sábado, 28 de junho de 2014

O jornalismo de hoje: entre o Mercado e o Povo

carta maior
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O jornalismo de hoje: entre o Mercado e o Povo

Em tempos marcados pelo neoliberalismo, o jornalismo abdicou de qualquer função social para ser um abastecedor de informações enquanto mercadorias.


Roberto Savio, do Other News
Eric Drooker
Por ter larga carreira na profissão, me pediram para dar minha opinião às novas gerações sobre o que é o jornalismo.
 
O fato é que em pouco mais de uma geração, o jornalismo viveu transformações profundas. Cabe lembrar que foi criado pelas elites. No apogeu da era colonial, o Times de Londres tinha uma circulação de apenas 50.000 cópias, todas para a elite e para os funcionários do Império Britânico.
 
O jornalismo se transformou em um meio de comunicação de “massa”, quando, no século XIX, os Estados Unidos de depararam com uma onda de imigrantes e tiveram de adequar seu jornalismo às necessidades de sua “panela de culturas”, em que milhões de pessoas de lugares muito diferentes tiveram de se adaptar ou assumir a identidade americana.
 
É assim que aparece o jornalismo moderno, com seu conjunto de técnicas devidamente estudadas nas escolas de jornalismo. Por exemplo: todas as notícias devem conter um “quem, onde, quando e como,” ou “se um cão morde um homem isso não é notícia, já, se um homem morde um cão, isto é”, e assim sucessivamente. No entanto, estas técnicas não ensinam como ser um jornalista melhor, mas indicam como empacotar a informação da maneira mais clara e atrativa para o leitor médio.
 

 
Desde a criação dos meios de comunicação, um elemento muito importante da profissão de jornalista era o da responsabilidade ante os leitores. Se supunha que o jornalista os ilustrasse, para que conhecessem seu tempo e seu mundo. Aos jornalistas foi pedido que proporcionassem este vínculo, da maneira mais equilibrada e mais justa possível, apresentando seus artigos com informações de diferentes pontos de vista e fontes. Os diretores dos meios de comunicação compartilham deste ponto de vista deontológico, mas dentro da ótica de seus interesses pessoais.
 
Os jornais foram capazes de sobreviver ao aparecimento do rádio e da televisão, e cada um desses três meios adotou um caminho especial. Mas depois de haver trabalhado nos três, estou convencido que o mundo da informação mudou depois de dois eventos sem relação alguma: o aparecimento da internet e a presidência de Ronald Reagan.
 
A internet marcou o começo de uma mudança de época: pela primeira vez na história, as pessoas podiam ter acesso à comunicação. A informação é uma estrutura vertical na qual apenas alguns poucos enviam fatos e pontos de vista a um grande número de destinatários, um processo de sentido único que os regimes autoritários ou ditatoriais foram rápidos em se apropriarem para que apoiassem suas relações verticais com os cidadãos. mas, pelo contrário, a comunicação é um processo horizontal, onde os que enviam também estão prontos para receber. É por isso que a China tem 30.000 censores em tempo integral para monitorar a rede.
 
Com a aparição da internet, os meios de comunicação foram repentinamente desafiados como guardiães da sociedade. Exemplo: a voz das mulheres. Na Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, organizada pela ONU em 1975, as vozes das mulheres na mídia eram escassas.
 
Na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, que ocorreu em 1995, em Pequim, a cobertura midiática foi igualmente patética se se exclui os quase 80% de cobertura jornalística que foi dada à Hillary Clinton (esposa do então presidente dos EUA). A cobertura não se referiu a temas reais das mulheres, mas sim ao que ocorreu durante a conferência. O que nos interessa é que na conferência de Pequim as mulheres tomaram o comando, utilizando a internet para criar uma plataforma comum, deixando os funcionários, na sua maioria homens, à margem. Sem dúvidas, as mulheres com consciência de gênero em todo o mundo não podiam depender dos meios de comunicação para divulgarem a informação que queriam. Graças à internet, repentinamente, se criaram milhares de redes que centravam-se nos temas reais das mulheres, questões que a mídia não era capaz de tratar em profundidade. O mesmo ocorre com os direitos humanos, o meio ambiente, a sociedade civil, etc., onde os meios de comunicação não podem competir.
 
 
O segundo segundo fato importante se registrou em 1981, com a chegada de Ronald Reagan à presidência dos EUA. Um homem que, habilmente auxiliado pela primeira ministra britância Margaret Thatcher, alterou quase sozinho o próprio conceito das relações internacionais, até então baseada na ideia da cooperação internacional. Reagan foi o primeiro político que deu respostas simples a perguntas complexas, que foram os “bytes” de suas convicções políticas. Desdenhou do movimento ecológico, ao declarar: “as árvores causam mais contaminação que os automóveis”. Reduziu os impostos para os ricos dizendo que “os ricos produzem riqueza, os pobres a utilizam”. Thatcher fez eco a tal declaração: “..não há sociedade. Há homens e mulheres, individualmente”.
 
