quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Haiti também é aqui

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O Haiti também é aqui

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Viagem ao Acre, onde sobrevive, em condições desumanas, parte dos milhares de haitianos que se espalham pela América do Sul em meio à desintegração de seu país
Por João Paulo Charleaux, na Vice
O Haiti deve ser a maior e mais miserável ilha do mundo — ele começa no Caribe e termina em Brasileia, cidadezinha do interior do Acre, na fronteira com a Bolívia, cuja população, de 20 mil habitantes, caberia inteira no Estádio da Portuguesa de Desportos, em São Paulo.
Eu pensava nesta geografia improvável enquanto mexia o pé encharcado de suor dentro de uma meia grossa e um sapato fechado, num táxi guiado por um motorista gordo que eu via cochilar pelo espelho retrovisor, depois do almoço, acelerando a 140 km/h sob um sol acreano suportável unicamente pelo couro grosso do gado zebu que passava esparso pela janela do automóvel, salpicando de borrões brancos uma tediosa paisagem de pasto e palmeiras a perder de vista.
Enquanto sentia o vento quente no rosto, eu me lembrava que, apenas três anos antes, eu e o fotógrafo Tiago Queiroz, ambos na época a serviço do jornal O Estado de São Paulo, nos surpreendíamos com uma lufada semelhante de calor pegajoso ao desembarcar, junto com dezenas de militares, de um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) em Porto Príncipe, capital do Haiti, no momento que o país embalava 300 mil pessoas em sacos plásticos depois de uma das piores tragédias humanitárias de que se tem notícia no mundo.
Agora, em 2013, Brasileia era o destino. Desta vez, eu estava acompanhado por Gabrielle Apollon, uma pesquisadora canadense e descendente de haitianos. Viajávamos como membros da Conectas, uma organização internacional de direitos humanos. Sabíamos que dezenas de haitianos, vítimas daquele mesmo caos de 2010, estavam chegando todos os dias para tentar uma nova vida. Queríamos vê-los.

À medida que o automóvel comia os quilômetros de estrada escaldante, Brasil e Haiti se desenhavam trêmulos no horizonte, cada vez mais conectados por um fio invisível. Os haitianos, como formiga no açúcar, formavam um cordão que rasgava o continente. O trajeto tinha início na República Dominicana e descia para a América do Sul, através do Equador, Bolívia e Peru, até desaguar bem ali à nossa frente. Na estrada, pagavam até US$ 4 mil em suborno, eram extorquidos por policiais e achacados por atravessadores ao longo de uma romaria ilegal.
Quase no fim da tarde, entramos no pequeníssimo povoado. O lugar era cortado por dois rios e um drama transbordantes. Em fevereiro de 2012, Brasileia ficara debaixo d’água depois que os Rios Xapuri e Acre saíram do leito arrastando todas as casas que estavam nas margens. Ao entrar, nosso carro cruzou uma pequena ponte metálica, de mão única. Abaixo de nós, o rio barrento corria calmo. Do outro lado, víamos alguns restos de construções abandonadas no meio do capim, depois da cheia de três anos atrás. Foi nesta cidade também que, em 2008, dezenas de bolivianos apareceram vagando pela rua, de noite, ocupando praças e esquinas, só com a roupa do corpo. Eles fugiam de um massacre que ocorrera na cidade boliviana de Pando, onde 19 camponeses haviam sido mortos numa disputa política entre o governo local e o presidente da Bolívia, Evo Morales.
Rios assassinos, massacres políticos, refugiados — naquela altura, Brasileia se apresentava como um bucólico e poeirento para-raios de pepinos. Depois de uma viagem cansativa, sentimos que havíamos chegado numa arapuca no fim do arco-íris, um blecaute no fim do túnel.
Com o raiar do dia, vimos onde os haitianos eram recebidos — um galpão poeirento e superlotado, onde muitos deles passavam até dois meses em condições insalubres, para dizer o mínimo. Ali naquele abrigo, 90% dos moradores tinham diarreia, a temperatura passava dos 40⁰ e não havia perspectiva nenhuma de que a vida pudesse ser muito melhor do que antes da partida no Haiti. O campo tinha dez latrinas fétidas que, nos dias em que eu estive lá, eram usadas por 832 pessoas. Para chegar até elas, ou até os oito chuveiros existentes, que ficam numa área contígua, era preciso, antes, caminhar sobre um terreno de barro, encharcado de água de esgoto onde duas galinhas pretas ciscavam alheias ao drama.

