quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Copa-2014: como sociedade financia estádios privados

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Copa-2014: como sociedade financia estádios privados

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O caso exemplar do Atlético Paranaense expõe a “esperta” engenharia financeira empregada para desviar recursos públicos a empreendimentos de poucos
Por Ciro Barros e Giulia Afiune, na Publica
É um desafio entender a engenharia financeira montada para arcar com os custos da reforma da Arena da Baixada, estádio do Atlético Paranaense e sede dos jogos da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba. Para garantir o evento da FIFA na “cidade-modelo”, como é conhecida a capital paranaense, articulou-se um modelo de negócios que envolve recursos do BNDES, do Estado do Paraná, da Prefeitura de Curitiba e do próprio Clube Atlético Paranaense (CAP) que opera o milagre de transformar dinheiro público em recursos privados. Um exemplo de como a questão dos investimentos e do legado da Copa está sendo tratada, de fato, no país.
O enredo começa com o lançamento da Matriz de Responsabilidades, em 13 de janeiro de 2010. Nesse documento, que trata dos investimentos para a realização da Copa 2014 no Brasil, ficou definido que em Curitiba, o estádio utilizado seria a Arena da Baixada, que passaria por reformas de 184,6 milhões de reais. O Atlético Paranaense, dono do estádio, entraria com R$ 113 milhões, o BNDES, com R$ 25 milhões para as obras e reformas da Arena, e as obras complementares, orçadas em 46,6 milhões de reais, ficariam a cargo da Prefeitura.
No dia 9 de agosto de 2010, porém, depois de entrevistas do presidente do Atlético Paranaense, Marcos Malucelli, afirmando que o clube “não se endividaria por causa da Copa do Mundo”, segundo ele, “de responsabilidade da cidade e do Governo do Estado”, houve uma reunião entre o então governador do Paraná, Orlando Pessuti (PMDB); o prefeito de Curitiba em exercício, Luciano Ducci (PSB); membros da diretoria do Atlético e representantes dos comitês municipal e estadual da Copa no Paraná. Ali ficou decidido que o clube teria direito a usar o instrumento do potencial construtivo, da Prefeitura, para financiar sua parte nos investimentos.
O potencial construtivo permite que os municípios gerem receitas adicionais, concedendo licenças especiais de construção, que permitem exceções às regras de zoneamento dos Planos Diretores Municipais. Por exemplo, se uma empresa está interessada em erguer um edifício de seis andares em uma área onde se permite a construção de prédios com, no máximo, quatro pavimentos, pode comprar certificados desse potencial construtivo e/ou negociar obras em benefício da cidade como contrapartida a autorização da prefeitura. Mas, as leis que regulamentam essas contrapartidas (Estatuto da Cidade e Plano Diretor Municipal) não são exatamente claras, o que complica na hora de medir se o investimento compensa os incômodos gerados pela exceção, às vezes grandes, como no caso de prédios altos em zonas residenciais. Por isso, além de contrapartidas sociais, são necessárias compensações em relação ao ônus causado pela flexibilização do zoneamento, a chamada gestão do solo.
Foi com base no potencial construtivo que a prefeitura, Estado e clube assinaram o convênio 19.275, publicado no Diário Oficial do Município de Curitiba em 28 de setembro de 2010. O documento estabelece na segunda cláusula que o valor das obras do estádio – recalculado para R$ 135 milhões – seria financiado em três partes de R$ 45 milhões entre governo estadual, municipal e o Clube Atlético Paranaense
Houve uma redução de investimento por parte do Atlético Paranaense, pois na cota do clube foram incluídas isenções fiscais e obras que já haviam sido realizadas. “O estádio do Atlético faltava praticamente um nível de arquibancada, ele já estava quase todo construído”, explica o engenheiro Luiz Henrique de Barbosa Jorge, da Comissão de Fiscalização da Copa 2014 do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR). O Estado do Paraná também foi contemplado com a permissão de não repassar diretamente os R$ 45 milhões para a obra do estádio, que poderiam então ser empregados “na contratação e/ou execução de serviços e obras necessários para a realização dos jogos”. Quem saiu perdendo mais foi a Prefeitura de Curitiba, que passou a arcar com dois terços do investimento (R$ 90 milhões), cedidos na forma do potencial construtivo. Os valores, mais tarde, seriam reajustados.