Foi neste período que as Nações Unidas começaram seu declive e do da ideia de desenvolvimento e solidariedade internacional. O lema da época foi: “Comércio, não Ajuda”. O Consenso de Washington, que advoga pelo desmantelamento do estado de bem-estar social e a redução de todas as instâncias públicas, foi impulsionado em todo o mundo pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Departamente do Tesouro dos EUA. Esta nova visão do mundo penetrou todas as instituições internacionais, especialmente a União Européia.

Logo, o Muro de Berlim foi derrubado em 1989. E a vitória não era simplesmente de um lado contra o outro, ou seja, do capitalismo contra o socialismo. Foi o “Fim da História”, como escreveu Francis Fukuyama em 1992. A globalização havia chegado, e todos conhecemos seus resultados. As 300 pessoas mais ricas do mundo tem a mesma riqueza que 3 bilhões de pessoas. E durante os últimos cinco anos, 75% de toda riqueza produzida tem ido aos 1% mais ricos. Os cem homens mais ricos do planeta aumentaram sua riqueza em 2012 até chegar ao equivalente dos orçamentos nacionais do Brasil e do Canadá.
 
Eu sustento que ambos fatores tiveram um impacto muito profundo nos meios de comunicação e em seu sistema de valores. A circulação dos jornais diminuiu, porque um número crescente de jovens não os compram e o rádio e a televisão são utilizados devido a seu valor recreativo. Eles recorrem à internet, onde podem adaptar sua informação e análise diárias de acordo com seus interesses. Em consequência, os meios de comunicação já não são um bom negócio e a reação tem sido concentrá-los com a finalidade de reduzir os custos. Rupert Murdoch é o maior exemplo deste fenômeno. A concentração se traduziu em uma redução da diversidade e do estilo. Desde que Murdoch se tornou chefe, o The Times de Londres “perdeu” 20% de seu vocabulário. A linguagem perdeu valor literário, usando orações mais curtas onde os adjetivos são “proibidos”. A cobertura mundial, que é complexa, vai perdendo espaço. Enquanto a homogeneização dos meios de comunicação era um fenômeno superestrutural, agora está chegando a um nível nacional.
 
Isto tem sido acompanhado por uma mudança séria da deontologia. Os meios de comunicação têm que vender para sobreviver. A informação tem sido cada vez mais orientada para eventos e não para processos. O sociólogo norueguês Johan Galtung escreveu na década de 1970 sobre uma “escala de valores da informação”: o que ocorre próximo a você vende mais do que o que acontece longe. Uma pessoa conhecida venderá melhor que um cidadão comum, algo dramático vende mais que uma análise econômica pouco atrativa. O negativo atrai mais que o positivo, e assim sucessivamente. Pois bem, agora isso tudo chegou ao extremo.

O primeiro jornal online, o Huffington Post, abriu suas páginas a todo mundo. Se paga segundo o número de cliques que um artigo recebe. O que pagará melhor, um artigo sobre as histórias de amor do presidente francês, François Hollande, ou um sobre suas políticas de emprego? Como resultado, as pessoas interessadas nos impactos das políticas de austeridade devastadoras na Europa, clicam no troikawatch e encontram o que a mídia não proporciona.
 
Falo por experiência própria. Cansado que meus amigos estejam menos informados que eu sobre temas globais, comecei um serviço de informação diária (Other News), com os critérios de uma agência de imprensa, mas usando a internet como fonte, e não jornalistas, com a finalidade de ser capaz de proporcionar um serviço gratuito. Dos meus 60 destinatários originais, agora o site cresceu para mais de 20.000 usuários em ingês e em espanhol: se você estiver interessado, clique aqui e veja o que você não encontrará no seu trabalho diário. Milhares de ativistas sociais, funcionários internacionais e acadêmicos enviaram mensagens de agradecimento por ter oferecido outro horizonte… o que um bispo chamou de “o outro lado da lua”.

verdadeiro problema é que o jornalismo se converteu em apenas um espelho de nosso tempo, abdicando de qualquer função social, para limitar-se a ser um abastecedor de informações enquanto mercadorias. Nossos tempos estão marcados pelo neoliberalismo, e os vícios como a cobiça e o individualismo se converteram em virtudes, exaltadas por Hollywood e pela homogeneização dos meios de comunicação. Os valores do desenvolvimento, consagrados em todas as constituições modernas, eram a justiça social, a equidade, a solidariedade e a participação, entre outros. Mas para o contexto da globalização, tais valores são a riqueza e o êxito, o triunfo do indivíduo, com o Mercado ao invés do homem no centro. O desenvolvimento é um processo no final do qual você “é” mais - dentro da globalização é o que leva a “ter” mais.

