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http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/como-o-mal-estar-se-exprimira-depois-da-copa-entrevista-especial-com-rodrigo-nunes/532259-como-o-mal-estar-se-exprimira-depois-da-copa-entrevista-especial-com-rodrigo-nunes
O que aconteceu desde junho do ano passado foi que as pessoas se deram conta do quão mal distribuída era essa “grande oportunidade”, do quanto essa unidade a quem a Copa supostamente se destinava era uma cortina de fumaça para disfarçar um processo extremo de privatização dos lucros e socialização dos prejuízos. Dizer “Não vai ter Copa”, então, significava dizer: não contem conosco para sermos figurantes felizes numa festa que sabemos não ser nossa. As pessoas recusaram o papel que lhes fora dado naquela narrativa.
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"Queremos o futebol de volta!" - A Copa da FIFA e o conflito público/privado. Revista IHU On-Line, nº. 445
Futebol. A marca de uma identidade nacional? Revista IHO On-Line, n°. 334
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“A Copa é simbólica porque, vendida como algo em que ‘todo mundo ganha’, na verdade é um processo em que alguns perderam tudo, para que uns poucos ganhassem muito, de forma que outros mais pudessem ganhar algo”, frisa o filósofo.
Foto: geoarmando.blogspot.com.br |
Na semana em que se inicia a Copa do Mundo no Brasil, depois de tantas manifestações em torno dos protestos “Não vai ter copa”, “poucos realmente chegaram a crer que seria possível impedir a realização do torneio”, avalia Rodrigo Nunes em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail. Com tanto dinheiro empenhado no mundial, acentua, era difícil que o evento “não fosse em frente, nem que se tivesse — como estamos vendo — que botar as Forças Armadas na rua”.
Entretanto, o fato de a Copa ter sido marcada por inúmeros protestos sinaliza que parte da população estava dizendo: “não contem conosco para sermos figurantes felizes numa festa que sabemos não ser nossa. As pessoas recusaram o papel que lhes fora dado naquela narrativa”, diz o pesquisador. Para ele, o movimento “Não vai ter Copa” “era performativo: o simples fato de ser dito por milhares de pessoas já o tornava real. Por quê? Porque este tipo de evento é construído em cima da ideia de uma unidade indivisa: a Copa é boa para o país, é uma grande oportunidade para o Brasil, será uma grande festa para todos... Mas, claro, a verdade não é bem assim. A Copa é um grande negócio para um grupo muito restrito: a FIFA — que é literalmente impedida por lei de ter prejuízo, segundo a legislação que ela impõe aos países-sede —, os patrocinadores, as construtoras, etc”.
E acrescenta: “Para as 250 mil pessoas que foram ou seguem ameaçadas de serem expulsas de suas casas, para os familiares e amigos dos trabalhadores mortos, para os trabalhadores vivos que enfrentam condições laborais perversas, para os moradores ou vendedores de rua atingidos pela higienização das cidades, ela foi catastrófica”.
Na entrevista a seguir, Nunes ainda chama a atenção para as consequências da Copa e assinala que os gastos excessivos de dinheiro público e a corrupção em torno do mundial não são algo “excepcional no caso brasileiro. É necessário entender que este não foi um modelo particularmente mal aplicado; o modelo é este. A FIFA e o Comitê Olímpico Internacional - COI são dois corpos privados, sem nenhuma accountability, notórios pelas denúncias de corrupção que os cercam. Seu business é vender (literalmente, a se julgar pela história sobre a escolha do Qatar como sede da Copa) o que poderíamos chamar de ‘pacote de estado de exceção’ para países interessados em atrair investimentos”.
O que é específico do país, pontua, “é uma série de demandas sociais reprimidas: a distribuição de renda, o problema da habitação, o extermínio da juventude negra e pobre, a baixa qualidade dos serviços públicos, a impermeabilidade do sistema político. Embora na última década tenham sido dados passos importantes em algumas dessas áreas, tudo isso vem à tona junto com a Copa. Neste sentido, ela é apenas um ponto focal temporário para um mal-estar social muito mais amplo, profundo e (inclusive) antigo, e na verdade a grande questão é como este mal-estar se exprimirá uma vez passada a Copa. Parece claro que ele não desaparecerá tão cedo, mas não está claro como as diferentes lutas farão para se compor entre si, que formas organizativas e relações com as instituições elas estabelecerão”.
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres.
Além disso, foi membro do coletivo editorial da Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europae da América do Norte na segunda metade da década passada. É autor do livro The Organisation of the Organisationless: Organisation After Networks (A Organização dos Sem Organização: Organização Depois das Redes).
