segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Triplica em 2013 número de haitianos ilegais que entram pelo Acre

globo.com
http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/09/triplica-em-2013-numero-de-haitianos-ilegais-que-entram-pelo-acre.html

Triplica em 2013 número de haitianos ilegais que entram pelo Acre

No ano são mais de 6 mil; coordenador de acampamento estima nº maior.
Imigração começou em 2010, após terremoto destruir infraestrutura do Haiti.

Tahiane Stochero e Yuri MarcelDo G1, em São Paulo e do G1 AC
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arte haitianos acre vale este (Foto: Arte G1)
Triplicou em 2013 o número de haitianos que chegaram ilegalmente ao Brasil por Brasileia, no Acre, e tiveram a situação regularizada pela Polícia Federal.
De janeiro até o início de setembro deste ano, o número de haitianos registrados na delegacia da cidade já chega a 6 mil, diz o delegado da PF Carlos Frederico Portella Santos Ribeiro. Em todo o ano de 2012, 2.318 haitianos pediram refúgio ao chegar a Brasileia sem visto.
A cidade acreana, que faz fronteira por terra com o Peru, é a principal porta de entrada de haitianos sem visto no país. Segundo a PF, Tabatinga (AM) também recebe os estrangeiros, mas as dificuldades encontradas por eles para entrar pelo município são maiores devido à necessidade de atravessar o Rio Solimões, fazendo com que o número seja bem menor.
Já a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre diz que antes os haitianos se dividiam em dois grupos ao chegar a Lima: um seguia para o Acre e outro ia até a cidade de Tabatinga. O órgão afirma, no entanto, que essa última rota parou de ser usada há cerca de 8 meses e agora todos chegam apenas pelo Acre.

“O número vem aumentando bastante neste ano. A cada dia tem uns 50 aqui na frente da delegacia”, afirma o delegado Ribeiro. 
O representante da Secretaria de Direitos Humanos do Acre na cidade, Damião Borges, estima um número ainda maior de ilegais. Até 25 de setembro, ao menos 7.200 novos haitianos foram cadastrados no acampamento que os recebe na cidade. Desde 2010, afirma ele, são mais de 10.800.
A imigração ilegal teve início em janeiro de 2010, quando um forte terremoto deixou 300 mil mortos e destruiu grande parte do Haiti, o país mais pobre das Américas. Segundo dados da Agência de Inteligência dos EUA (CIA), a renda per capta no país é de cerca de US$ 3,6 por dia.

Em 2010, após o tremor, a delegacia da PF em Brasileia recebeu 37 haitianos. Em 2011, foram 982.
Só em abril deste ano, foram feitas 1.771 solicitações de visto por parte de haitianos. O governador Tião Viana (PT) decretou, inclusive, situação de emergência em razão da entrada descontrolada dos estrangeiros.

Segundo o delegado, no início do ano, o governo federal montou uma força-tarefa na cidade para acelerar a regularização dos imigrantes ilegais para que eles possam deixar mais rapidamente Brasileia e seguir para o restante do país.
Os haitianos ilegais chegam a Brasileia de ônibus e são orientados a procurar a delegacia da PF solicitando refúgio, preenchendo um questionário no próprio idioma e sendo entrevistados por policiais. A PF expede um protocolo preliminar que os torna "solicitantes de refúgio", obtendo os mesmos direitos que cidadãos brasileiros, como saúde e ensino. Eles também podem tirar carteira de trabalho, passaporte e CPF, sendo registrados oficialmente no país.
Após o registro na PF, a documentação segue para o Comitê Nacional de Refugiados (Conare) e para o Conselho Nacional de Imigração (Cnig), que abrem um processo para avaliar a concessão de residência permanente em caráter humanitário, com validade de até 5 anos.

Oficialmente, os haitianos não são considerados refugiados pela lei brasileira, que entende que o refúgio só pode ser concedido a quem provar estar sofrendo perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas em seu país. Devido ao grande fluxo de haitianos para o Brasil, o governo abriu uma exceção e concede a eles um visto diferenciado, tratando-os de forma diferente que outros imigrantes ilegais.
Mais de 400 haitianos continuam em Brasiléia (Foto: Reprodução TV Acre)Haitianos retiram documentação para ficar no
Brasil (Foto: Reprodução/TV Acre)
Damião Borges, coordenador do acampamento que acolhe os ilegais que ingressam por Brasileia, diz que a quantidade de haitianos que ainda estão chegando em 2013 surpreende.