Cabe acrescentar à esta mudança de valores o fato sem precedentes de que hoje gastamos mais em publicidade do que em educação; que as instituições políticas perderam a visão e a ideologia para se tornarem pragmáticas (de fato, utilitárias), com cada vez menos participação do povo; que o mundo das finanças se apoderou do mundo da produção de maneira global (um bilhão de dólares por dia em produção, 40 bilhões em transações financeiras); que agora temos apologistas de uma “nova economia”, que conceituam o desemprego estrutural como uma necessidade. 
 
Em 1950, o financista estadunidense Bernard Baruch provocou um escândalo quando sustentou que o gerente de uma empresa pode ganhar um salário 50 vezes maior que seus trabalhadores. Hoje já passamos de 500 vezes e a brecha continua a crescer. A cada mês, os bancos são multados em dezenas de milhões de dólares por atividades fraudulentas, mas isto já não é mais notícia e o mesmo acontece com revelações da corrupção política e econômica. Basicamente, o povo se deu por vencido. Ou renunciou, ou se converteu a assistir tudo passivamente, ajudado pelo efeito anestésico de programas de televisão como o “Big Brother”.
 
Para salvar os bancos, gastamos o equivalente a mil dólares por habitante. Em 2012, só na Espanha, o salvamento dos bancos custou mais do que o orçamento anual em educação e saúde… enquanto isso, os estados são incapazes de proporcionar uma nutrição adequada para cerca de um bilhão de pessoas. A London School of Economics publicou um estudo no qual diz que no ano de 2030 se projeta um retorno aos tempos da rainha Victoria, quando um filósofo desconhecido chamado Karl Marx estava na biblioteca do Museu Britânico escrevendo seus ensaios sobre o capital, o trabalho e a exploração, elaborando seu manifesto.
 
Nos encontramos em uma etapa de transição entre um mundo que já não é viável — um mundo onde as finanças não têm nenhuma norma e o capitalismo é uma roda que caminha até sua destruição — a um mundo que deve encontrar a governança global. Somos incapazes de resolver um só problema global, desde o meio ambiente à fome, desde o desarmamento nuclear à imigração até os controles sobre o capital em paraísos fiscais (onde está depositado dez vezes o capital necessário para resolver a fome, a saúde e a educação em todo o mundo).
 
Tudo isto mostra como estamos falhando em assegurar um mundo melhor para as gerações que virão. É sabido que a ética protestante foi amplamente aclamada como mais estrita que a ética católica. No entanto, nos últimos anos, Wall Street se converteu no ninhos de cobiça e de fraudes sem precedentes. Hoje em dia, o Papa Francisco é a única voz em defesa dos pobres, advogando por justiça social, denunciando a desigualdade e incitando a paz e a cooperação. Mas, em que escola de negócios ou faculdade de economia se escutou falar da doutrina social cristã?
 
Para tanto, existe a necessidade de um novo jornalismo e não só de uma atualização do anterior. Está claro que não será um ofício associado ao glamour e à boa vida como o foi na geração passada. Inclusive os meios de comunicação de êxito que sobrevivem estão reduzindo custos (em outras palavras, demitindo). Os repórteres são pago por artigo, e não muito.
 
Para aqueles que aspiram ser jornalistas hoje em dia, a primeira lição é: deve querer ser jornalista porque crê que está fazendo algo útil, e que se está realizando quando o faz… do contrário, melhor trabalhar em um banco, onde há menos estresse e mais dinheiro e respeitabilidade. Mesmo assim, poucas profissões oferecem um impacto tão importante e necessário para a sociedade quanto o jornalismo.
 
A tarefa do jornalismo pós-Reagan (ou, para ser menos provocativo, do pós-ápice do neoliberalismo, que agora está perdendo o brilho) é corrigir a escala de valores e recolocar o homem no centro do mundo. Isto não deveria ocorrer como resultado dos ensinamentos do papa Francisco. Não se necessita da graça da fé para se dar conta de que este mundo é muito injusto e polarizado, onde a classe média está se reduzindo. Os novos jornalistas devem estar conscientes de que o status quo está mantendo uma situação insustentável para bilhões de pessoas, especialmente para as mulheres, as crianças e os jovens. Para tanto, ele/ela deve evitar três armadilhas que ajudam a manter o status quo.
 
