terça-feira, 30 de abril de 2013

Freado por mecanização e fiscalização, trabalho escravo é reduzido no campo

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Freado por mecanização e fiscalização, trabalho escravo é reduzido no campo

Para a Pastoral da Terra, total de trabalhadores rurais libertos se manteve estável, passando de 2.077 em 2011 para 2.095 em 2012. O número de ocorrências aumentou nas atividades não agrícolas.
A reportagem é de Sarah Fernandes e publicada pela Rede Brasil Atual, 28-04-2013.
Freado pelo aumento da mecanização no campo e da fiscalização ambiental, o número de ocorrências de trabalho escravo no meio rural reduziu entre 2011 e 2012, passando de 230 para 170. Os dados são do relatório Conflitos no Campo no Brasil, divulgado na semana passada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Apesar da redução, o número de trabalhadores libertos se manteve estável, segundo o levantamento, passando de 2.077 para 2.095 no período analisado. Foram registradas ocorrências em 20 estados, com predomínio na Amazônia Legal, que disparou em 111 casos e 1.237 libertos.
A queda no número de casos foi motivada pela substituição de mão de obra por máquinas e pela maior fiscalização ambiental do Ibama, segundo o coordenador da campanha de trabalho escravo da Pastoral da Terra, Xavier Plassat. “A divulgação dos casos também ajudou, principalmente pelo risco de o empregador entrar na lista suja do trabalho escravo, que causa uma exposição grande.”
O deputado Claudio Puty (PT-PA), presidente da CPI do Trabalho Escravo – que terminou em março sem aprovar um relatório final – acredita que o aquecimento do mercado de trabalho também interferiu. “O trabalhador tem mais condições de barganhar. Outra coisa foi o aumento da fiscalização, que está mais eficiente.”
Fiscalização
Só no Pará, que lidera o ranking, foram registradas 49 ocorrências, com 540 trabalhadores libertos. Na sequência vem o Tocantins, com 321 libertos, e o Paraná, com 225. De acordo com a Pastoral da Terra, chama a atenção o fato de todos os estados do Sul e do Sudeste terem registrado ocorrências.
Para o auditor do Ministério do Trabalho, Alexandre Lira, responsável por autuar casos de trabalho escravo, as ocorrências no Sul e Sudeste explicam-se pelo fato de que “no último ano, a fiscalização chegou a lugares onde ainda não tinha chegado. Além disso, temos hoje auditores mais bem treinados”. Ele, no entanto, discorda que os casos tenham reduzido. Isso porque o MTE vai lançar, nesta semana, seus números oficiais, que apontam um crescimento.
O deputado Claudio Puty descarta que a haja interferência da CPI e da PEC do Trabalho Escravo na queda de ocorrências apontada pela Pastoral da Terra. “Eu poderia dar uma resposta conveniente e dizer que a CPI surtiu efeito e por isso o trabalho escravo reduziu. Mas eu não acredito nisso. A queda é resultado de um esforço de longo prazo do Estado brasileiro para combater esses crimes, aumentando o monitoramento e fortalecendo os grupos móveis de fiscalização”, avalia o deputado Puty.
Plassat, da Pastoral da Terra, concorda.“O risco de perder a terra ou de punição penal não teve influência. Nada foi aprovado ainda. Levamos oito anos para subir só um degrau e encaminhar a PEC do Trabalho Escravo para o Senado.”
Na época do encerramento da CPI, que teve início em fevereiro de 2012, o deputado afirmou que a opção por não aprovar um relatório final se deu para impedir que integrantes da banca ruralista – da qual faziam parte 20 dos 28 integrantes da CPI – aprovassem um documento para enfraquecer a fiscalização e a punição dos casos.
A comissão, no entanto, impulsionou a PEC do Trabalho Escravo, segundo Puty. Hoje chamada de 57A, ela foi aprovada pela Câmara em maio de 2012, depois de oito anos parada. Apesar da compromisso do governo de não retroceder na legislação contra o trabalho escravo, não há previsão de quando ocorrerá a votação no Senado. A expectativa daPastoral da Terra é que haja forte pressão da bancada ruralista para enfraquecer o texto.
Lira, do Ministério do Trabalho, lembra que a CPI e a PEC ajudaram a tornar o assunto público. “Toda vez que essa questão é trazida para a sociedade se torna mais claro quais as consequências para os empregadores.”
Para Plassat, a maior divulgação ajuda também os trabalhadores a se precaverem. “Porém, os empregadores também ficam mais espertos. Quem faz uso desse tipo de trabalho tem firmado contratos de tempo curto. Assim, quando o trabalhador começa a perceber que há algo errado e que deve denunciar, ele vai embora e outros chegam.”
No meio urbano
Na contramão do campo, as ocorrências de trabalho escravo nas chamadas atividades não agrícolas aumentou de 17 acasos em 2011 para 20 em 2012, segundo o relatório da Comissão Pastoral da Terra. O número de trabalhadores resgatados quase dobrou, passando de 391 para 775, segundo o relatório.
De acordo com Plassat, o aumento das ocorrências não significa que o número de casos esteja aumentando. “A fiscalização do Ministério do Trabalho e a divulgação dos resultados tem sido mais intensa e, por isso, as ocorrências aparecem mais. Hoje não é mais novidade que existam imigrantes bolivianos trabalhando como escravos em confecções, como era há três anos”, conta. De acordo com o especialista, o maior número de ocorrências de trabalho escravo em atividades não agrícolas está na construção civil e nas confecções de roupas.
Para o deputado Puty, seria necessária a aprovação de uma legislação mais rigorosa para punir os envolvidos. “Ainda há empresas que, para reduzir custos, utilizam esse tipo de mão de obra. O mercado têxtil, por exemplo, é concentrado em poucos compradores e é sobre eles que a fiscalização deve cair. Os compradores devem ser mais punidos, pelo Código Penal e também pela CLT.”

Índios brasileiros foram tratados como escravos e castigados em troncos

ihu
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519683-indios-brasileiros-foram-tratados-como-escravos-e-castigados-em-troncos


