Retireiros do Araguaia
Terra para a Vida, Terra com Paz
Carlos Walter Porto-Gonçalves
"Que se dê uma chance à Paz criando um território de vida e que a violência e a morte só sejam lembradas como memória que aduba a paz e alegria numa terra justa".
Dos Fatos – No dia 18 de setembro passado, quarta feira, a retiro do líder dos retireiros Rubem Sales Taverny do município de Luciara, no vale do Araguaia no nordeste de Mato Grosso, foi criminosamente incendiado. Várias pessoas que apóiam a causa dos retireiros na sua reivindicação pela criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável estão sendo ameaçadas tal como o líder Rubem Salles.
No dia 19 de setembro, quinta feira, os grileiros que se colocam contra a criação da RDS impediram que uma equipe de pesquisadores que se dirigia à região para fazer um trabalho de cartografia social junto com os retireiros pudesse chegar a seu destino na cidade de Luciara. Até o momento em que escrevo essa nota os grileiros se mantém nas imediações do entroncamento do São Bento, conhecido como Pedro Elias, onde funciona o bar Kalicota, onde vêm impedindo o acesso à Luciara de pessoas que contrariam seus interesses. O cunhado do líder Rubem Sales foi impedido de ter acesso à cidade de Luciara.
Na cidade de Luciara todas as pessoas que haviam cedido espaço para a reunião que a equipe de cartografia social faria com os retireiros foram ameaçadas e declinaram de ceder o espaço. O Professor de Geografia, Cornelius Villarinhos, e seus alunos “foram impedidos de chegar à cidade, foram ameaçados, disseram que botariam fogo no ônibus da Universidade; queriam revistar o ônibus; e proibiram de tirar fotografias. Também os proibiram de ir à São Félix do Araguaia. Foram perseguidos/"monitorados"/" guiados" até um posto de combustível e intimados a voltarem à Cuiabá. Agora o professor e os estudantes estão rumando à Ribeirão Cascalheira e estão sendo perseguidos”, conforme mensagem que acabo de receber de pessoa de inteira confiança.
Esses fatos não podem ser entendidos dissociados do contexto maior da região e do país. A Agência de Notícias Reuters noticiava no dia 23 de agosto passado os incêndios criminosos cometidos na reserva Marãiwatsédé dos índios Xavantes que fica a menos de 200 quilômetros de Luciara, no mesmo vale do Araguaia. Segundo a agência Reuters “a reserva Marãiwatsédé se tornou um caso emblemático das crescentes tensões no Brasil entre índios e fazendeiros, que têm explorado novas áreas na esperança de lucrar com a crescente produção de milho, soja e outras commodities nos últimos anos. Centenas de disputas desse tipo estão em curso no país, levando a presidente Dilma Rousseff a intervir para evitar a violência.
No caso da reserva Marãiwatsédé, o governo determinou que cerca de 7 mil residentes não-índios deixassem a área sem indenização, depois de decisão judicial favorável aos índios no ano passado”.
As agências de notícias locais, quase sempre veiculando a perspectiva dos grileiros, fazem com freqüência associação entre o que se passa em Luciara com a criação da RDS do Mato Verdinho e a antiga fazenda Suiá Missu (reserva Marãiwatsédé) que recentemente foi objeto de desintrusão dos não-índios, conforme determinação judicial.
É comum na região os grileiros acusarem a “ação governamental” como a causa de todos os males, especificamente a desintrusão dos não-índios da Suyá Missu e a criação da RDS do Mato Verdinho que vem sendo pleiteada desde 1999 pelos retireiros tendo Rubem Sales à frente dessa iniciativa.