“Ninguém percebe porque a região aqui é esquecida. A cada dia chegam em média uns 30. Alguns dias mais, outros menos. Com a aceleração do processo de emissão dos documentos, eles saem rápido, seguem para o resto do país para buscar trabalho. Só no último dia 18, foram 76 novos cadastrados que chegaram aqui ao acampamento. Ninguém segue para a PF sem ser cadastrado por nós", relata Damião.
Segundo o Cnig, em 2012, 4.682 receberam visto permanente de residência no país em caráter humanitário. Até junho de 2013, foram mais 870. Os demais processos continuam em andamento.

Rota difícil
Os imigrantes haitianos que chegam ilegalmente ao país saem, em sua maioria, da capital haitiana, Porto Príncipe, e vão de ônibus até Santo Domingo, capital da República Dominicana, que fica na mesma ilha. Lá, compram uma passagem de avião e vão até o Panamá. Da Cidade do Panamá, seguem de avião ou de ônibus para Quito, no Equador.
Por terra, vão até a cidade fronteiriça peruana de Tumbes e passam por Piura, Lima, Cuzco e Puerto Maldonado até chegar a Iñapari, cidade que faz fronteira com Assis Brasil (AC), por onde passam até chegar a Brasileia.
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Haitiano Lyjeannot Verney (Foto: Rafael Fabres/Arquivo Pessoal)Haitiano Lyjeannot Verney deixou família para trás
por oportunidade no Brasil (Foto: Rafael Fabres/
Arquivo Pessoal)
Família para trás
Lyjeannot Verney, de 42 anos, é um dos imigrantes que chegaram ao Brasil por essa rota. Ele deixou o Haiti no último dia 9 de setembro e levou dez dias na viagem até o Acre, deixando para trás a mulher, quatro filhos, a mãe e uma irmã.
"No Haiti está mais ou menos. A República Dominicana tem investido lá, fazendo estradas. Tem trabalho, mas também tem muita gente sem trabalho", conta. Ele diz que tem saudades da família, afirma que a situação no Haiti não está tão ruim como antes, mas revela que busca uma oportunidade melhor no Brasil.
Ele divide com outros 750 compatriotas um abrigo mantido pelo governo do Estado na cidade de Brasileia, distante cerca de 237 km da capital. Verney trabalhava como operário da construção civil e quer pleitear uma vaga no aquecido mercado do país.
Para chegar até o Brasil, ele teve de desembolsar cerca de U$ 500 com "atravessadores", para conseguir passar por algumas cidades peruanas.
De acordo com Damião Borges, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, o valor pago é "até barato" em comparação ao que alguns atravessadores cobram. "Tem imigrante que paga mais de U$ 1 mil", diz.

A luz sobre a escravidão moderna

fotografe uma ideia
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A luz sobre a escravidão moderna
Enviado por Francine de Mattos   
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Nos últimos dois anos, a fotógrafa e ativista Lisa Kristine viajou o mundo registrando a dura e inacreditável vida de pessoas que vivem o que podemos chamar de “escravidão moderna”. A fotógrafa, que já trabalha há 28 anos registrando culturas indígenas em mais de 70 países, foi apresentada ao problema pela ONG Free the Slaves (Libertem os Escravos) em 2009. Em uma conversa com o diretor da ONG, Lisa aprendeu sobre a escravidão e, ao fim, sentiu-se envergonhada por sua falta de conhecimento sobre as atrocidades que acontecem em silêncio pelo mundo. Questionou, então: “Se eu não sei, quantas outras pessoas também não sabem?”.

Estima-se que haja, hoje, mais de 27 milhões de pessoas escravizadas. O número é maior que a quantidade de escravos comercializados vindos da África entre os anos de 1450 e 1900. Essa cruel atividade gera um lucro para os senhores de escravos de mais de 13 bilhões de dólares todos os anos.
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Famílias inteiras são desfeitas na promessa de um emprego, de educação de qualidade e de melhores oportunidades de vida. Viajam na esperança de encontrar dignidade, mas são forçadas a trabalhar 17 horas diárias sem pagamento e sob ameaças de rígida violência, sem o direito do livre arbítrio.