Índios brasileiros foram tratados como escravos e castigados em troncos

Em plena segunda metade do século XX, indígenas foram submetidos a torturas que os negros sofreram 100 anos antes.
A reportagem é de Alessandra Mello e publicada pelo jornal O Estado de Minas, 28-04-2013.
Um dos mais antigos aparelhos de suplício de negros era usado em alguns postos do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que ironicamente tinha como uma das suas principais atribuições “não permitir a violência contra o índio”. Batizado de tronco, ele era uma adaptação de um aparelho de tortura, usado largamente em toda a América, inclusive no Brasil, durante o período da escravidão.
Além do tronco, era muito comum o uso de palmatórias pelos chefes dos postos, citadas com frequência por Jader de Figueiredo em seu relatório. Usadas para bater na mão dos índios, elas eram distribuídas pelas inspetorias regionais, como eram batizadas as nove sedes administrativas do SPI, que tinham sob sua subordinação 130 postos localizados em terras indígenas. São frequentes os relatos de índios mutilados pelo tronco, que consistia em duas estacas enterradas em ângulo agudo, onde os tornozelos eram amarrados. Essas estacas depois eram dobradas e quebravam os tornozelos.
Relatório Figueiredo também dá conta da existência de capatazes contratados exclusivamente para bater nos índios que tinham “mau comportamento”. Muitos eram amarrados, como nos antigos pelourinhos, e espancados com pedaços de pau ou chicoteados com rabo de tatu, uma espécie de chicote com argola no cabo e duas talas na ponta para surrar. Quem se atrevia a discordar dos chefes dos postos também podia ser preso, já que eles tinham autonomia para castigar os índios.
Em todos os postos havia prisões ou quartos de castigo. Alguns índios eram presos em buracos usados como fossas sanitárias. Outros em uma estreita caixa de madeira, com cerca de 2,6 metros quadrados, com um buraco apenas para respirar. Em alguns casos, os desobedientes eram obrigados a fazer trabalhos forçados para os fazendeiros das regiões. Os índios também eram comercializados. As mulheres eram vendidas ou doadas para trabalhar em “casas de famílias de respeito”. No posto indígena Couto Magalhães, hoje no estado do Tocantins, uma índia bororó de apenas 11 anos foi dada a um operário em pagamento pela feitura de fogão de barro. O pai da moça reclamou e foi surrado a mando deFlávio de Abreu, que chefiava a inspetoria regional, também acusado de obrigar os índios a espancar suas mães.
Nem mesmo as crianças eram poupadas das torturas, de acordo com o relatório. No posto Fraternidade Indígena, localizado na reserva da tribo Umutima, no interior do Mato Grosso, o documento cita que um índio de 14 anos, de nomeLalico, foi espancado e pendurado pelos pulsos. Os índios soltaram o garoto, que foi recapturado a mando do chefe do posto e novamente preso e espancado. Revoltada com a agressão, a tribo ameaçou um levante e ele foi solto. No posto Cacique Doble, no Rio Grande do Sul, o índio Narcizinho, de apenas 7 anos, foi pendurado pelos polegares e espancado até a morte pelos capatazes do chefe do posto, Álvaro de Carvalho.
Suplício no tronco
“O tronco consiste em duas estacas enterradas em ângulo agudo no mesmo buraco, com o vértice para baixo. Em cada uma delas existe um pequeno entalhe. A tortura consiste em colocar o tornozelo do índio e paulatinamente fechar o ângulo, aproximando as duas pontas das estacas com o auxílio de uma corda. Um processo muito doloroso, que se levado ao extremo poderá provocar a fratura do osso”, aponta trecho do Relatório Figueiredo.
 
'Anjo' da dor
Um relato dá conta de um índio pendurado pelos dedos polegares, prática usual durante o período da escravidão no Brasil. Naquela época, era usado um instrumento batizado de “anjinho”, que prendia com anéis de ferro os dedos dos polegares e depois os comprimia usando uma chave ou parafuso.  
 
Cárcere desumano
Também são frequentes os relatos sobre a existência de prisões em postos indígenas. Um deles revela que os índios eram presos em caixotes de madeira, com dimensão de 2m x 1,30m com um pequeno buraco que servia para respirar. Os índios também eram encarcerados em buracos no chão, fossas com fezes e nos chamados “quartos de castigo”
 
Algoz profissional
Nos postos de Ivaí e Nonoai, no Paraná, e no posto Guarita, no Rio Grande do Sul,  denuncia o relatório, o inspetor regional do SPI, Acyr de Barros, tinha um funcionário, de nome Miguel Preto, contratado exclusivamente para bater nos índios. Eles eram amarrados em postes ou pendurados pelos pulsos. Também eram surrados com pedaços de pau e castigados com rabo de tatu, uma espécie de chicote com argola no cabo e duas talas na ponta.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da forma-mercadoria

IHU
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/ser-mercadoria-num-momento-historico-de-crise-radical-da-forma-mercadoria-entrevista-especial-com-giovanni-alves/519617-ser-mercadoria-num-momento-historico-de-crise-radical-da-forma-mercadoria-entrevista-especial-com-giovanni-alves



Ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da forma-mercadoria. Entrevista especial com Giovanni Alves

“A maior ameaça aos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros não é a direita reacionária, mas sim a tibieza de parte da esquerda reformista hegemônica incapaz de aprofundar, sem aventuras, mas com ousadia, as reformas sociais no país", assevera o sociólogo.
Confira a entrevista.
Foto: http://www.rondoniavip.com.br
A década de 2000 foi de reorganização do capitalismo brasileirocom as grandes empresas aumentando investimentos produtivos, reordenando suas estratégias de negócios na perspectiva da concorrência internacional acirrada.
A opinião é de Giovanni Alves, professor da Unesp, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para ele,  hoje temos “a formação da consciência de classe e, portanto, a formação da classe social capaz de promover mudanças históricas profundas no Brasil”. 
“Na época de crise estrutural do capital, - continua o sociólogo - a renúncia do sindicalismo à formação da consciência de classe é deveras muito perversa, pois o que a história está cada vez mais mostrando é que não existe futuro com o capitalismo”.
Segundo ele, “a ‘captura’ da subjetividade do trabalho vivo adquiriu dimensões amplas e intensivas. A lógica da gestãotoyotizada invadiu não apenas o chão de fábrica, mas os escritórios e repartições públicas e até a vida cotidiana (no plano léxico-locucional, por exemplo, trabalhador assalariado tornou-se mero ‘colaborador’, linguagem apropriada também por lideranças sindicais). Enfim, a reestruturação produtiva assumiu novas dimensões no plano do controle laboral”.
Giovanni Alves (foto abaixo) é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, no campus de Marília. Livre-docente em teoria sociológica, é mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa "A derrelição de Ícaro – Sonhos, expectativas e aspirações de jovens empregados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil (2003-2013)”. É autor de, entre outros, Dimensões da precarização do trabalho – Ensaios de sociologia do trabalho (Bauru: Projeto editorial praxis, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a revolução tecnológica tem afetado o chão de fábrica, pensando na realidade brasileira dos últimos anos?
Foto: http://blogdegiovannialves.blogspot.com.br
Giovanni Alves – As grandes fábricas no Brasil têm passado por profundas transformações produtivas nos últimos anos. Desde o começo da década de 2000 alterou-se de forma significativa a morfologia do trabalho industrial no Brasil por conta das inovações tecnológicas e organizacionais. Nos polos mais desenvolvidos da indústria – e também do setor de serviços –, as novas tecnologias informáticas de base microeletrônica e tecnologias informacionais em rede alteraram o processo de produção de mercadorias e a organização dos serviços de distribuição e serviços financeiros e telecomunicações.
Se a década de 1990 foi a década da reestruturação produtiva que atingiu de forma disruptiva o mundo do capital e, por conseguinte, o mundo do trabalho no Brasil, então a década de 2000 foi a década de reorganização do capitalismo brasileiro com as grandes empresas aumentando investimentos produtivos, reordenando suas estratégias de negócios na perspectiva da concorrência internacional acirrada.
A ofensiva do capital adquiriu uma dimensão progressiva no sentido do investimento não apenas em capital fixo, mas principalmente investimentos em novas estratégias organizacionais e de gestão da força de trabalho. Nesse sentido, disseminou-se o que eu denomino o “espírito” do toyotismo, que assumiu um caráter sistêmico. A “captura” da subjetividade do trabalho vivo adquiriu dimensões amplas e intensivas. A lógica da gestão toyotizada invadiu não apenas o chão de fábrica, mas os escritórios e repartições públicas e até a vida cotidiana (no plano léxico-locucional, por exemplo, trabalhador assalariado tornou-se mero “colaborador”, linguagem apropriada também por lideranças sindicais).
Enfim, a reestruturação produtiva assumiu novas dimensões no plano do controle laboral. Por ironia da história, o “choque de capitalismo” prescrito em 1989 pelo candidato a presidente da República pelo PSDB, Mário Covas, foi aplicado pelo presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, do PT – é claro, não o choque do capitalismo neoliberal, mas sim o choque do capitalismo neodesenvolvimentista.  
IHU On-Line – Quais as transformações que a luta operária sofreu no Brasil nos últimos anos? Quais as mudanças de valores pelas quais passaram trabalhadores, empresas e sindicatos?
Giovanni Alves – No contexto do choque de capitalismo neodesenvolvimentista com dominância financeira, a luta operária assumiu um novo perfil político-ideológico. Por um lado, o sindicalismo reavivou-se nos anos do lulismo e as centrais sindicais consolidaram-se institucionalmente. Não podemos deixar de reconhecer a positividade do renascimento sindical no país depois dos anos de chumbo da “década neoliberal”. Foram fechados bons acordos coletivos com reajuste salarial acima da inflação.
Mas, por outro lado, o renascimento sindical possui um caráter perverso no plano da consciência de classe. Primeiro, porque o sindicalismo em geral, com destaque para a CUT, maior central sindical do país, tornou-se um sindicalismo “oficialista”, integrado financeiramente às disposições político-estatais, perdendo não apenas o caráter contestatório da ordem burguesa (o que já ocorrera desde a década de 1990), mas o caráter de crítica da ordem política, na medida em que se identificou com os projetos dos governos Lula e Dilma. Tornou-se um sindicalismo “chapa branca”.
Aprofundou-se no polo de esquerda social-democrata, o viés concertativo-propositivo e neocorporativo do sindicalismo hegemônico no Brasil. Diante da ofensiva ideológica do capital nos locais de trabalho, os sindicatos ficaram passivos, incapazes de enfrentar o capital no campo da luta ideológica. Pelo contrário, incorporaram o discurso da ordem produtivista, rendendo-se aos valores empresariais. Aliás, na década de 2000, com o choque de capitalismo neodesenvolvimentista, a hegemonia empresarial aumentou no Brasil.
A subordinação do PT