Nunes publicou recentemente um artigo na edição especial da revista Les Temps Modernes, fundada por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, sobre os protestos no Brasil. O dossiê reúne análises de pesquisadores como Marcos Nobre, Idelber Avelar, Vladimir Safatle e Jessé Souza.
Confira a entrevista.
Confira a entrevista.
Foto: www.ihu.unisinos.br/entrevistas |
IHU On-Line - Como o senhor interpreta as manifestações #NaoVaiTerCopa que têm ocorrido nas redes sociais e nas ruas antes da realização da Copa do Mundo no Brasil, sendo este o país do futebol? Há algo estranho nessa relação?
Rodrigo Nunes - Para mim, foi claro desde quando o “Não vai ter Copa” surgiu, que ele podia ser lido de duas maneiras. A primeira era condicional: se não houver sinalizações claras em resposta às demandas que estão sendo levantadas (transporte público, serviços públicos em geral, as remoções causadas pela Copa, o não cumprimento das promessas do “legado”, a violência policial nos protestos e nas favelas...), a insatisfação e a mobilização só vão crescer.
E se elas crescerem, tudo pode acontecer. As pessoas haviam (re)cobrado a confiança em seu poder coletivo, em sua capacidade de interromper o business as usual de um sistema político tão pouco permeável como o nosso; elas estavam conscientes de que aquela capacidade de mobilização subitamente (re)descoberta inspirara medo na classe política. Neste contexto, “Não vai ter Copa” era uma ameaça: vocês vão nos ouvir, senão...
Por outro lado, acho que poucos realmente chegaram a crer que seria possível impedir a realização do torneio. Era muito difícil, com tanto dinheiro empenhado, com tantos interesses envolvidos, que o evento não fosse em frente, nem que se tivesse — como estamos vendo — que botar as Forças Armadas na rua.
Unidade indivisa
Mas isso não importa, porque o outro sentido do “Não vai ter Copa” era performativo: o simples fato de ser dito por milhares de pessoas já o tornava real. Por quê? Porque este tipo de evento é construído em cima da ideia de uma unidade indivisa: a Copa é boa para o país, é uma grande oportunidade para o Brasil, será uma grande festa para todos... Mas, claro, a verdade não é bem assim. A Copa é um grande negócio para um grupo muito restrito: a FIFA — que é literalmente impedida por lei de ter prejuízo, segundo a legislação que ela impõe aos países-sede —, os patrocinadores, as construtoras, etc. Para as 250 mil pessoas que foram ou seguem ameaçadas de serem expulsas de suas casas, para os familiares e amigos dos trabalhadores mortos, para os trabalhadores vivos que enfrentam condições laborais perversas, para os moradores ou vendedores de rua atingidos pela higienização das cidades, ela foi catastrófica. E para a maioria da população, ela foi uma queima de gigantescas quantidades de dinheiro público para construir estruturas privadas, ou que serão privatizadas, ou que se tornarão imediatamente obsoletas — enquanto quase nada do “legado” prometido se realizou.
“Não estamos diante de um movimento, mas de um momento” |
E isso não tem volta: como as pesquisas apontam, o consenso em torno da Copa e das Olimpíadas e, portanto, a pretensa unidade a que elas se referem, acabou. Neste sentido, já não teve Copa.
IHU On-Line - Por que as manifestações só iniciaram entre dois e um ano antes da Copa? À época em que Lula anunciou o mundial, o país vibrou. Esperava-se outro modelo de gestão em relação aos investimentos? Ou as manifestações de junho também possibilitaram novas críticas à Copa?
Rodrigo Nunes - O argumento do “por que não protestou antes?” seria cômico se não estivesse sendo usado por tantas pessoas com um histórico de mobilização política. Ora, se houvessem explicado à população a verdade sobre o que aconteceria, seria difícil justificar sequer a candidatura do Brasil a país-sede!
As pessoas protestam “tarde” porque a informação de que elas precisam para formar opinião é “administrada” de modo a fazer com que, depois, elas se deparem com os efeitos de “fatos consumados” sobre suas vidas. Se ser idealmente bem informado fosse pré-requisito para poder se expressar politicamente, estaríamos perdidos — porque uma das coisas pelas quais as pessoas sempre lutaram é exatamente o direito a não ter decisões tomadas em seu nome ou à sua revelia, sem que tenham plenas condições de sobre elas se posicionar.