A fotógrafa contou em sua palestra que enquanto fotografava pessoas trabalhando silenciosamente numa olaria na Índia, expostas a temperatura de 50°C e uma densa nuvem de poeira, sua câmera parou de funcionar diversas vezes. A cada 20 minutos, Lisa corria para o carro para limpar e refrigerar seu equipamento no ar condicionado. Sentada lá dentro, observando aquelas pessoas pensou: “Minha câmera está tendo um tratamento bem melhor que estas pessoas.” Contou também que, ao voltar para os fornos, sentiu uma vontade incontrolável de chorar, mas não pôde porque qualquer demonstração de afeto naquela situação só prejudicaria ainda mais a situação dos escravos. 
“No Himalaia, encontrei crianças carregando pedras por milhas abaixo em terrenos montanhosos até caminhões esperando nas estradas. As grandes folhas de ardósia eram mais pesadas do que as crianças que as carregavam, e elas as levavam na cabeça usando correias artesanais de vara, corda e tecido rasgado”, relembra Lisa.
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As muitas histórias contadas e registras por Lisa fazem parte do projeto “Modern Day Slavery”, cujo grande objetivo é lançar uma luz sobre a escravidão. Em campo, Lisa levou imensas velas consigo e, com ajuda do intérprete, transmitiu às pessoas que fotografava o seu objetivo: iluminar suas histórias e sofrimento. Eles sabiam que suas fotografias seriam vistas por todo o mundo.
“Eu realmente acredito que se pudermos olhar uns aos outros como seres humanos companheiros, então irá se tornar muito difícil tolerar atrocidades como a escravidão. Estas fotografias não são de problemas. São de pessoas, pessoas reais, como vocês e eu, e todas merecem os mesmos direitos, dignidade e respeito nas suas vidas."
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Assista a palestra da fotógrafa (Filmado no TEDxMaui)
Lisa Kristine: Fotos que testemunham a escravidão moderna 

 

Conheça mais do trabalho da fotógrafa: 
Lisa Kristine

domingo, 29 de setembro de 2013

Em Luciara, latifúndio sem máscaras

outras palavras
http://outraspalavras.net/blog/2013/09/29/em-luciara-latifundio-sem-mascaras/

