segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Os errantes no inferno de Dante

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27/01/2014 - Copyleft

Os errantes no inferno de Dante

De 2011 para 2012, 2,6 milhões de novos refugiados e deslocados se somaram aos já existentes 42,5 milhões.


Najar Tubino
John Lavall
Porto Alegre – A cada 11 minutos uma pessoa desaparece no Brasil. Essa tortuosa realidade ainda faz vítimas outras 40 mil famílias, porque desaparecem anualmente no Brasil 40 mil crianças. Os motivos: tráfico de crianças por quadrilhas que atuam em todo o território nacional e também internacional, com objetivo de vender seus órgãos ou para trabalho escravo, prostituição e adoção ilegal. O número de refugiados e deslocados por guerras no mundo supera os 45 milhões de pessoas, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, no “Relatório Tendências Globais” de 2012.
 
De 2011 para 2012, 2,6 milhões de novos refugiados e deslocados se somaram aos já existentes 42,5 milhões, sendo que 28,8 milhões de pessoas foram forçadas a fugir dentro das fronteiras de seus países. Desse total, 15,4 milhões obtiveram o status de refugiados em outros lugares. O Afeganistão lidera a lista dos refugiados há mais de três décadas e registrou em 2012, 2,5 milhões de refugiados. Um em cada quatro refugiados no mundo é afegão, e a grande maioria reside no Paquistão e no Irã. A Somália está em segundo lugar com 1,1 milhão de refugiados e o Iraque em terceiro lugar com 746 mil refugiados. A média de deslocados por guerras é de três mil por dia, o maior índice em 18 anos.
 
200 milhões de migrantes do clima
 
No Brasil os atingidos por barragens das hidrelétricas, principalmente, somam mais de um milhão, contados a partir da década de 1970 – o país conta com 600 barragens. A de Sobradinho, no rio São Francisco, atingiu mais de 70 mil pessoas. As vítimas das mudanças climáticas no mundo em 2010 formaram um contingente de 30 milhões de pessoas, segundo dados da Cruz Vermelha Internacional. O professor Norman Myers, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, escreveu um artigo para a revista “Science”, onde calcula que em 2050 existirão 200 milhões de migrantes do clima. A professora Márcia Castro, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (EUA), coautora do artigo na “Science”, registrou:
 
“- O problema é que no Brasil, assim como em outros lugares, os desastres climáticos acontecem, a população sai temporariamente do local, mas retorna novamente, ficando sujeita a sofrer novamente do mesmo problema”.
 
O campo de concentração brasileiro
 
Em 1915 no Ceará, foi criado o “Campo de Concentração do Alagadiço”, para que os flagelados da seca não alcançassem a capital. Chegou a reunir oito mil pessoas, num cercado de 500 metros de frente, com alguns pés de cajueiro. Um trabalho da pesquisadora Lidiany Soares Mota Travassos traçou o perfil do campo de concentração brasileiro que existiu muito antes da campanha nazista da II Guerra Mundial. Na grande seca de 1877, uma multidão de famintos enlouquecidos invadiu Fortaleza – 110 mil pessoas -, tomou conta de praças e ruas. Para evitar o problema, no ciclo que começou em 1913, a então Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), a progenitora do DNOCS, criou o campo, que era vigiado por soldados armados. Os retirantes eram conduzidos de trem até os arredores de Fortaleza, onde havia a estação Alagadiço e eram levados para o campo de concentração.
 
“- O medo de saques e da violência gerada pela loucura da fome e a propagação de doenças, eram os fatores que pressionavam o poder público a buscar nos campos de concentração uma alternativa para conter as levas de famintos que, dia após dia, se aproximavam da cidade”, anota a pesquisadora.
 
Cadáveres recolhidos em sacos
 
Ela também cita trechos do livro do escritor, cientista social e farmacêutico, Rodolfo Teófilo, que faz um relato que do acontecia na época, e que está registrado no livro “A Fome”. O mesmo cenário foi utilizado por Rachel de Queiroz no livro “Quinze”, de 1930. Relata Rodolfo Teófilo:
 
“- A peste e a fome matam mais de 400 pessoas por dia. O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres. Os que têm rede vão nela, suja, rota, como se acha; os que não a tem, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças, que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas? Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”.
 
Mais um trecho: “a cozinha era também ao tempo. Em algumas dúzias de latas, que haviam sido de querosene, ferviam em trempes de pedra grandes nacos de carne de boi, misturados a maxixes, quiabos e tomates. Achei esquisitas as verduras, e mais ainda os tomates. Pendia de um galho de cajueiro um quarto de boi. Pude então avaliar a péssima qualidade da carne, só digna de urubus”.
 
O inferno de Dante
 
“E o local onde eram depositadas as matérias fecais dos flagelados também era bastante preocupante, ficando a sotavento (lado oposto ao lado do qual sopra o vento), no fundo do cercado, ao poente. Vale destacarmos que está área era coberta apenas por pequenos arbustos, onde os famintos ficavam numa promiscuidade de bestas e defecavam, ficando as fezes expostas às moscas”, relata o escritor no livro “A fome”.
 
Passando de um inferno a outro. O poeta Dante Alighieri, nascido em Florença no ano de 1265, escreveu “A Divina Comédia”, considerado um dos maiores clássicos da humanidade. O autor descreveu o caminho do inferno ao paraíso com o poeta romano Virgílio, seu mestre. No Paraíso encontra Beatriz de Folco Portinari, sua amada desde a infância. Dante foi “priore” na República de Florença, no ano 1300, significava ser o chefe supremo da magistratura política. Porém, morreu aos 56 anos em Ravena, onde estava exilado, depois de perambular por várias cidades da Toscana, servindo a muitos senhores diferentes.
 
A elite feudal
 
Dante descreve na Divina Comédia monstros de três cabeças, rios fervilhando de sangue, vários sacrifícios que as almas humanas deveriam pagar no acerto de contas cristão, ou seja, a hora do juízo final, de purificar os pecados. Mas sinceramente, depois de reler alguns trechos do primeiro capítulo sobre o inferno, não encontrei nada parecido com o que os cearenses flagelados de 1915 passaram no campo de concentração pré-nazista brasileiro. Já morei duas vezes no nordeste, uma em Maceió e outra em Natal. Considero a elite política e empresarial do nordeste totalmente feudal, pré-capitalista. Seus métodos ainda são os mesmos da época da escravidão. Tratam o dinheiro público como se fosse propriedade da família. Não perdoam adversários e odeiam o povo. Nunca esqueço do historiador Décio Bergamaschi Freitas, que também morou em Maceió na década de 1980, ao relatar um jantar que tivera com um usineiro. Ele e o tal usineiro na sala, e as mulheres em outra dependência da casa.
 
 
Este é um texto sobre errantes, pessoas que vagueiam desorientadas pelo mundo. Ou porque perderam a sua terra, ou foram expulsas, ou não têm nenhuma e passam a rodar por caminhos desconhecidos sem futuro, sem história, sem uma casa para retornar. Este também é um texto para homenagear meu filho Luam de Oliveira Tubino, economista formado pela UFRGS, especializado em economia solidária, de 29 anos, que no período de 26 de dezembro de 2013 a 3 de janeiro de 2014, tornou-se um errante na Venezuela, até ser encontrado em Puerto Del Sur, a 320 km de Caracas.

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