Para não perder espaço político, o PT, partido da ordem e com força protagônica no governo federal, subordinou-se ao discurso vigente. Enfim, a crise ideológica do sindicalismo rendido às idiossincrasias empresariais decorre da crise ideológica do partido hegemônico no movimento sindical: o Partido dos Trabalhadores, subsumido, mais do que nunca, à ordem burguesa hipertardia. A lição da falência da social-democracia na Europa não foi aprendida no Brasil. Aqui, a sucata ideológica da concertação social está a pleno vapor rumo ao abismo (como diria Robert Kurz).
A burocracia sindical não se atentou que a crise profunda do capitalismo no centro desenvolvido do sistema, impulsiona com mais intensidade, a perversão do sindicalismo concertativo de cariz social-democrata, incapaz de conduzir a luta ideológica não apenas entre suas bases de trabalhadores assalariados, mas principalmente na sociedade em geral. O viés neocorporativo isolou, por exemplo, a CUT e os grandes sindicatos das lutas sociais em geral.
O choque de capitalismo neodesenvolvimentista colocou no centro da disputa social e política, a luta ideológica que é essencialmente uma disputa por valores. Com a crise europeia assiste-se à falência irremediável dos valores social-democratas. A perspectiva de um capitalismo humanizado é não apenas uma impossibilidade histórica, hoje, mais do que nunca, mas uma ideologia farsesca que persegue o discurso social-democrata. Enfim, o que se coloca hoje é a formação da consciência de classe e, portanto, a formação da classe social capaz de promover mudanças históricas profundas no Brasil.
IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, o Estado de bem-estar social está se esfacelando na Europa. E no Brasil? Que impactos aparecem nesse sentido? Podemos dizer que os direitos sociais e trabalhistas não estão sendo postos em risco em nosso país, diante da crise? E como será dentro de 20 anos, por exemplo?

Giovanni Alves – A crise europeia como crise do Estado de bem-estar social é, depois da queda do muro de Berlim, uma crise histórica ruptural da civilização do capital constituída no pós-guerra. Possui impactos radicais no plano político-ideológico. Com um intervalo de pouco mais de vinte anos, cai por terra mais uma ilusão histórica do século XX: a ilusão social-democrata. Depois da falência da ilusão do socialismo estatal, cai por terra o projeto social da concertação entre capital e trabalho na União Europeia.
É claro que há tempos, pelo menos desde a implantação da União Europeia em seu formato neoliberal, o modelo de Estado social europeu, construído no pós-guerra, dava sinais de falência social, com o crescimento do desemprego de longa duração, principalmente entre jovens trabalhadores, e a ampliação da mancha de precariedade laboral.
O que presenciamos hoje com a crise da zona do Euro é apenas o tiro de misericórdia no projeto socialdemocrata europeu. Todo social-democrata é hoje um neoliberal envergonhado; ou então, um Dom Quixote de La Mancha pós-moderno incapaz de perceber a falência irremediável do modelo civilizatório do capitalismo concertativo. Na verdade, a crise europeia exige de nós hoje, intelectuais críticos, a crítica radical do modo de produção capitalista e modo de civilização burguesa.
Cenário brasileiro

No caso do Brasil, país capitalista hipertardio e sociedade burguesa dependente e carente de modernização, o tsunami da crise europeia ainda não chegou às nossas praias tropicais. Parte significativa da intelectualidade política e social da esquerda reformista no país ainda está fascinada pelo modelo social europeu ou Estado de bem-estar, o qual hoje nem os próprios europeus acreditam que possa se sustentar nas próximas décadas de desenvolvimento de capitalismo financeirizado.
A mediocridade das nossas lideranças de esquerda reformista é indiscutível. O reformismo social e político no Brasil não se deu conta de que vive uma profunda crise ideológica. Muitos intelectuais neokeynesianos de esquerda acreditam que o modelo neodesenvolvimentista com dominância financeira possa se sustentar por muito tempo, sem expor seus limites irremediáveis como projeto civilizatório.
Os limites do projeto lulista no Brasil, com o aprofundamento da crise europeia e os impasses do capitalismo central sob a hegemonia financeira, tornam-se, com o avançar da conjuntura da década de 2010, cada vez mais explícitos, exigindo medidas mais ousadas de controle social e intervenção na economia (o que arrepia os escrúpulos da social-democracia quixotesca ou neoliberais envergonhados incrustados no governo).
No Brasil, elo mais forte do capitalismo hegemônico na América Latina, a incapacidade (ou tibieza) da social-democracia em aprofundar reformas de controle social e democratização do sistema político-jurídico e econômico e, the last but not the least, o sistema midiático, só abre espaço, como na Europa em crise, para o avanço das forças conservadoras e reacionárias da direita tupiniquim.
Na verdade, é o pêndulo perverso da crise estrutural do capital que, no plano político, oscila entre governos sociais-democratas medíocres e governos conservadores e reacionários impenitentes, que ameaça nos próximos anos os parcos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros; pêndulo perverso lastreado num sistema político radicalmente corrompido, ineficaz e ineficiente para expressar a representação popular.

Portanto, a maior ameaça aos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros não é a direita reacionária, mas sim a tibieza de parte da esquerda reformista hegemônica incapaz de aprofundar, sem aventuras, mas com ousadia, as reformas sociais no país. É claro que a incapacidade política da esquerda social-democrata deriva estruturalmente da miséria histórica dos intelectuais de esquerda radical no Brasil, incapazes de hegemonia social num cenário de violência simbólica e manipulação midiática historicamente estrutural da direita socialmente organizada.
Enfim, na medida em que não se investe num processo de formação da consciência de classe social capaz de negar o estado de coisas existentes, com uma esquerda política e sindical capaz de travar a luta ideológica, com mais criatividade e menos sectarismo, ampliando alianças sociais e políticas sem perder a radicalidade, fragiliza-se a capacidade de resistência ao tsunami da crise europeia que se aproxima e, ao mesmo tempo, azeita-se a máquina do pêndulo perverso do capital em sua etapa de crise estrutural. Como diria Marxhic Rhodus, hic salta.
IHU On-Line – Como podemos interpretar a presença do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no evento de lançamento de um veículo da Ford do Brasil? Trata-se de uma mudança nas relações entre capital e trabalho na região considerada berço do sindicalismo brasileiro?