Em Luciara, latifúndio sem máscaras

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Numa pequena localidade à beira do Rio Araguaia, emerge a brutalidade dos que se julgam donos do Brasil
Por Taís González e Bruna Bernacchio
Tiros foram disparados contra casas de religiosos. As moradas de dois pequenos agricultores (um deles, também vereador) foram queimadas até a completa destruição. A rodovia MT 100, que dá acesso à cidade, foi bloqueada. Milícias armadas detiveram um ônibus com pesquisadores e estudantes do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e tentaram revistar seus ocupantes. Máquinas foram colocadas na pista de pouso do aeroporto e montaram-se estratégias para evitar a chegada de pessoas pelo rio Araguaia. Entre 20 e 22 de setembro, a pequena cidade de Luciara (2.300 habitantes), no extremo nordeste do Mato Grosso (1160 km. de Cuiabá), viveu de forma concentrada a violência que os grandes proprietários rurais praticam há séculos contra os que resistem a seu poder no campo.
Motivo: um pequeno grupo de fazendeiros quer evitar, à força, a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável no município. A constituição da unidade é proposta do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Visa evitar que se concretize uma ameaça social e ambiental. Há algum tempo, os latifundiários – na verdade “grileiros”, que ocuparam terras públicas – estão avançando sobre os pequenos sítios mantidos, em condições comunais, sustentáveis e de integração com a natureza, por cerca de cem famílias. São os “retireiros do Araguaia”.
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A casa de um líder dos retireiros, devastada pelo fogo
Há mais de um século, desde a colonização de Luciara, caboclos vivem da criação coletiva de gado em Mato Verdinho, uma terra da União na beira do Araguaia. São pequenos ordenhadores, que criam à solta seu gado nas pastagens naturais do cerrado e varjões da região, numa dinâmica de agroextrativismo do capim nativo, de forma extensiva e com pouca alteração da paisagem natural. É uma prática tradicional, adequada às características ecológicas e sociais locais. Nestas áreas, há o espaço do retiro, local de moradia e manejo do gado, organizado individualmente ou em grupo. Nos retiros são construídas casas, piquetes para manejo de gado, currais e cisternas. Varjões, lagos, rios, matas não inundáveis e toda a paisagem é de uso comum.
Há cerca de quinze anos, os caboclos articularam-se e formaram duas organizações: Associação dos Retireiros do Araguaia (ARA), e Associação dos Produtores Rurais do Mato Verdinho (Aprumav), apoiada por professores e alunos da Unemat, que mantém uma unidade em Luciara. Aos poucos, desenhou-se a ideia de instituir a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Trata-se de uma das categorias definidas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Visa preservar territórios onde populações tradicionais têm sua subsistência emsistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais. A reserva, julgam os retireiros, poderá frear o avanço de pecuaristas.
Praia do Araguaia: do outro lado do rio, a Ilha do Bananal
Praia do Araguaia: do outro lado do rio, a Ilha do Bananal
Em 21 de setembro, espalhou-se o boato – depois não confirmado – de que técnicos do ICMBio chegariam à cidade, para iniciar os estudos necessários à criação da RDS. “Tem algumas pessoas, com interesses contrários, disseminando informações erradas de que esses fazendeiros seriam retirados da área. O processo ainda não está pronto, mas precisamos aprofundar esse debate”, disse Fernando Francisco Xavier, representante do instituto no Mato Grosso. Já em 19 de setembro, aliás, os grileiros haviam barrado, segundo a Comissão Pastoral da Terra, dois geógrafos. Tambémbarraram na estrada, por duas vezes, o ônibus da Nova Cartografia Social – umprojeto que estimula os povos amazônicos a se auto-conhecerem e mapearem, como parte do desenvolvimento de suas identidades coletivas. Jagunços queriam revistar o veículo, ameaçaram incendiá-lo e proibiram que fossem tiradas fotografias. Também impediram que o grupo seguisse até São Félix do Araguaia. Os geógrafos e alunos pretendiam realizar uma Oficina de Mapas com os retireiros de Luciara.
A cidade, de 2,6  mil habitantes
A cidade, de 2,6 mil habitantes
A prelazia da cidade, braço da Igreja Católica, também virou alvo porque é “acusada” de apoiar o projeto de reserva. Há alguns meses, padres e líderes comunitários foram ameaçados por grupos ligados aos políticos e fazendeiros da região, contrários à demarcação da Terra Indígena Marãiwatsédé, área ocupada pelos Xavantes até a década de 60. O bispo Emérito de São Félix do Araguaia, D. Pedro Casaldáliga, teve que deixar sua casa após seguidas ameaças de morte realizadas por esses grupos.
Na terça-feira (24/9), a Polícia Federal finalmente chegou ao local. Cumprindo ordem judicial, executou a prisão temporária de dois homens, indiciados pelos crimes de constrangimento ilegal, dano, incêndios e formação de quadrilha. A situação segue tensa em Luciara. Lá, o latifúndio expôs suas garras – mas encontrou resistência.

Aborto: as estranhas razões da proibição

outras palavras
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Aborto: as estranhas razões da proibição