Tudo indica que há uma ação coordenada pelos grileiros na região e que vai exigir uma ação firme por parte do poder público para que não venham ocorrer mais mortes na região revivendo o clima de terror dos anos 1970 e 1980 (quem na região não se lembra do crime das orelhas?). Os fatos acima enunciados indicam o desequilíbrio dos que se consideravam os donos da terra, os donos de poder. Isso porque todos os crimes cometidos pelos grileiros - impedir o livre direito de ir e vir, queimar o retiro do líder retireiro Rubem Sales, impedir o livre exercício do trabalho da equipe técnica que ia fazer a cartografia social, ameaçar de morte aos membros da Prelazia da Igreja Católica, sobretudo o Diácono José Raimundo Ribeiro, impedir o professor Cornelius Vilarinhos de realizar seu trabalho acadêmico – foram feitos a pretexto de impedir que a RDS fosse criada como se o trabalho de cartografia social tivesse algo com o processo de criação da RDS, o que é uma inverdade, haja vista que a cartografia para a criação da RDS já foi realizada assim como os laudos fundiário, biológico e socioeconômico. Ou seja, do ponto de vista técnico e administrativo o trabalho necessário para a criação da RDS já está todo realizado.
O trabalho de cartografia social que seria realizado pela equipe que foi impedida de ter acesso aos retireiros do Mato Verdinho em Luciara era um trabalho acadêmico e fazia parte de um processo de auto-conhecimento dos retireiros por eles próprios com a ajuda desses técnicos. Impedir a realização desse trabalho denuncia a perspectiva anti-retireira desses grileiros que temem justamente o processo de regularização das terras que se apropriaram ao arrepio da lei. Para esses grileiros, com toda certeza, a ação do estado é o grande mal haja vista agirem sistematicamente ao arrepio da lei. E esse é o perigo iminente e permanente na região onde o mandonismo ainda presente não tem por tradição resolver os problemas no diálogo nem com a razão, ma sim à bala.
Do ponto de vista dos que se colocam na perspectiva de agir com justiça e dignidade através da palavra e da razão, a grande pergunta que se coloca é: por que o processo de criação de uma reserva (Extrativista ou de Desenvolvimento Sustentável) que consagre as práticas culturais tradicionais dos retireiros que se mostram perfeitamente compatíveis com a riqueza do ecossistema do rio Araguaia e enorme diversidade biológica identificada nos laudos biológico e socioeconômico não sai do papel desde 1999. Nesse ano, os retireiros entregaram uma carta à então senadora Marina Silva, carta essa que pode ser considerado o documento base para a criação de uma unidade territorial que reconhecesse a dignidade desse grupo social. Mesmo ocupando o cargo de Ministra do Meio Ambiente, a Srª Marina Silva não conseguiu demarcar essa área, apesar de todos os pareceres recomendarem favoravelmente.
Portanto, já se vão 14 anos de procastinação, o que demonstra a força política dos que na região vivem ao arrepio da lei haja vista o caráter abertamente irregular da situação fundiária em que se assentam. A demora no reconhecimento dos direitos dos retireiros tem animado os que querem se apropriar dessas terras não para o bem comum, mas para fins particulares e em detrimento do interesse público.
O caso das terras implicadas nesse caso da RDS do Mato Verdinho em Luciara é estratégico para medir a vontade política dos políticos que querem fazer valer o interesse público e não os interesses privados. Afinal, essas terras são juridicamente podres, como é o famoso caso do grilo da Fazenda Independência.
E a região bem merece estar no noticiário pela riqueza biológica, paisagística e cultural que tem e não como área de violência, conflito e devastação como até aqui tem sido conhecida. Além disso, o Araguaia é a segunda maior área continental alagada (a primeira é o Pantanal Matogrossense) e a região bem merece ser conhecida pelas enormes riquezas que possui: onde o vaqueiro do sertão nordestino ou do Maranhão, o sulista do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, o ribeirinho que veio do Pará se encontraram com os Xavante, com os Karajá e com os Tapirapé ensejando uma das regiões de maior contato intercultural de nosso país. Ali se encontram a Amazônia e o Cerrado, onde a floresta e os campos se imbricam numa diversidade de vida ímpar. Que se dê uma chance à Paz criando um território de vida e que a violência e a morte só sejam lembradas como memória que aduba a paz e alegria numa terra justa.
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