A primeira é cair no mito da objetividade. Os filósofos e os cientistas lhe dirão que ela não existe. Aqueles que estão elaborando com êxito a globalização, lhe dirão: "seja objetivo, e para sê-lo, não deve escutar e escrever sobre as minorias descontentes. A única maneira de ver o país é através da macroeconomia, que divide a riqueza por habitante, e não a microeconomia, que analisa fatores complicados como o nível de renda, a redistribuição, a mobilidade social e assim sucessivamente. Em nome da objetividade, deve estar informado do que o sistema diz, sem se entorpecer pelas vozes das ruas. Os líderes políticos são eleitos, os da sociedade civil, não. Somente as estatísticas oficiais são confiáveis. Aquelas da Oxfam sobre a fome ou do Greenpeace sobre o meio ambiente não são objetivas. O mesmo ocorre com as conclusões do Grupo Intergovernamental de Experts para o Controle do Clima, que advoga pela tomada de decisões ambientai para salvar o planeta, que estão contra o crescimento econômico e nosso estilo de vida". Quando pedirem para que seja objetivo, abra seus ouvidos: estão pedindo que ajude o status quo.
 
A segunda armadilha consiste em crer que só aqueles que detêm o poder têm toda a informação e portanto estão mais capacitados para dar declarações. Eles têm toda informação, mas muitas vezes não leem, ou são omissos quando ela não se ajusta a seus pontos de vista. Nunca antes na história alguém teve tanta informação quanto o governo dos EUA, que com a NSA controla as comunicações em todo planeta. E isto significou uma melhora na política estadunidense?
 
A terceira armadilha é achar que você não é mais respeitável porque tem maior acesso ao poder estabelecido. Isso é somente uma forma de cooptação. É necessário dar voz aos sem poder, às pessoas reais, não aos ganhadores como em um mundo de cassinos.
 
E todos os números lhe apoiarão: a grande maioria não está junto do 1% superior que divide 54% de todos os recursos do mundo, mas sim entre os 75% que dividem apenas 15%. Esta é a realidade de nosso tempo e temos de dar voz aos 75% e a seus problemas para alcançarmos uma vida cotidiana digna. Quando observamos o mundo, devemos ser igualmente capazes de dar ênfase ao que pode significar a paz e a justiça internacionais, a tempo de expôr as consequências da guerra e da injustiça. Tudo isto deve se fazer com um critério profissional simples: dar voz a todas as partes, e informar o mais fielmente possível o que está acontecendo.
 
O problema é que um jornalista hoje em dia não pode permanecer sempre imparcial. Tomemos como exemplo a mudança climática. Não podemos colocar os interesses das companhias petrolíferas e os da raça humana no mesmo nível. Ao fazer isto, se perpetua um mito que é o resultado de uma visão peculiar do mundo, inclusive que não têm nenhuma base científica: que o mercado vai redistribuir a riqueza, como em um efeito dominó, até o último ser humano no mundo, eliminando as guerras e a pobreza. Sob este enfoque, pensa-se que, por exemplo, as companhias petrolíferas dão trabalho a dezenas de milhares de pessoas, e quanto mais dinheiro ganham, melhor será para todos nós, no mesmo tipo de lógica que levou a Corte Suprema dos EUA a dizer que as corporações têm o mesmo direito que as pessoas, e que portanto podem contribuir livremente e sem limitação nas campanhas políticas.
 
Hoje em dia os jornalistas têm uma ferramenta de valor inestimável que não contávamos em meu tempo: a possibilidade de buscar na Web, entrevistar pessoas sem a necessidade de viajar, inclusive com o uso programas como o Skype, se utilizando de uma câmera. Em meu tempo, os custos das comunicações e de viagens eram enormes, a norma era ter sempre um fotógrafo junto de si. Uma equipe de televisão era composta por ao menos 5 pessoas e 300 quilos de equipamentos. Hoje em dia, um jornalista com seu smartphone pode fazer tudo isso
 
Estamos vivendo em tempos diferentes, não melhor em muitos sentidos, mas com um grande avanço na tecnologia, o que permite a um jornalista uma liberdade para perambular em suas investigações. O problema, por tanto, vai ao que Leonardo da Vinci chamou de “saper vedere”: ser capaz de enxergar. O jornalismo, em suma, é a capacidade de ver e colocar o que se observou em uma orgem adequada para comunicar com seus leitores. O que faz a diferença não é a forma de escrever, mas a capacidade observar.
 
É evidente que estamos em uma época de transição em direção de um novo mundo difícil de prever. Antonio Gramsci, um pensador comunista italiano, escreveu em seus Cadernos do Cárcere: “O velho mundo está morrendo e o novo mundo luta para nascer: chegou o momento dos monstros". Necessitamos de um novo jornalismo que nos conduzirá através deste ciclo, que identificará os monstros e levará as vozes da humanidade em um conjunto que faça a trilha até o novo mundo.
 
tradução de Roberto Brilhante

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