e controle”. Para tais efeitos, seriam empregados “radares táticos de vigilância terrestre (Rasit), de dotação do Exército Argentino, na zona delimitada pela Operação Fortín II”. Conscientes da ambiguidade da ordem, a Resolução Interministerial anexou um Protocolo que confirma a diferença essencial entre o que deve ser considerado um Tráfico Aéreo Irregular e o que se denomina movimento terrestre “irregular”. O primeiro é fácil de determinar, pois todo voo que não foi incorporado à Administração Nacional de Aviação Civil deve ser considerado suspeito, mas como os veículos terrestres circulam livremente, “não se pode qualificar como irregular um movimento terrestre na tela de um radar tático de modo a ser devidamente interceptado e identificado pelas Forças de Segurança”.

Foi assim que o Exército começou a desdobrar suas unidades no território norte do país, com um agravante: diferente do sistema de radar controlado pela Força Aérea, que possui localizações fixas, os Rasit devem ser empregados de maneira móvel e isso pressupõe deslocamentos fora dos quartéis, uma patrulha situada no limite da legalidade. A solução encontrada pelos brigadeiros da Força Aérea no comando da Operação foi permitir os deslocamentos sempre e quando estiverem sob as ordens e a responsabilidade de efetivos da Gendarmaria. O desempenho dos radares foi péssimo, mas a presença militar nos territórios continua e foi incrementada nos últimos meses.

Negócios de arma dura

A grande afinidade do general Milani com o poder político se traduz em prerrogativas e benefícios que permitem construir legitimidade entre seus pares. A Operação Fortín II é um argumento de peso não apenas por sua magnitude estética, mas também pelo que ela implica em termos de orçamento. O Decreto 1091/2011 estabelece que se aplique ao pessoal militar afetado “um regime de diárias equivalente ao homologado para o pessoal da Administração Pública Nacional estabelecido no artigo 45 do Anexo I do Decreto Nº 214 de 2006, com suas sucessivas modificações, assim como suas normas particulares de liquidação”. Isso permite aos soldados e oficiais quase duplicar seus minguados salários, já que todos os gastos de manutenção são cobertos pelo Exército.

No mesmo sentido, adverte-se quanto ao crescimento do número de integrantes da cúpula militar. Segundo dados trazidos pelo historiador Máximo Badaró, no fim da ditadura, o Exército contava com 102 generais para um total de 103 mil efetivos. Mas, já em 1984, essa quantidade havia se reduzido a 39 e, durante os vinte anos que vão de 1990 a 2010, não passaram de 35. Mas essa tendência decrescente foi quebrada e, atualmente, há pelo menos 54 generais para uma dotação que ronda os cinquenta mil membros, uma média de um para cada mil, assim como em 1982. essa propensão à macrocefalia contradiz a intenção de construir um controle unificado das três forças, mas é bem-vista no interior do Exército porque amplia as possibilidades de ascensões, “alargando o fuzil”.

Quanto, em junho de 2013, a presidenta ordenou a troca de todos os chefes militares, a consagração de César Milani foi definitiva. Pela primeira vez na história do Exército argentino, um oficial da área de inteligência assumiu a chefatura da Força, contrariando a tradição que estabelece a artilharia, a infantaria e a cavalaria como os três serviços principais com os quais se maneja uma guerra. Ao mesmo tempo, o general de divisão Luis María Carena, também oriundo da área de inteligência e, portanto, subordinado de Milani, foi colocado à frente do Estado Maior Conjunto, deslocando o brigadeiro general Jorge Chevalier, que estava no posto desde 2003. Outro general do Exército, Luis Cundom, foi designado comandante operacional do EMC. Milani multiplicou sua influência colocando quadros da inteligência militar em postos-chaves.

Um fato aparentemente sem vínculo com essa trama, mas que algumas pessoas ao par das redes de espionagem local apontam como muito relevante, foi a assinatura, no começo de 2013, do Memorándum de Entendimento entre Argentina e Irã sobre os temas relacionados ao ataque à sede da AMIA. Segundo os entendidos, esse giro de 180 graus nas investigações constitui uma afronta aos dirigentes da Secretaria de Inteligência do Estado (ex-SIDE), em especial ao mítico Antonio Stiusso, até então vencedor de todas as disputas internas do organismo, e de fortes vínculos com a CIA e o Mossad. Stiusso, por meio da Direção Nacional de Contrainteligência, tem o monopólio estatal das escutas, tem fortes influências no Poder Judiciário da Nação e se reporta ao Subsecretário Fernando Larcher, o pinguim a quem Néstor pediu para fazer um pacto com os espiões, mas que nunca contou com a confiança de Cristina. No contexto de uma transição para 2015 sem certezas de nenhum tipo, a aliança entre o homem forte da Inteligência Militar e o ressuscitado Fernando Pocino traria um destaque particular para o governo. Um rumor amplamente difundido nos corredores da política portenha (com sucursais em Puerto Madero) assegura que a ex-SIDE de Larcher e Stiusso mandou um informe à presidência em outubro de 2013 com a notícia de quer Sergio Massa não participaria das eleições legislativas – e das quais, no último momento, ele decidiu participar, ganhando do oficialismo com facilidade.

Essas versões não podem ser comprovadas porque pertencem ao universo daquilo que não se pode admitir – lá onde se conformam as bases de sustentação de uma política que continua tendo o traseiro sujo e não admite que se tracem alianças talvez imprescindíveis para um governo com problemas, mas imperdoáveis pelo fato do que elas poderiam significar em um futuro com os militares outra vez ativos nos assuntos internos.