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Que leva a manter, por tanto tempo, uma interdição tacanha? Será apenas o preconceito contra o prazer sexual da mulher?
Por Bia Cardoso, no Blogueiras Feministas | Imagem: François Boucher
Sábado, 28 de setembro, é Dia Latino-Americano de Luta Pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Uma data para marcar ações e manifestações de apoio as mulheres que todos os dias recorrem a métodos ilegais de abortamento em momentos de desespero. Fora as que morrem todos os anos, vítimas de um sistema que condena e demoniza as mulheres por fazerem sexo.
O que vemos atualmente são ofensivas mentirosas e caluniosas, por parte dos setores conservadores, que tentam reduzir a questão do aborto a uma ameaça contra a vida de criancinhas, inclusive criando espantalhos, como na acusação de que o PLC 03/2013, que dispõe sobre o atendimento às vítimas de violência sexual no âmbito da saúde, seria uma tentativa de legalizar o aborto no Brasil. Fora outros tantos projetos de lei que ameaçam direitos já conquistados, como o Estatuto do Nascituro e a ofensiva contra uma reforma progressista do Código Penal brasileiro, que atualmente encontra-se em discussão no Congresso.
O conservadorismo e o obscurantismo do Legislativo brasileiro têm usado o tema para fazer ameaças e chantagens ao Executivo (que tem cedido e se acovardado), caso haja qualquer iniciativa de proposta. No Judiciário, ano passado foi aprovado o direito à interrupção da gravidez em casos de anencefalia, mas não andamos mais que isso. Falar em aborto no Brasil é tabu, assunto controverso, pouquíssimos políticos querem se ver associados ao tema. Há alguns anos vemos essa ofensiva contrária aos direitos reprodutivos crescer.
A vida de quem o Estado e a sociedade estão escolhendo, quando 95% dos abortos feitos na América Latina são inseguros? No Brasil, em 2007, uma clínica que realizava abortos clandestinos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, foi invadida numa operação policial, televisionada em tempo real e transmitida em rede nacional pela TV Morena, afiliada da TV Globo no estado. Os 9.862 prontuários médicos apreendidos na operação, anexados ao processo criminal, ficaram acessíveis à curiosidade popular por quase três meses, violando os princípios constitucionais da privacidade e intimidade. Milhares de mulheres tiveram suas vidas devassadas e expostas publicamente. Atualmente, corre um processo criminal contra as mulheres que supostamente lá abortaram e também contra funcionários da clínica. O primeiro júri aconteceu em 2010.
Em reportagem da Pública – Agência de Notícias, Beatriz Galli, advogada, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da OAB do Rio de Janeiro e assessora de políticas para a América Latina do Ipas, fala sobre o simbolismo dessa ação num momento em que a descriminalização do aborto começava a ser discutida:
O habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública, que falava sobre todas as violações de direitos das mulheres durante a invasão da clínica, a falta de proteção da privacidade das mulheres, o manuseio dos prontuários por pessoas não qualificadas e a exposição dos nomes delas no site do TJ foi indeferido sem decisão de mérito”.
“Foi uma atuação simbólica, houve uma articulação política para começar uma criminalização massiva de mulheres em um momento que a gente começava a discutir a descriminalização do aborto no Brasil”, acredita Beatriz. “A maioria das mulheres fez a confissão para suspensão do processo (o que é previsto para o crime de aborto em troca de algumas condicionantes, como prestar serviço comunitário, em alguns casos, pagar multa, prestar contas ao juiz periodicamente), mas essa confissão revela uma série de desrespeitos processuais. Muita gente nem tinha advogado, não havia provas materiais contra elas. Só existiam os prontuários médicos com informações totalmente vagas. Não haveria base para elas serem realmente julgadas e condenadas” explica a advogada. Referência: Violações marcaram processos contra milhares em MS.
O livro ‘Isoladas – A História de Oito Mulheres Criminalizadas por Aborto’ conta parte dessa história, tendo como objetivo documentar, por meio de depoimentos, a história de seis das quase dez mil mulheres envolvidas no caso, além de duas profissionais que trabalhavam no local.
“Uma das questões presentes nesta documentação é a discussão sobre o estigma social pelo qual as mulheres ficam marcadas. O que isso representa para as suas vidas, como elas lidam com ele, de que forma isso mudou a convivência com a família, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional são algumas das questões que poderão ser vistas a partir dos depoimentos, nos dando a ótica de quem passa pelo abortamento inseguro e como isso atinge o seu dia-a-dia.”
A questão do aborto é sempre estigmatizada, assim como o são as mulheres que abortam ilegalmente. Sim, existem métodos anticoncepcionais, há inúmeras formas de evitar uma gravidez, mas não existem seres humanos perfeitos. Como diz aquela máxima: até médicas ginecologistas engravidam sem querer. Infelizmente, a maioria das pessoas não consegue aceitar esses erros, em grande parte porque significa, na maioria das vezes, que uma mulher fez sexo por prazer. Então, o que as pessoas nos dizem é que não podemos culpar uma “criança” pelo erro de uma mulher. Mas podemos culpar essa mulher e impetrar sobre ela a pena de ser mãe compulsoriamente. Não há escolhas. Pela nossa legislação atual, se alguém decide arriscar a própria vida numa clínica de aborto clandestina, a pena deve ser cadeia. Por ter atentado contra a vida de quem nem existe.