O que aconteceu entre o anúncio da escolha do país-sede e agora foi justamente que as pessoas foram informadas — na prática. Mas aqui é preciso desfazer um engano. Os megaeventos não são uma coisa “boa” que no Brasil “deu errado”. É certo que houve corrupção e inépcia administrativa, em nível municipal, estadual e federal; talvez mais que em alguns lugares, talvez menos que em outros. Mas não há nada de muito excepcional no caso brasileiro. É necessário entender que este não foi um modelo particularmente mal aplicado; o modelo é este. A FIFA e o Comitê Olímpico Internacional - COI são dois corpos privados, sem nenhuma accountability, notórios pelas denúncias de corrupção que os cercam. Seu business é vender (literalmente, a se julgar pela história sobre a escolha do Qatar como sede da Copa o que poderíamos chamar de “pacote de estado de exceção” para países interessados em atrair investimentos. Isso oferece a estes países as condições ideais — o consenso em torno da unidade nacional, a desculpa do interesse público, a “pressa” para concluir obras “em atraso”, a legislação que já vem pronta — para uma rodada de acumulação capitalista violenta. Ou seja: para um processo brutal, mas perfeitamente legal, de privatização de lucros e socialização de custos.
Naomi Klein fala de “doutrina do choque” em referência a como o capitalismo neoliberal toma situações extremas como guerras e desastres naturais por “oportunidades de negócios”; o modelo dos megaeventos consiste na criação de uma situação extrema. Que isto seja tão amplamente aceito como “oportunidade de desenvolvimento” dá uma medida da penúria de imaginação política e econômica em que vivemos desde a ascensão do neoliberalismo. Que isto comece a ser mais amplamente questionado é, sem dúvida, o grande “legado” de junho de 2013 ao mundo.
IHU On-Line – Muitas pessoas veem o problema como sendo específico do Brasil?
Rodrigo Nunes - Há uma tentativa, por parte do governo, de colar no “Não vai ter Copa” a pecha de “complexo de vira-latas”. Esse componente, de achar que nada que façamos pode dar certo, que algum atavismo compromete todos os nossos esforços, é sem dúvida um fator para uma certa classe média, de perfil despolitizado ou diretamente conservador.
Trata-se do horror a “esse Brasil atrasado”, onde o “atrasado” é sempre os outros — em última análise, os pobres, que existem em si, milagrosamente separados das condições sociais que mantêm e reproduzem a sua pobreza, e que implicam todos os demais.
Mas é bastante claro que não é disso que os movimentos que têm ido à rua estão falando. Pelo contrário, eles têm falado exatamente sobre como essa reprodução da desigualdade social segue funcionando, e como algo como a Copa serve para reforçá-la. É curioso, aliás, que os únicos dois atores que insistem em confundir estes dois discursos (um claramente de esquerda, o outro de centro ou direita) sejam a mídia corporativa e o governo.
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Corrupção e antagonismo real
Aqui entra também o tema da corrupção, cujo funcionamento ideológico constitui um “obstáculo epistemológico” sério. A corrupção seria um atavismo específico do Brasil, país corrupto por natureza ou tradição. Mas, curiosamente, o problema é sempre só do Estado, sem envolver o mercado: pensa-se no “homem cordial” que usa a máquina estatal em favor do amigo, mas nunca se pergunta quem é este amigo e o que ele oferece em troca. Logo, tripla função: demonização do Estado, absolvição do mercado e isenção dos corruptores — eles só corrompem os agentes porque estes já são corruptos, como se “corromper” e “ser corrupto” fossem independentes entre si.
Aí está o ponto fulcral, que explica sua quarta função. A corrupção serve para deslocar o antagonismo real, que tem a ver com distribuição de renda e acesso às decisões políticas, projetando-o num antagonismo falso. Enquanto o antagonismo real opõe, digamos, o banqueiro ao favelado, o antagonismo falso cria um“nós” imaginário — um “povo brasileiro” que inclui banqueiro e favelado — em oposição a um “eles” que seria o Estado, os políticos.
Daí nasce a redução da política a uma questão de moralidade individual (como se não fosse perfeitamente possível ser honesto e fazer escolhas políticas desastrosas) ou a uma questão administrativa (como se um padrão de “boa administração” pudesse ser fixado em abstração dos objetivos políticos que se pretende realizar). Nascem também ideias ingênuas, como a de que, caso não houvesse desvio de verbas, haveria dinheiro para tudo, só isso nos distanciaria do bem-estar generalizado. Tudo isso serve para desviar a discussão do realmente essencial: a distribuição desigual da renda e da influência política, a natureza das escolhas políticas e o processo pelo qual elas são tomadas.