Essa arquitetura do dinheiro dependia de leis que a autorizassem e, em novembro de 2010, foi publicada a Lei Municipal 13.620, que instituía os certificados de potencial construtivo adicionais à Arena da Baixada e, em dezembro foi aprovada a Lei Estadual 16.733 autorizando que recursos do tesouro estadual do Paraná fossem empregados na reforma do estádio.
Como, na época, aquela ainda era a “Copa da iniciativa privada”, o clube teria de oferecer sete contrapartidas: reforçar a parceria do poder público com as escolinhas de futebol do clube; ceder por cinco anos uma área correspondente a 50% da sua sede para a instalação da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (na gestão atual, o nome é Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude); continuar com uma parceria já existente com o Instituto Municipal de Turismo, ceder espaços no estádio – durante 50 meses após a assinatura do convênio -  para realização de eventos de interesse do Estado e município e, permanentes, para quiosques dos programas “Leve Curitiba” e “Feito Aqui Paraná”, de fomento ao artesanato; e um camarote ao Estado e outro ao Município na Arena da Baixada reformada, além de realizar, ao final daquele ano de 2010, um evento com as escolinhas parceiras do clube.
Contrapartidas que depois seriam classificadas como “irrisórias” e não proporcionais aos 90 milhões de reais que o clube recebeu em certificados de potencial construtitivo de acordo com a nota lançada em 2012 pelo Comitê Popular em Curitiba. Na visão do Comitê, além das contrapartidas sociais já serem desproporcionais, não há nenhuma prevista para amenizar e reduzir o impacto do potencial construtivo adicional. “O instrumento do solo criado, base para emissão dos CEPACs [Certificado de Potencial Adicional de Construção], é um mecanismo de política urbana e deveria se destinar às estratégias de desenvolvimento econômico e social das cidades, proteção do patrimônio histórico e ambiental. A manipulação da oferta e comercialização dessa quantidade de potencial construtivo do Município pelo CAP/SA constituirá um verdadeiro ‘banco de direitos de construir’, concentrando o controle do mercado de solo criado de Curitiba e reproduzindo a especulação”, diz um trecho da nota da organização.
Mãos à obra com dinheiro alheio
Para poder receber os certificados de potencial construtivo da Prefeitura de Curitiba, o Atlético Paranaense teve de criar uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), a CAP S/A Arena dos Paranaenses, 98% controlada pelo próprio clube e os outros 2% rateados entre conselheiros influentes (entre eles, está o atual presidente do CAP, Mario Celso Petraglia). A SPE foi criada em agosto de 2011, e em outubro daquele ano, as obras começaram. Detalhe: o convênio estabelecia, em sua primeira cláusula, que para receber o primeiro repasse de verbas, era condição sine qua non a desapropriação de imóveis no entorno da Arena da Baixada, mas enquanto as verbas vieram em agosto, as desapropriações só começariam depois do Decreto Municipal 1.957, de dezembro, categorizando os imóveis do entorno do estádio como de interesse público.