Giovanni Alves – Trata-se apenas da comprovação da estratégia de concertação social adotada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – SMABC. No lugar da luta de classes e do sindicalismo de confronto, o SMABC adotou, há mais de vinte anos, a estratégia do sindicalismo propositivo, negociando com o capital as inovações produtivas no local de trabalho e colaborando com as grandes empresas montadoras. Pode-se dizer que existe uma “parceria” entre as montadoras e o SMABC, “parceria conflituosa” que ocasionalmente provoca rusgas entre os parceiros, mas nada que abale a confiança ideológica na ideia da concertação social.
Primeiro, é preciso salientar que o sindicalismo brasileiro não nasceu na região do ABC paulista. O que nasceu lá foi o saudoso “novo sindicalismo”, que surgiu nas grandes greves de 1979 e 1980, berço do PT e da CUT. Entretanto, nos últimos trinta anos, o novo sindicalismo envelheceu muito rapidamente e tornou-se um sindicalismo pragmático, propositivo, neocorporativo e bastante eficaz na prática da negociação coletiva tendo como base a organização por local de trabalho (as comissões de fábrica). O SMABC é enraizado nas fábricas e isso é uma singularidade local construída historicamente pela negociação e luta operária. Poucos sindicatos têm essa base nos locais de trabalho.
IHU On-Line – A partir das novas relações de trabalho, podemos identificar ainda uma solidariedade entre classes? O que pesa mais diante das negociações trabalhistas em nossos dias?

Giovanni Alves – As novas relações de trabalho nascem constrangidas pela realidade da crise estrutural do capital que pressiona as empresas a inovarem vorazmente visando garantir melhores custos de produção e pressiona os sindicatos a renunciarem à ideologia da luta de classes e assumirem o sindicalismo propositivo e de colaboração de classes. Visando preservar suas bases, muitos sindicatos aderem de modo pragmático à nova realidade da concorrência capitalista, aproximando-se do horizonte ideológico das empresas. Fazem greve, mas por empresas, evitando politizá-las, isto é, generalizá-las e dar-lhes um conteúdo político-ideológico da luta de classes.
A luta sindical tornou-se mais amesquinhada pelo economicismo, em parte devido às próprias condições da ofensiva do capital na produção que reduziu o poder de barganha de muitos sindicatos; muitas vezes também as novas condições da acumulação capitalista, a acumulação flexível, colocam imensas dificuldades para a negociação coletiva nos termos da preservação da consciência de classe, fazendo com que sindicalistas com baixa formação político-intelectual sucumbam à mediocridade geral, tornando-se meros gestores da força de trabalho e dos negócios capitalistas.
O sindicalismo brasileiro – tal como ocorre na maioria dos países capitalistas – não está preparado para aquilo que David Harvey intitulou “condição pós-moderna”. O que significa que se fecharam no burocratismo, neocorporativismo e pragmatismo venal, amesquinhando mais ainda a luta sindical (que Lenin denominava de “luta cinzenta”). Este fechamento do horizonte ideológico do sindicalismo muitas vezes fez os sindicatos tornarem-se eficazes tecnicamente na negociação coletiva, mas em detrimento da sua capacidade moral-política de formação da consciência de classe. O que pode ser constatado pelo desprezo pela formação sindical com caráter político-ideológico. O caso exemplar é a CUT que adotou o discurso da cidadania (sindicato-cidadão) e deixou de lado o discurso da classe trabalhadora como sujeito protagônico da construção de uma sociedade sem exploradores e explorados.
Mas, como dizemos, a crise da CUT é a crise do PT. Não adianta responsabilizar o sindicalismo pela crise do intelectual orgânico de classe. Na época de crise estrutural do capital, a renúncia do sindicalismo à formação da consciência de classe é deveras muito perversa, pois o que a história está cada vez mais mostrando é que não existe futuro com o capitalismo. Entretanto, caso não seja construído o sujeito histórico-político de classe capaz de negar o estado de coisas existentes, por meio de um processo de democratização radical da sociedade, a crise capitalista só tenderá a aprofundar mais ainda a barbárie social como modo de reprodução do capital em sua etapa de crise estrutural.

IHU On-Line – O que é o “trabalho ideológico” e como ele pode ser medido, mensurado, avaliado?

Giovanni Alves – Apresentei o conceito de “trabalho ideológico” no meu novo livro – intitulado Dimensões da precarização do trabalho (Práxis, 2013). O trabalho, como categoria ontológica fundante (e fundamental) do ser social, é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em movimento séries causais; como disseVygotsky, ele implica tanto instrumentos quanto signos, elementos de mediação das posições teleológicas compositivas do processo de trabalho (Lukács diria: posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias).
Todo trabalho humano, incluindo o trabalho ideológico, implica a articulação de instrumentos e signos. Entretanto, no caso do “trabalho ideológico”, os signos tornam-se essenciais para a realização da posição teleológica secundária: por isso a ação sobre outros homens. Na medida em que se desenvolve a sociedade de serviços e amplia-se a escala dos conflitos sociais, o trabalho ideológico, formado por posições teleológicas secundárias, constitui hoje amplamente a esfera das ocupações profissionais vinculadas à reprodução e controle social.
O trabalho ideológico constitui a natureza material de diversas ocupações profissionais no interior da divisão social do trabalho. Por exemplo, ele caracteriza o trabalho de formação e informação (professores e jornalistas), o trabalho de regulação e normatividade (juízes e policiais), o trabalho de convencimento (publicitários), o trabalho do cuidado (médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais), etc. O trabalho ideológico das profissões vocacionadas exige, do homem-que-trabalha, cuidado, abnegação e doação (como, por exemplo, o trabalho do formador ou o trabalho assistencial). Finalmente, enquanto modalidades de trabalho assalariado no setor privado ou no setor público, elas são regidas pela lógica do trabalho abstrato, subsumindo-se diretamente ou por derivação, aos parâmetros de produtividade. O que significa que, na sociedade do capital, o trabalho ideológico impregna-se da lógica do trabalho estranhado.
Na medida em que a forma material do trabalho ideológico impregna-se da forma social do capital, caracterizada pelo trabalho estranhado, constitui-se uma implicação subjetiva de natureza perversa. O que explica, de certo modo, o crescimento do adoecimento laboral, principalmente transtornos mentais, nas categorias de trabalhadores assalariados vinculados ao “trabalho ideológico”. Devido à sua forma de ser (trabalho imaterial), o trabalho ideológico como trabalho concreto é recalcitrante à quantificação e às medidas da lei do valor. Ele não pode ser medido ou avaliado de acordo com a “régua” da lei do valor. De forma arbitrária, o capital utiliza para avaliar a produção da “saúde” ou “educação, a mesma régua que avalia a produção de carros e salsichas”. Na verdade, os critérios de produtividade do “trabalho ideológico”, imbuídos do produtivismo capitalista, são meros simulacros próprios da época do capitalismo fictício, um capitalismo descolado da própria objetividade da lei do valor-trabalho (que o diga a predominância, hoje, do capital fictício).
Na verdade, como explico no livro, esta é uma das naturezas da crise do capital: a desmedida do valor, tendo em vista que muitas atividades de serviços capitalistas que implicam “trabalho ideológico” não se adequam materialmente à forma social do capital. É o típico caso de inadequação da forma material à forma social do valor, elemento crucial da crise de valorização nas condições da crise estrutural do capital.
IHU On-Line – O que marca as novas formas de controle sobre os trabalhadores contemporâneos? Quais os desafios se considerarmos um controle sobre a subjetividade do trabalhador?