Algumas vezes, as pessoas que abortam clandestinamente tinham o direito de realizar o procedimento legalmente, mas por pouca ou nenhuma informação, dificuldade de acesso, receio de como seria tratada ou a falta de serviços de referência, acabam recorrendo a procedimentos inseguros. O fato do aborto estar associado à criminalidade leva muitas pessoas a clandestinidade nesses casos.
É possível identificar esses fatores nos depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande:
“Eu tenho uma filha de 14 anos e, na época em que eu engravidei da minha filha, eu estava tomando remédio, anticoncepcional, e mesmo assim eu engravidei. Estava namorando uma pessoa, não era bem um namoro, era um conhecimento ainda, e fui a essa clínica para colocar um DIU. Lá, eles pediram para que eu fizesse alguns exames. Fui chamada até a sala da psicóloga e ela me disse que eu estava grávida de três semanas. Na hora eu fiquei desesperada. Minha filha tinha três anos na época. Eu sou mãe solteira, crio ela sozinha, então, para mim, foi um desespero, mais uma criança. Como que eu ia fazer?” (pg. 15)
“Estou começando a cumprir este mês essa pena. É recente. Eu acho muito injusto isso do julgamento porque eles cobram da gente uma postura com a sociedade. Na época que teve essa intimação, eu estava desempregada, como eu já disse, eu tenho uma filha e tenho a minha mãe, então, chegaram épocas na minha casa que a gente não tinha muita coisa, e a sociedade não se preocupa muito com isso. Daí, chega uma opção que eu tenho que fazer na minha vida, com o meu corpo, e aí eu tenho que prestar satisfação à sociedade. E é uma sociedade que me condena e que me dá o que em troca? Eu acho que existe um livre-arbítrio, e que cada um vai pagar, de acordo com os seus atos, então, o Estado, em vez de punir, de incriminar, deveria dar apoio, de ajudar. A política de planejamento familiar não funciona no Brasil. Então, eles não podem cobrar por uma coisa que não funciona. Eles não podem cobrar por uma coisa que eles não oferecem.” (pg. 19)
“O que me levou a fazer foi o seguinte: eu era muito jovem e já era mãe de uma criança recém-nascida. Por descuido meu… fiquei grávida novamente… e resolvi, optei por interromper a gravidez, tendo em vista que eu estava com meu companheiro na época por pressão da família, então, eu não queria persistir numa relação que não ia dar certo, na qual iria ficar amarrada por meio de filho, não achava justo ter mais um filho que os pais estariam separados e que uma filha só que eu já tinha poderia ter boas condições de criar sozinha. Durante essa gestação que foi interrompida, o médico viu, através de ultra-sonografia, que o feto era anencéfalo e tinha problemas de má-formação. Foi categórico quanto à sua perspectiva de vida, que provavelmente iria nascer e sobreviver por pouco tempo, ficar na UTI neonatal, ou ofereceria risco também para mim durante a gestação. Com toda a minha situação de vida e a pouca condição de vida do feto, optei por não ter. Como aqui era de fácil acesso encontrar essa clínica, tinha que passar por uma psicóloga na clínica dela e acertava, então não tinha porque recorrer ao meio judicial, ainda mais porque ia ser demorado.” (pg. 33)
Fala-se muito em vida quando se discute aborto. E, para muitos, colocar a vida de um feto como mais importante que de uma mulher pecadora faz mais sentido. A maioria questiona: por que não evitou a gravidez? Como se todos os métodos anticoncepcionais fossem infalíveis, como se os corpos não reagissem de diferentes maneiras a anticoncepcionais hormonais, como se fosse simples fazer uma esterilização. Como se fôssemos todos seguros de nós mesmos para entrar numa farmácia ou posto de saúde e adquirir camisinhas ou pílulas dos dia seguinte. Os depoimentos dessas mulheres servem também para pensarmos na vida de quem estamos falando.
Frente Nacional Contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto foi articulada por mais de cem entidades, espalhadas por todo território nacional, após esse episódio do Mato Grosso do Sul. Promove diversas ações em prol da descriminalização e legalização do aborto e, lançou em 2010, a Plataforma para a Legalização do Aborto no Brasil. Parece óbvio, mas é importante lembrar que qualquer proposta de legalização do aborto passa também por políticas públicas de planejamento familiar, prevenção da gravidez e direitos reprodutivos. Lembrando que não devem ser restritas apenas as mulheres, mas também devem contemplar todas as pessoas que podem engravidar, como homens trans*, por exemplo.
Então, quando falamos de legalização, não estamos falando de colocar uma “sala de aborto” em cada hospital, para onde as pessoas que recebem um resultado positivo de gravidez seriam prontamente encaminhadas. A proposta é que o Estado brasileiro garanta condições para o pleno exercício dos direitos reprodutivos, oferecendo todas as condições para que as pessoas decidam ter ou não ter filhos.
Lendo os depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande percebe-se o imenso estigma que o tema ainda carrega e a hipocrisia presente. Nos relatos há indícios de que a ação policial preservou a identidade de filhas e parentes de políticos da região. Todas são clandestinas, mas só algumas vão presas, só algumas são identificadas. Mas, muitas morrem todos os anos, especialmente as pobres, muitas vezes negras. A vida de quem o Estado e a sociedade estão escolhendo?