Por isso costumo dizer que o problema é menos a corrupção ilegal, que é tipificada penalmente e passível de punição, que a corrupção legal: a maneira como alguns interesses econômicos têm um poder desproporcional de influenciar as decisões estatais, o modo como o Estado intervém para favorecê-los, privatizando lucros e socializando custos, os lobbies, o financiamento privado de campanha. No caso de um estádio que se tornará obsoleto, por exemplo, o escândalo não é que este ou aquele item tenha sido superfaturado: o escândalo é que ele tenha sido construído. E isto foi feito absolutamente dentro da lei. Repito: parece-me claro que é deste tipo de corrupção que quem está nas ruas agora está falando.
Especificidade brasileira
O que é “específico” do Brasil é uma série de demandas sociais reprimidas: a distribuição de renda, o problema da habitação, o extermínio da juventude negra e pobre, a baixa qualidade dos serviços públicos, a impermeabilidade do sistema político. Embora na última década tenham sido dados passos importantes em algumas destas áreas, tudo isso vem à tona junto com a Copa. Neste sentido, ela é apenas um ponto focal temporário para um mal-estar social muito mais amplo, profundo e (inclusive) antigo, e na verdade a grande questão é como este mal-estar se exprimirá uma vez passada a Copa. Parece claro que ele não desaparecerá tão cedo, mas não está claro como as diferentes lutas farão para se compor entre si, que formas organizativas e relações com as instituições elas estabelecerão.
IHU On-Line - Em artigo recente o senhor diz que a Copa condensa em um símbolo de uma falha fundamental no projeto do PT. Qual foi a falha nesses doze anos de governo? Que parcela da população não foi beneficiada pelo PT?
Rodrigo Nunes - Quase todo mundo foi beneficiado pelo PT: dos banqueiros aos trabalhadores formais, dos latifundiários ao subproletariado, das construtoras à juventude que teve acesso à universidade. Mesmo as famílias que perderam suas casas por causa da especulação imobiliária e dos megaeventos provavelmente tinham, antes disso, melhorado de vida.
A “falha” a que me referia está justamente aí. Graças a uma situação internacional favorável, durante um momento foi possível manter uma situação onde todos ganhavam. Os ricos ficavam muito ricos, os pobres ficavam menos pobres. Este foi o grande sucesso do chamado Lulismo. Foi, ao mesmo tempo, aquilo que — junto com a extorsão política que se institucionalizou de verdade depois da eclosão do escândalo do “Mensalão” — o fez estacionar.
Não se falou mais em reforma política, nem numa reforma tributária que, espera-se, criaria uma tributação progressiva e redistributiva. Não se falou mais da concentração da mídia, não se comprou mais briga e, pelo contrário, fizeram-se cada vez mais concessões. O PT se virou com as condições que lhe foram dadas, mas fez muito pouco para mudar estas condições no médio prazo, de tal modo que sua situação hoje é paradoxal: virtualmente imbatível nas urnas, ele parece ter menos forças para transformar as condições em que opera do que quando Lula ganhou pela primeira vez.
“É um equívoco achar que a paisagem pós-junho possa ser contida dentro das coordenadas que existiam antes” |
Se boa parte de seu eleitorado histórico, claramente identificado com a esquerda, percebeu a administração de Dilma como um retrocesso, é porque em seu mandato as forças conservadoras com quem o PT fez compromissos cobraram uma série de faturas e foram atendidas. Pode-se enxergar, então, o processo que se desencadeia em 2013 como o outro lado — que não tem outra opção senão conquistar sua influência política nas ruas — apresentando as suas faturas. Num certo sentido, é uma disputa pelo legado do Lulismo: quando não é possível que todos ganhem, qual é o lado que vai perder? ACopa é simbólica porque, vendida como algo em que “todo mundo ganha”, na verdade é um processo em que alguns perderam tudo, para que uns poucos ganhassem muito, de forma que outros mais pudessem ganhar algo.
Luta pela redefinição dos problemas
Esta queda de braço está bastante clara, por exemplo, no discurso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto: oMinha Casa Minha Vida transformou o lucro das empreiteiras na precondição para a solução do problema da habitação; o MTST se mobiliza para garantir uma solução do mesmo problema que seja vantajosa para os trabalhadores.