Giovanni Alves – As novas formas de controle sobre os trabalhadores contemporâneos são marcados pelo “espírito” dotoyotismo, conceito tratado por mim no livro Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011). Não se trata meramente de dispositivos organizacionais próprios do modelo japonês, mas sim de uma pletora de valores-fetiches que impregnam o metabolismo social do trabalho estranhado nas condições da acumulação flexível.

O “espírito” do toyotismo caracteriza-se então pela “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelas disposições estranhadas do capital. É a lógica da gestão hegemônica não apenas na indústria, mas nos serviços e administração pública, que articula novas modalidades de remuneração baseada em cumprimento de metas e jornada de trabalho flexível, além de uma crescente carga ideológica nos treinamentos que assumem mais um caráter psicológico-comportamental do que técnico-profissional.
Na verdade, os treinamentos das empresas atuam mais sobre o trabalho vivo do que sobre a força de trabalho: treina-se hoje nas empresas mais para se manipular e conformar o operário ou empregado na linha da “autoajuda” empresarial, incutindo-lhes valores-fetiches do capital; do que para formar tecnicamente e operacionalmente a força de trabalho. Ao mesmo tempo, pari passu ao ambiente do “trabalho em equipe” e a proclamação da ideologia da colaboração, disseminam-se, nos novos locais de trabalho reestruturados, formas perversas de pressão psicológica que os gestores fazem sobre o trabalho vivo (o assédio moral).
No plano do mercado de trabalho, as novas formas de contratação flexível que se disseminam fecham o cerco sobre a subjetividade do trabalhador assalariado na medida em que contribuem para a dessubjetivação de classe, tendo em vista que são os trabalhadores precarizados, trabalhadores assalariados em geral pouco organizados, que perdem o referencial coletivo do em si da classe, ocorrendo, desse modo, a subordinação total da individualidade pessoal à condição de “classe” ou condição de proletariedade.
IHU On-Line – Como ocorre a articulação entre mente e corpo do homem-que-trabalha no século XXI?

Giovanni Alves – Como salientei acima, a ideia de “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pressupõe uma nova articulação entre mente e corpo, muito mais sofisticada do que aquela que havia na época do fordismo-taylorismo. Por isso, a vigência da lógica do toyotismo como “espírito” intelectual-moral da gestão capitalista. Com as novas tecnologias de base informacional e a crise estrutural do capital, que produz contradições insanas no plano da produção e reprodução do valor, as estratégias de gestão capitalista baseiam-se cada vez mais no envolvimento do trabalho vivo na produção do capital. É uma perversa ironia da história que o capitalismo da grande indústria, que “negou” o lugar do trabalho vivo na produção de valor, seja obrigado a repô-lo contraditoriamente nas novas condições do desenvolvimento capitalista e produção do capital. É por isso que estamos numa nova forma social de produção do capital que eu denomino (no meu livro chamado Dimensões da precarização do trabalho) de “maquinofatura”.

A “maquinofatura” é a forma social no interior da qual o capital, em sua etapa de crise estrutural, reproduz suas candentes contradições. Portanto, a maquinofatura, como a manufatura e a grande indústria, não é apenas um “modelo” de organização da produção de mercadorias, mas principalmente um modo de controle estranhado do metabolismo social e, portanto, de articulação entre mente e corpo. É uma forma de produção social no interior da qual ocorre o desenvolvimento da produção do capital. É a vigência da terceira forma de produção do capital (a maquinofatura) que explica, por exemplo, a presença enquanto momento predominante da reestruturação produtiva do capital, da “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha e das novas formas de estranhamento que dilaceram o núcleo humano-genérico.
Nesse caso, o capital atinge seu limite radical, isto é, o capital atinge a sua própria raiz, o homem, ou melhor, as relações sociais no sentido da constituição/deformação do sujeito histórico como homem-que-trabalha. O toyotismo como ideologia orgânica da produção de mercadorias surgiu no seio da maquinofatura, na medida em que a “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelo capital tornou-se seu nexo essencial. O capitalismo manipulatório inaugura a era da maquinofatura como derivação lógica (e ontológica) da grande indústria.
Ao mesmo tempo, a epidemiologia laboral nas condições históricas da maquinofatura caracteriza-se pelo predomínio do adoecimento da mente, na medida em que o que está sob tensão é (como na manufatura) o homem integral. Entretanto, enquanto na manufatura o que está posto é o homem como força de trabalho, na maquinofatura o que está posto em questão é o homem como trabalho vivo. Nas condições do capitalismo manipulatório opera-se de modo radical a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria – e pior: ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da forma-mercadoria.
 Por Graziela Wolfart

Relatório de 1968 que mostra extermínio de aldeias é encontrado

liga operária
http://www.ligaoperaria.org.br/1/?p=4216#more-4216


Relatório de 1968, supostamente desaparecido, relata extermínio de aldeias inteiras, envenenamentos, torturas e assassinatos praticados pelo próprio Estado. Violações denunciadas no Relatório Figueiredo ainda são desconhecidas. Expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros investigando violações de direitos humanos em 130 postos indígenas. Foram recuperadas mais de 7 mil páginas do documento.
Documento dado como desaparecido durante mais de 40 anos retrata realidade da década de 1960 (Reprodução)
Documento dado como desaparecido durante mais de 40 anos retrata realidade da década de 1960
 Belo Horizonte — Depois de 45 anos desaparecido, um dos documentos mais importantes produzidos pelo Estado brasileiro no último século, o chamado Relatório Figueiredo, que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) —, ressurge quase intacto. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais.
 Em uma das inúmeras passagens brutais e revoltantes do texto, a que o Estado de Minas/Correio teve acesso com exclusividade, um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.
Grupo de manifestantes queria marcar audiência com Dilma Rousseff, mas foi barrado na entrada. A presidente estava em viagem para Lima  (Antonio Cunha/ Esp.CB/ D.A Press)
Grupo de manifestantes queria audiência com Dilma Rousseff, mas foi barrado na entrada.
Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno –, o texto, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, mostra a ação genocida e impune do Estado brasileiro. o relatório ressuscita incontáveis atrocidades e poderia se tornar agora um trunfo para a Comissão da Verdade, que deveria apurar violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, mas que, em conluio com o governo FMI-Dilma,  segue tentando ocultar os crimes do regime militar.
A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Jader de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes, propuseram a investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram com a crueldade e a bestialidade de agentes públicos. Ao final, no entanto, o Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça. Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33 pessoas do SPI e a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas foram inocentadas pela Justiça.
Os únicos registros do relatório disponíveis até hoje eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para detalhar o que fora constatado por Jader e sua equipe. A entrevista teve repercussão internacional, merecendo publicação inclusive em jornais importantes como o New York Times. No entanto, tempos depois da entrevista, o que ocorreu não foi a continuação das investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de função, numa tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do mesmo ano, o governo militar baixou o Ato Institucional nº 5, restringindo liberdades civis e tornando o regime mais rígido.