À medida que nos aproximamos da entrada do abrigo, dezenas de haitianos começaram a caminhar em nossa direção. Eles se moviam numa massa de silêncio e curiosidade, levantando uma nuvem de fina poeira do chão. Duas ondas de expectativa, desconfiança e estranhamento humano se chocaram na estreita portinhola. Os haitianos nos cercaram com olhares aflitos, esbarrando entre si, competindo por estar o mais próximo possível dos novos visitantes. Mais tarde, eu descobriria que a tensão se devia ao fato de imaginarem que éramos empresários interessados em contratá-los.
Nós não éramos, mas o senhor loiro, de olhos claros e nariz adunco que entraria ali duas horas depois, traria 34 vagas a serem preenchidas por haitianos numa empresa têxtil da cidade sul-mato-grossense de Três Lagoas. Sua simples chegada foi suficiente para desatar um rodamoinho de empurrões, socos e chutes entre dezenas de desabrigados, como uma roda de pogo gigante no meio do terral. Em 21 de maio, esta mesma empresa já havia recrutado 23 haitianos nesse mesmo campo. Todos supunham que aquele homem voltava para buscar outros mais. Era a chance de eles saírem dali. E muitos estavam dispostos a lutar com os próprios punhos por isso: o que víamos acontecer agora, como numa rinha.
Subitamente, um homem baixo e algo encurvado, de consistência musculosa e compacta, pele curtida pelo sol e cabelos negros, aparentando ter uns 50 anos de idade, gritou um par de ordens para a turba convulsa. Damião Borges administra o campo há três anos. Ele é o Estado brasileiro dentro daqueles 200 metros quadrados de terreno cercado de arame farpado. Com a mão em forma de concha ao redor da boca, esse ex-jogador de futebol, hoje funcionário da secretaria de Justiça do Governo do Estado do Acre, se esgoelava a plenos pulmões: “Parem! Parem! Vocês são burros?”. A pronúncia do “r” revelava que, apesar da aparência contrária, ele tentava falar espanhol. Poucos ali entendiam qualquer outro idioma que não fosse o creole, uma língua que só existe no Haiti.
Ninguém deu ouvidos a Damião. E agora, dois negros enormes se agarravam e rolavam na terra. Não demorou muito até que um policial militar sacasse uma pistola do coldre, optando por uma língua mais prática e universalmente entendida: a da ameaça de morte. Com a arma em punho, ele controlou o distúrbio e acalmou os haitianos, que agora bufavam como touros, suados, ainda sob efeito da adrenalina e da tensão que custava a se dissipar naquele clima tenso e sufocante. A poeira que deixava a cena turva foi aos poucos baixando, enquanto um segundo funcionário local estendia silenciosamente uma corda de sisal, confinando os haitianos no que, sem meias palavras, parecia um curral. Estávamos no campo. E tínhamos entendido, em poucas horas, como a vida ali dentro funcionava.
Ao iniciar a viagem de 3.755 km de São Paulo a Brasileia, eu esperava encontrar muita coisa, mas não esperava chegar no Haiti de novo. Em muitos aspectos, o campo de haitianos em Brasileia se parecia aos campos de desabrigados que eu havia visitado como repórter em Porto Príncipe depois do terremoto. A diferença era que, agora, trabalhando numa organização de direitos humanos e não mais num jornal, eu sentia que poderia ir além da publicação de uma matéria, cobrando pessoalmente as autoridades em longas e tensas reuniões nas quais eu poderia pedir ação efetiva em favor das vítimas.
Minha impressão de que Brasileia e Porto Príncipe tinham muito em comum se provaria verdadeira. “O que vivemos aqui em Brasileia não é para um ser humano. Eles nos colocaram de novo no Haiti que tínhamos logo após o terremoto: a mesma sujeira, o mesmo tipo de abrigo, de água, de comida. Isso me machuca e me apavora. Eu sabia que o caminho até aqui seria duro, porque você está lidando com criminosos, mas, ao chegar aqui no Brasil, estar num lugar desses é inacreditável”, disse em creole o haitiano Osanto Georges, de apenas 19 anos.
A maioria das pessoas com as quais conversei no local já não aguenta mais os imigrantes. O governo do Estado, tampouco — ameaça simplesmente fechar o local, diz que tomou um calote de três meses no repasse de verbas de Brasília e ficou devendo R$ 700 mil para a empresa que fornece alimentos para os haitianos. O Ministério Público Federal cogita de transferir o abrigo para Rio Branco. O ministério da Justiça diz que o governo do Acre e a prefeitura de Brasileia também deveriam assumir uma parcela maior de responsabilidade. O Itamaraty repete como um mantra que, sem procedimentos burocráticos, 80% da população do Haiti viria para cá. Ninguém assume com vontade o assunto.
Há pouco mais de um ano, o governo brasileiro criou o que chama de “visto humanitário”: um remendo jurídico que não resolve o problema. Em tese, a iniciativa facilitaria a vinda dos imigrantes haitianos, que, legalmente, nem são considerados “refugiados” nos termos da convenção que trata do tema. Eles estão num limbo humanitário, perdidos entre nomes, classificações, vistos e papeis enquanto veem os brasileiros conversando eternamente entre si em português, sem entender exatamente onde está o componente dito “humanitário” da política que o país dedica a cada um deles.

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