Segundo Alberto Binder, integrante do Acordo de Segurança Democrática e da Iniciativa Cidadã para o Controle do Sistema de Inteligência (ICCSI), “Milani é um sapo muito grande para este governo. Primeiro, se vamos traçar uma linha sobre quem teve participação na ditadura, é preciso ser claro. Então, Milani fica do lado dos que nunca podem ser chefes do Exército por mais que se diga que era jovem. Segundo, dar poder à inteligência militar no contexto atual, em que há uma pressão internacional muito forte para que os exércitos se metam no tema do narcotráfico, terrorismo e segurança nacional, é outra vez brincar com fogo. Terceiro, dar um projeto político de desenvolvimento nacional ao Exército é não reconhecer a história que temos. Não precisamos do Exército nas cidades com La Cámpora. É muito prejudicial essa restauração do Exército como sujeito político interno que vai se metendo por um lado e por outro”.

Em definitivo, o que Milani conseguiu foi arranjar um grande negócio com o kirchnerismo. Trocou lealdade por uma autonomia cada vez maior, algo que muito poucos conseguiram. O argumento do general é a inteligência. E a mentira. 

O batalhão inimigo

Hugo Agapito Ledo, natural da cidade de La Rioja, então estudante de Filosofia na Universidade de Tucumán, fazia parte da Frente Inimiga, uma estrutura criada na década de setenta pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-ERP) para coordenar os militantes, aspirantes e simpatizantes em idade de fazer o serviço militar. O objetivo era prepará-los para realizar tarefas de inteligência nas fileiras inimigas. Todas as averiguações faziam-se úteis com a finalidade de um maior conhecimento das Forças Armadas, de suas instalações e capacidade, de seus planos e objetivos. Quem integrava essa rede secreta também tinha como missão as tarefas de recuperação de armas, munições, equipamentos, além da realização de sabotagens de forma permanente.

Em 1973, durante a tentativa da tomar por meio das armas o Comando de Saúde por parte do ERP, quem abriu as portas para a entrada no quartel foi o recruta Hernán Invernizzi, que como consequência ficou mais de dez anos preso. Em 1974, a mesma organização guerrilheira assaltou o Regimento 17 das Tropas Aerotransportadas com sede em Catamarca, contando com a colaboração de alguns soldados que atuavam naquela unidade militar. Em seu livro O esquadrão perdido, José D’Andrea Mohr conta 129 recrutas desaparecidos dentro dos quarteis durante os anos setenta. Investigações realizadas pelo Instituto Espaço da Memória de Santiago do Estero confirmam que vários deles pertenciam à Frente Inimiga. É o caso de Hugo Milcíades Concha, de Santiago, então estudante de Engenharia da Computação, que foi emboscado por seus chefes em 17 de maio de 1976 nas cercanias de seu próprio quartel, o Batalhão de Engenheiros de Combate 141. Germán Cantos, também de Santiago e membro da Frente Inimiga, era estudante de Psicologia edesapareceu em 3 de setembro do mesmo ano. Assim como Ledo, foi acusado de desertor.

O então tenente César Milani assinou a ata de deserção do recruta Ledo em 17 de junho de 1976. Existem relatos críveis sobre o problema que representava para um integrante médio das Forças Armadas daquela época o fato de militantes revolucionários se infiltrarem em uma instituição que se sentia portadora da essência nacional. Nenhuma ofensa poderia ser maior para um militar de lei, inclusive com convicções democráticas. No entanto, Milani jura que aquilo foi um trâmite burocrático e fortuito. E, em que pese a intensidade alcançada pelos enfrentamentos, ele desconhecia absolutamente o marco político que rodeava o caso. Independentemente do que pensemos sobre o ocorrido nos anos setenta, é difícil calar a certeza de que o atual chefe do Exército mente.

Porta de ferro
 
No livro Civis e militares: memória secreta da transição, publicado em 1987, Horacio Verbitsky escreveu que “cada governo tem um tema com o qual se identifica e em relação ao qual se prestam contas. Perón foi criticado pela sua política institucional, sem que isso resultasse na diminuição da sua assombrosa popularidade. Mas seu governo entrou em crise em 1952, quando mudou o discurso da justiça social pelo da produtividade”. O mesmo critério foi utilizado pelo jornalista e pesquisador para julgar o governo de Alfonsín, quando as promessas radicais em matéria de reconstrução da soberania democrática foram por água abaixo e anteciparam um triste e explosivo final.

O kirchnerismo tentou reunir os dois principais fundamentos que instituíram legitimidade durante o século passado: redistribuição de renda mais direitos humanos. Em ambos os campos, o governo emite sinais de certa mudança de rumo, em um contexto ordenador e normalizados. Como se admitisse que começou a fase de declínio, pretende fazer uma transição sem sobressaltos em um cenário cuja virada à direita parece ineludível. Sem ânimos nem disposição para um balanço crítico sincero, o horizonte das forças comprometidas com “o projeto” pode ser de desagregação ep erda de autoridade moral para discutir o que está por vir. A resolução do affair Milani terá um peso determinante nesse dilema. “Eu sei que quando, quando a Cristina sair, terei que me exilar”, disse o general militante a um militar de alta patente em uma conversa de amigos. Os homens e as mulheres passam. As cagadas permanecem.

 
Originalhttp://www.revistacrisis.com.ar/el-general-militante.html
 
Tradução: Daniella Cambaúva


Créditos da foto: Arquivo