Impunidade
O vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem descobriu o conteúdo do documento. Ele afirma que, antes de ser achado, o Relatório Figueiredo já havia se tornado motivo de preocupação para setores que estão possivelmente envolvidos nas denúncias. “Já tem gente tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter lido”, acusa.
“É espantoso que exista na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça”, lamentava Figueiredo em uma das páginas recuperadas por Zelic. Em outro trecho contundente, o relatório cita chacinas no Maranhão, em que “fazendeiros liquidaram toda uma nação, sem que o SPI opusesse qualquer reação”.
Um dos trechos mais dramáticas descritos pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1968 é a que narra sua passagem por Guarita, no Rio Grande do Sul, área da 7ª Inspetoria do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), quando ele se deparou com duas crianças indígenas em péssimo estado de saúde. “Em Guarita (IR-7-RGS), seguindo uma família que se escondia, fomos encontrar duas criancinhas sob uma moita tendo as cabecinhas quase completamente apodrecidas de horrorosos tumores, provocados pelo berne, parasita bovino”, ele escreveu no documento que entraria para a história com seu nome: Relatório Figueiredo. Sua expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros investigando violações de direitos humanos em 130 postos indígenas.
O relatório por ele elaborado, desaparecido por 45 anos, foi encontrado em caixas guardadas no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Matéria publicada ontem pelo Estado de Minas/Correio mostrou como um pesquisador de São Paulo se deparou com a papelada produzida pela investigação feita a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, que, até então, acreditava-se que houvesse sido destruída em um incêndio no Ministério da Agricultura.
Foram recuperadas mais de 7 mil páginas do documento, produto da expedição comandada por Figueiredo, incluindo as 62 páginas pertencentes ao relatório final, entregue a Albuquerque Lima em 1968. Os únicos registros remanescentes eram reportagens feitas a partir de uma entrevista concedida pelo procurador em março daquele ano, com repercussão internacional.
Fazendeiros ocuparam ilegalmente milhares de hectares de terras indígenas e expulsaram o povo Kadweu
Documentos relatam massacres, torturas, invasões de terras e outras agressões ocorridas nos anos 1960 (Fotos: Marcelo Zelic/ Divulgação)
Documentos relatam massacres, torturas, invasões de terras e outras agressões ocorridas nos anos 1960

Passados 50 anos de uma batalha sangrenta entre fazendeiros locais e índios Kadweus do sul de Mato Grosso, uma pergunta inquietante ressuscita com o recém-redescoberto Relatório Figueiredo, que apurou em 1968 chacinas de tribos e torturas em índios de todo o país. O que aconteceu? Documento produzido pela Associação de Criadores de Sul de Mato Grosso em 5 de janeiro de 1963 e anexado à extensa investigação feita pelo procurador Jader de Figueiredo para o Ministério do Interior relata pedido do mais famoso líder da repressão do Estado Novo de Getúlio Vargas, o então senador Filinto Müller, que rogava para que o general comandante da 9ª Região Militar fosse informado do conflito armado. Müller afirmou que trataria pessoalmente da situação com a direção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), reportadamente suspeito, segundo Figueiredo em seu relatório, revelado pelo Estado de Minas/Correio.
 As terras do povo Kadweus, 374 mil hectares em um local chamado Nabileque, foram usurpadas, deles, assim como ocorreu com áreas de diversas outras tribos. Segundo aponta o inquérito de 7 mil páginas que era tido como desaparecido em um incêndio no Ministério da Agricultura, os terrenos foram dados a eles por dom Pedro II, pela participação decisiva que tiveram na Guerra do Paraguai. No entanto, ele diz em outro trecho do texto, elas “foram invadidas por poderosos fazendeiros e é muito difícil retirá-los um dia”.
 
 Fonte: jornal Estado de Minas e Correio Braziliense
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Felipe Canêdo
Dias 19, 20 e 21/4/2013
 Leia mais:

Palestra de Marcelo Zelic (Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e Coordenador do projeto Armazém Memória)

 

Povos Indígenas e Ditadura Militar: Subsídios à Comissão Nacional da Verdade 1946-1988