Mas a coisa não acaba aí; não se trata apenas de uma disputa pela solução de problemas que já estão dados, mas também uma luta pela redefinição dos próprios problemas. É significativo que as mobilizações contra Belo Monte e os ataques aos Guarani Kaiowá, bem como a ocupação da Aldeia Maracanã, sejam ancestrais diretos dos protestos de junho de 2013. Não só porque os indígenas talvez sejam o único segmento que claramente perdeu na última década, especialmente no governo Dilma, mas porque estes são sintomas de um sentimento crescente de que é preciso repensar de cima a baixo o conceito meramente quantitativo, extensivo, econômico de desenvolvimento com que estamos operando. E aí há uma diferença importante. Demandas como as do MTST, dependendo da capacidade política (que, no caso do MTST, está demonstrando ser grande), podem encontrar acolhida pontual, como agora em São Paulo. Mas, por hora, a ideia de que é preciso reformular o próprio conceito de desenvolvimento não encontra representação nenhuma dentro do tabuleiro político-partidário nacional.
IHU On-Line - É possível vislumbrar qual será o impacto dessas manifestações e da desunião em torno da Copa do Mundo nas eleições?
Rodrigo Nunes - É difícil prever o quão grandes serão as manifestações; vai depender de fatores relativamente contingentes. Se elas forem tão grandes quanto o ano passado, o que por hora parece improvável, ou se algo muito grave ocorrer, tudo pode acontecer. Caso contrário, a tendência é mais uma vitória do PT.
Agora, da mesma maneira que junho de 2013 nos lembrou que “política” não é apenas aquilo que fazem os políticos, seria um erro olhar apenas para o tipo de protesto de rua que foi dominante na época e julgar que, caso eles não sejam tão grandes, os movimentos fracassaram. Porque a tendência desde o ano passado é que, à medida que este tipo de protesto refluía (seu auge tendo sido o único e breve momento em que posições de esquerda, centro e direita de fato se misturaram), o dissenso ia se espalhando e diversificando em sua composição política e social. Desde então, temos visto um número cada vez maior de protestos contra a violência policial nas favelas, ocupações urbanas, a ascensão do MTSTem São Paulo, o #OcupeEstelita em Recife, greves — muitas das quais selvagens, o que também é sintomático. Estas últimas, por exemplo, podem ter um impacto muito mais grave sobre a Copa que as manifestações de rua.
Não estamos diante de um movimento, mas de um momento — ou, antes, de um sistema-rede em constante diferenciação, do qual o “Não vai ter Copa” já é, ele mesmo, uma mutação.
Por um lado, isso significa que as ações de um grupo ou segmento criam oportunidades para outros, de forma que diferentes movimentos agem “no vácuo” uns dos outros sem que necessariamente precisem coordenar-se entre si. Por outro, o que ocorreu e segue ocorrendo é uma transformação subjetiva: as pessoas estão redescobrindo o poder e o prazer da ação coletiva, estão ficando menos tolerantes com aquilo que veem como abusos.
Os petistas dizem que, por trás das greves, estão os partidos de esquerda que sempre agitaram contra o governo. Pode ser, mas a pergunta é: se a agitação sempre esteve lá, porque só agora ela está surtindo efeito? Como diria Michel Foucault , invertendo Étienne de La Boétie, estamos vendo um crescimento da “inservidão voluntária”, da “indocilidade refletida”. E, como diria Spinoza, quanto mais as pessoas descobrem a alegria de sua própria força, mais a exercem, e quanto mais a exercem, mais força têm. Reações como a do governo de São Paulo, que responde aos metroviários com violência e demissões, me parecem brincar com fogo, porque subestimam profundamente esta transformação.
Descompasso
O aspecto mais importante deste momento é que ele tornou visível e reforçou um descompasso entre a política tal como ela se exprime no corpo social e a política tal como ela é representada pelo sistema político. Qualquer tentativa de ler a primeira nos termos da segunda é necessariamente falha, porque uma crise de representação é justamente quando a segunda se torna insuficiente para dar conta da primeira. É significativo que, nas últimas pesquisas, Dilma caia sem que ninguém suba. Há um número crescente de pessoas que prefeririam uma opção que por hora não existe, o que não impede muitas delas de, na última hora, optar por aquela, entre as disponíveis, que elas acham menos pior. Essa outra opção vai aparecer? O que acontecerá se ela não aparecer? É cedo para dizer.
Mas é um equívoco achar que a paisagem pós-junho possa ser contida dentro das coordenadas que existiam antes: há novos atores, novos alinhamentos, novas posições. É muito primarismo achar que, se até ontem só “x” e “y” eram críticos do governo, quem hoje o critica é necessariamente ou “x” ou “y”. Estamos passando por uma redefinição de coordenadas políticas; quanto tempo vai levar para que o sistema político reflita essa mudança, e como isso se dará, não se sabe. Mas fingir que ela não existe pode, por diversos motivos, se tornar cada vez mais insustentável. Também pode, no médio ou longo prazo, cobrar um custo político alto dos atores de quem se esperaria estar sensíveis a ela.
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