 
Tribunal Popular da Ditadura - XXXI Encontro Nacional dos Estudantes de História - São Paulo, 16/07/2012 – Unifesp
Gostaria de agradecer a todas e todos que organizaram este Tribunal Popular da Ditadura como parte da programação do XXXI Encontro Nacional dos Estudantes de História, no ano em que se completam 25 anos da Federação do Movimento Estudantil de História. A pronta acolhida pelos organizadores da sugestão de inclusão da questão indígena como um caso a ser desvelado e julgado, vem reforçar as entidades que estão propondo a inclusão deste tema na Comissão Nacional da Verdade, bem como aprofundar os vínculos do movimento estudantil de história com a luta pelos direitos humanos e contra a impunidade no Brasil.
Tema tão importante e ao mesmo tempo tão esquecido, distante, quando não, desconhecido, guardado a sete chaves e muitas vezes transformado em tabu, com profundas ressonâncias nas populações atingidas até hoje. Se o esquecimento das violências passadas é uma constante em nossa história, o que se passa com a memória relativa às violações dos direitos dos indígenas brasileiros permanece dispersa, desaparecida, escondida e em profundo silêncio, garantindo a impunidade destes fatos e promovendo situações que nos geram profunda tristeza até hoje.
O que aconteceu com os índios no período abrangido pela Comissão Nacional da Verdade? Como foram suas vidas entre 1946 e 1988? Que povos sofreram violências? Quais tipos de violência sofreram? Qual o número aproximado de mortos? Houve Desaparecidos? Quantos foram presos? Quantos torturados? Quem foram os agentes do estado brasileiro que praticaram tais violações contra os direitos humanos e a pessoa do índio? Quais setores da sociedade estavam envolvidos? Houve genocídio? Quem se beneficiou destes atos? Durante a ditadura militar de 1964-1985 os casos se intensificaram? Que consequencias tiveram as políticas de desenvolvimento dos governos militares para os povos originários?
Estão envolvidos em colaborar com o esclarecimento destas questões as entidades Associação Juízes para a Democracia[1], Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Grupo Tortura Nunca Mais-SP e o site Armazém Memória, que atendendo ao questionamento do Blog Resistência Indígena Continental, iniciamos pesquisa no sentido de sistematizar subsídios que instruam casos a serem encaminhados à Comissão Nacional da Verdade e articular com e na sociedade um estudo colaborativo para o desenvolvimento deste trabalho.
Concordamos com Rose Nogueira, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP quando aponta a necessidade de termos sub-grupos temáticos:
(…) a posição do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo tem sido, desde o começo das discussões sobre a Comissão da Verdade e Justiça, que se investigue os crimes da ditadura contra todos os brasileiros perseguidos. Não esquecemos que os povos indígenas também passaram por isso, como tantos outros brasileiros. Pensamos que a Comissão da Verdade e Justiça deva ter sub-comissões para levantar e pesquisar cada assunto específico.”[2]
Outras vozes se levantam também pela inclusão deste tema na Comissão da Verdade, em entrevista dada ao Instituto Humanitas Unisinos[3] e publicada em seu site, Egydio Schwade[4], ex-secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, apresenta o caso dos Waimiri-Atroari apontando 2.000 índios e índias de todas as idades desaparecidos. Diz ele:
“Levantei essa questão porque os índios Waimiri-Atroari são desaparecidos políticos, como os demais que desapareceram no rio Araguaia. Eles desapareceram porque resistiram contra os projetos do governo militar. Pelo que estou escutando nos últimos dias, parece que está se formando finalmente a Comissão Nacional da Verdade e ela está decidida a considerar essa perspectiva também. Estou falando sobre os Waimiri-Atroari, mas têm muitos outros povos que foram massacrados de forma semelhante. Por exemplo, os Paracanã em função da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, no estado do Pará.
Entre 1967 e 1977, o governo militar construiu a BR-174, a estrada Manaus – Boa Vista, ou Manaus – Caracaraí, como é conhecida. … … Nessa época, iniciou-se uma estratégia para evitar a entrada de pessoas que pudessem manter contato com os índios e diálogo direto. O governo não queria que pessoas que pudessem escutá-los tivessem contato com eles. Na época, eu era secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário Nacional – Cimi e nós pedimos, numa das primeiras assembléias na Amazônia, realizada em Belém, em 1975, que o governo suspendesse imediatamente a construção da BR-174 para que houvesse contato pacífico com os índios. Mas o governo não aceitou.
Nenhum jornalista, missionário ou integrante do Cimi e de outras entidades do movimento popular que pudessem resistir ou manifestar uma posição a favor dos índios tinha acesso às terras dos Waimiri-Atroari. A legislação oficial era violada pelo próprio governo.
Por conta da posição do governo, iniciou-se um conflito cada vez mais acirrado. A notícia que se tem é de que muitos indígenas foram mortos, uns com napalm, outros eletrocutados, ainda outros com armas de fogo. E a FUNAI não só sabia da violência dos militares contra os índios, mas até participou de reunião com o 6º Batalhão de Engenharia de Construção – BEC onde foi decidido o uso de armas de fogo, dinamite, metralhadoras e de granadas.
Inclusive um funcionário da Funai, Sebastião Amâncio, ao ser nomeado como encarregado da Frente de Atração Waimiri-Atroari em substituição a Gilberto Pinto, morto durante o último massacre dos índios contra funcionários da FUNAI, em entrevista ao jornal O GLOBO, em 5 de janeiro de 1975, disse que mudaria a estratégia de atração da FUNAI. Disse que faria uma demonstração de força dos civilizados, mediante o uso de dinamite, granadas e bombas de gás lacrimogênio, exatamente como determinava o documento secreto elaborado dois meses antes, entre o 6º. BEC e a FUNAI. Os índios tinham que aprender uma lição que os impedisse de matar os civilizados. Havia toda uma estratégia do governo para evitar que os massacres dos militares contra os indígenas chegassem à opinião pública. Por isso, entre 1967 e 1977, eles proibiram a entrada de pessoas fora dos quadros oficiais na área indígena.
No dia 9 de maio, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados realizou, por iniciativa da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), uma audiência pública para tratar do caso dos Waimiri-Atroari. Egydio deu aí seu depoimento[5] e alguns dias depois foi instalada a Comissão da Verdade do Amazonas, evento que ocorreu no auditório Rio Negro, do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas. “O professor Paulo Monte finalmente pode tornar público os documentos que possui sobre o massacre dos Waimiri-Atroari, e que tem servido como orientação para estudos daquele período dramático da vida da república.”[6]
Vários outros casos começam a ser sistematizados e muitos outros estão por ser sistematizado e vão de encontro às denúncias feitas por Egydio Schwade sobre a existência de muitos outros povos, além dos Waimiri-Atroari, a sofrerem violências durante a ditadura militar.
Apresento inicialmente alguns poucos casos do estudo empreendido, que desenvolve hoje 5 eixos iniciais de pesquisa e que aponto abaixo para conhecimento:
● Eixo 1: Discurso de Deputados e Senadores – Objetivo: Mapear denúncias de violações de direitos humanos dos índios feitas no Congresso Nacional pelos deputados e senadores.
● Eixo 2: Comissões de Investigação do Estado Brasileiro – Objetivo: Localizar a íntegra da documentação produzida e sistematizar os casos e informações que contenham violações aos direitos humanos dos índio no período 1946-1988.[7]
○ Comissão Parlamentar de Inquérito do Serviço de Proteção do Índio – SPI (1962-1963)
○ Comissão de Inquérito do Ministério do Interior – Relatório Figueiredo (1968)
○ Comissão Parlamentar de Inquérito do Índio (1968)
○ Comissão Parlamentar de Inquérito do Índio (1977)
● Eixo 3: Cadeias e Guarda Rural Indígena (GRIN) – Objetivo: Apurar as violências praticadas nas cadeias para indígenas criadas pela FUNAI em Minas Gerais, sob responsabilidade da Polícia Militar deste estado e o ensinamento de pratica de tortura à Guarda Rural Indígena formada em 1969 e suas consequencias.
● Eixo 4: Casos de Conflito que envolvem as FFAA e órgãos do Estado – Objetivo: Organizar uma cronologia de casos e documentação reunida por caso.
○ Caso Waimiri-Atroari – conflito construção de estrada, hidrelétrica e mineradora.
○ Caso Arara do Pará – conflito construção de estrada.
○ Caso Xavantes do Mato Grosso – remoção forçada.
● Eixo 5: Casos de Conflito decorrentes da política de desenvolvimento aplicada pelo Estado – Objetivo: Organizar uma cronologia de casos e documentação reunida por caso.
○ Caso Cinta-Larga
○ Caso Gorotire
No momento estamos trabalhando com os eixos 1, 2 e 3, visando mapear as denúncias e classificá-las nos eixos 4 e 5, porém o fato da pesquisa se encontrar em estado inicial não impede que apresentemos neste Tribunal Popular da Ditadura alguns fatos, que demonstrarão de forma incisiva a necessidade de criação de um eixo temático na Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de investigar os casos sofridos pelos Povos Indígenas do Brasil nos anos de sua competência.
Inúmeros casos estão apontados nos documentos do Congresso Nacional publicados no Diário Oficial, como exemplo apresentamos a Resolução da Câmara dos Deputados nº 65, de 1968, que “cria Comissão Parlamentar de Inquérito para estudar a legislação do indígena, investigar a situação em que se encontram as remanescentes tribos de índios no Brasil, e propor diretrizes para a política indigenista do Brasil.” Este documento, assinado por muitos deputados, em sua justificativa apresenta a denúncia a seguir:
“Jamais, talvez, os militares que dirigiram o SPI, em especial o Major Luís Vinhais, sequer leram qualquer obra de Antropologia ou Etnologia, estudo aliás, desnecessário para quem, como esse major, se entregou à tarefa de exterminar, pela inoculação deliberada de varíola, duas tribos Pataxó, e de desviar um bilhão de cruzeiros daquele Serviço.” [8]
Luis Vinhas Neves, Major Aviador, vinculado ao Ministério da Aeronáutica, foi nomeado diretor do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) logo após o golpe de março de 1964, substituindo o sanitarista Noel Nutels e foi denunciado em 1968 no Relatório produzido pelo Procurador Geral Jader Figueiredo Correia, presidente da Comissão de Inquérito do Ministério do Interior, sendo encaminhado ao Ministério da Justiça o Aviso nº 257/10-04-1968, solicitando abertura de inquérito policial que em 16/04/1968 estava em andamento no Departamento de Polícia Federal sob nº 10.055/68, junto a outros 23 processos[9], de um total de 134 implicados[10], ou 300 segundo outras fontes.
Diferentemente do Relatório publicado no Diário Oficial da União de 10/09/1968[11] (pag 22 a 28), que somente trouxe os fatos relativos à investigação administrativa sobre a corrupção praticada pelos agentes do SPI, em março de 1968, durante uma coletiva de imprensa, no próprio Ministério do Interior, o Procurador Geral Jader Figueiredo Correia, presidente da Comissão de Investigação do Ministério do Interior, expõe fatos registrados nas 5.150 páginas do relatório produzido em quase 1 ano de trabalho, contendo 21 volumes, que denunciaram graves violações de direitos humanos, que ficaram registradas em jornais nacionais e na imprensa internacional. O Relatório Figueiredo encontra-se desde o AI-5 desaparecido. É papel da Comissão Nacional da Verdade localizar este documento ou reconstituir estas informações.
O jornalista Pinheiro Junior assina matéria em 21/04/1968 intitulada “Funcionários do SPI não ignoravam a Chacina – III” e publicada na Folha de São Paulo onde cita várias denúncias feitas pelo Procurador Geral, destacamos algumas abaixo:
O jornal alemão Dier Spiegel de Hamburgo, publica fotografia reproduzida em relatório produzido pela Indigena, INC e American Friends of Brazil, com fotografia de índia Cinta-larga assassinada no Mato Grosso, retratando uma das inúmeras chacinas ocorridas contra este povo, que foi vitimado para tomada ilegal de suas terras e riquezas, para a agricultura e criação de gado, bem como a exploração de diamantes. Sobre estes fatos, em 1966 o deputado Oswaldo Zanello da ARENA/ES, aponta a origem da foto, publicada no jornal O Globo, a partir de denúncias feitas pelo padre Waldemar Weber. Destaco:
Em abril de 1968 o Deputado Paulo Macari registra em discurso a denúncia feita pelo pastor Wesley Blevens de que “é de conhecimento público que os índios estão sendo exterminados a tiros e com açúcar contaminado com o vírus da varíola e do tifo” e que os índios Beiços-de-Pau estão sendo dizimada a tiros por um funcionário da SUDAM, que já cortou 30 mil hectares de mata e por caçadores que usam o açúcar envenenado.[12]
Inúmeros são os crimes a serem apurados contra os índios brasileiros, mas para não me estender, termino reiterando a importância de desvelarmos esses fatos. Tornarmos público a toda a nação também as graves violações contra os índios do Brasil, que tiveram suas aldeias atacadas, seus corpos infectados, sua população reduzida de forma drástica neste período, a ponto de vir ao Brasil uma Comissão da Cruz Vermelha para “apurar” as denúncias de genocídio que correram o mundo.
As cadeias indígenas é um assunto que precisa ser esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade. O Centro de Reeducação Indígena Krenak, localizado na área demarcada para os índios Krenák, no vale do rio Doce, em Minas Gerais, “foi implantado sob a administração do Capitão Manoel Pinheiro, da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, e para lá eram enviados os indígenas que opunham resistência aos ditames dos administradores de suas aldeias ou eram considerados como desajustados socialmente. No Presídio eram mantidos em regime de cárcere, sofrendo repressões, como o confinamento em solitária e castigos físicos em casos de insubordinação. Eram-lhes impostas atividades na agricultura durante o dia, sob forte vigilância de soldados da Polícia Militar de Minas Gerais e dos índios agregados à Guarda Rural Indígena (GRIN), também fundada pelo Capitão Pinheiro. A Guarda era composta por índios que Pinheiro definia como de “excepcional comportamento”, devidamente treinados e fardados, e encarregados de mantera ordem interna nas aldeias, coibir os deslocamentos não autorizados, impor trabalhos e denunciar os infratores ao Destacamento da Polícia Militar.”[13]
Quem são os indígenas presos nesta instituição? Quantos foram? O que passaram aí? Que violências sofreram? Qual era a cadeia de comando que sustentava estas barbaridades? Na imprensa há denúncias de abusos, violências e torturas praticadas nesta instituição, como também na que a sucedeu com a transferência de índios, presos e a GRIN para a Fazenda Guarani de propriedade da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. O Jornal do Brasil em matéria publicada em 27/08/1972, quando a FUNAI já estava sob comando do General Bandeira de Melo, faz uma introdução como que a justificar a ausência do nome do autor da matéria:
Deste modo estamos aqui para pedir a condenação do estado Brasileiro pelos massacres cometidos contra os povos indígenas do Brasil durante os anos de 1946-1988, por ação ou omissão, ou até conivência e que a Comissão Nacional da Verdade crie um sub-grupo temático para averiguar estas e outras tantas denúncias que estão em fase de compilação.
Em 12/06/2012 foi realizada reunião no escritório regional da Presidência da República com os membros Paulo Sérgio Pinheiro, Rosa Maria Cardoso da Cunha, José Carlos Dias e 5 assessores da Comissão Nacional da Verdade, onde parte destas denúncias foram apresentadas por representantes das entidades citadas acima[14].
Convidamos aos estudantes de História presentes a este XXXI ENEH e àqueles que participam do Movimento de Estudantes de História no país, a engrossarem fileiras junto às entidades que realizam este estudo, para desenvolvermos uma rede colaborativa de pesquisa, localização de documentos e sistematização das violações dos Direitos Humanos dos Índios brasileiros, de forma a fortalecermos mecanismos de participação, conscientização e não-repetição destes massacres, assassinatos, genocídios contra nossa população originária.
Conclamamos aos jurados a deliberar pelo encaminhamento de moção à Presidência da República e aos membros da Comissão Nacional da Verdade no sentido de que seja criado esse eixo temático, conforme deliberação deste Tribunal Popular da Ditadura.
Em memória dos índios vítimas de assassinatos seletivos, massacres, chacinas, desaparecimentos forçado, abandono e fome, dedicamos este trabalho, lembrando-os na luta dos caciques mártires da resistência indígena brasileira Marçal Guarani, Ângelo Kretân, Chicão, Orides Belino Correia da Silva e Nízio Gomes, para fatos como os vividos sejam conhecidos e Nunca Mais aconteçam.
Sem mais, atenciosamente;
Marcelo Zelic
Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do projeto Armazém Memória.
[1] Recentemente lançou a campanha de apoio, através do Manifesto: Eu Apoio a Causa Indígena que pode ser acessado em:http://www.ajd.org.br/documentos_ver.php?idConteudo=114
[2]http://resistenciaindigenacontinental.blogspot.com.br/2012/04/povos-nativos-e-ditadura-militar.html
[3] w.ihu.unisinos.br/entrevistas/508652-waimiri-atroari-desaparecidos-politicos-entrevista-especial-com-egydio-schwadeww
[4]http://urubui.blogspot.com.br/2011/02/2000-waimiri-atroari-desaparecidos-na.html
[5] Veja a parte inicial de seu depoimento no Youtube:http://www.youtube.com/watch?v=73kUR_beRPM
[6] Citação feita:http://www.youtube.com/watch?v=9Q4WpBAu3-A
[7] Será necessário digitalizar e indexar a documentação reunida.
[8] Íntegra da Resolução 65 de 1968.http://www2.camara.gov.br/legin/fed/rescad/1960-1969/resolucaodacamaradosdeputados-65-20-marco-1968-320213-publicacaooriginal-1-pl.html
[9] Anexo do relatório de 12 de dezembro de 1969 do CDDPH assinado por Danton Jobim com lista de processados e nº do processo..
[10] Folha de São Paulo 28/03/1968
[11]http://www.jusbrasil.com.br/diarios/3031309/dou-secao-1-10-09-1968-pg-22/pdfView
[12]http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD20ABR1968.pdf#page=16
[13]http://pib.socioambiental.org/pt/povo/maxakali/774
[14] Participaram da reunião Kenarik Boujikian Felippe, Rose Nogueira, Antonio Funari Filho e Marcelo Zelic, onde ficou combinado que o tema seria levado a discussão com os demais membros da Comissão Nacional da Verdade.
http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/comissao-da-verdade-podera-investigar-massacre-de-indios-ocorridos-no-periodo-da-ditadura-militar/