Em abril de 2012, os custos da reforma em andamento foram atualizados de R$ 184 milhões para R$ 234 milhões – R$ 123 milhões bancados por um empréstimo do BNDES, R$ 97 milhões pelo Atlético-PR, além de R$ 14 milhões gastos pela Prefeitura de Curitiba com desapropriações (já está acordado que o Atlético vai ressarcir esse valor até dezembro de 2014). Depois, alterou-se o convênio, pela Lei Municipal 14.219. Aprovada, no dia 28 dezembro de 2012, quando quase já se ouviam os fogos da virada do ano, a lei reajustou os valores de cessão de potencial construtivo pela Prefeitura de R$ 90 milhões para R$ 123 milhões. Também foi feito um termo aditivo, elevando o valor do convênio para cerca de R$ 180 milhões, mais uma vez repartidos – agora com cotas de R$ 60 milhões – entre Estado, Município e CAP. O Estado continuaria a cargo de outras obras relacionadas à Copa (e não do estádio), e o Município repassaria diretamente ao Atlético cerca de R$ 120 milhões em títulos de potencial construtivo.
Pela engenharia financeira montada, quem contraiu o empréstimo do BNDES foi o Estado do Paraná, que por sua vez o repassou à Agência de Fomento do Paraná. O Atlético Paranaense, via CAP S/A, então pediu um empréstimo à Agência oferecendo como parte da garantia (R$ 90 milhões dos R$ 120 milhões) os tais títulos de potencial construtivo gerados pela Prefeitura. Ou seja, como garantia ao empréstimo contraído com o Estado, o Atlético Paranaense ofereceu recursos que recebeu da Prefeitura. E, se não pagar, quem arca com o prejuízo é o Município de Curitiba. E a CAP S/A contraiu outro empréstimo, no valor de R$ 30 milhões, junto à Fomento Paraná no início deste ano.  Parte do potencial construtivo que não entrou como garantia do empréstimo (os R$ 30 milhões adicionais) poderá ser comercializada pelo Atlético Paranaense diretamente ou pela bolsa de valores, de acordo com o Decreto Municipal 895 de 2013.
O que agrava – e muito – o prejuízo da cidade, como explica o professor Leandro Franklin, da cadeira de Direitos Humanos do núcleo de Práticas Jurídicas da UFPR: “A partir do momento que esse potencial construtivo for jogado no mercado, ele não vai ter nenhum tipo de regulação por parte da Prefeitura de onde vai ser construído, onde vai ser utilizado. Quer dizer, vai ter um impacto na gestão do território, na organização do território em Curitiba que nem a sociedade civil nem o governo estão percebendo”.
Clique na imagem abaixo para ver o quadro explicativo produzido pelo Comitê Popular da Copa em Curitiba sobre a engenharia financeira da Arena da Baixada. O quadro consta no Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos em Curitiba, veja aqui o relatório executivo do documento.
Quadro_Explicativo
“Há todo um desvirtuamento do potencial construtivo e falta participação popular em todo esse processo”,  define Leandro Franklin. “Primeiro que essa liberação de dinheiro está sendo feita sem consulta pública, sem a população saber ou participar de nada. Tem gente que acha que potencial construtivo nem é dinheiro público. Essa gestão do potencial construtivo gera grandes impactos na cidade. Se isso for liberado, por exemplo, no bairro do Xaxim [na zona sul de Curitiba], vai ter um transtorno muito grande ali pelo aumento da população. Por isso exigimos que o Atlético assuma também uma contrapartida no que diz respeito à gestão do solo. É preciso se amenizar o ônus que vai ser gerado na região onde os títulos serão empregados. Se isso for para o mercado, vai ficar mais difícil”, afirma o professor da UFPR.
De sua parte, o Comitê Popular da Copa em Curitiba pretende entrar com uma denúncia no Ministério Público nos próximos meses no sentido de exigir maiores contrapartidas do Atlético Paranaense e de questionar o uso do potencial construtivo. “O Município está financiando praticamente tudo, o Atlético entrando com muito pouco, e o Comitê tem uma grande preocupação com o uso que está se fazendo de instrumentos urbanísticos como o potencial construtivo”, afirma Luana Coelho, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, que integra o Comitê Popular da Copa em Curitiba. “ A lei que criou o potencial construtivo tinha um objetivo completamente diferente, que era de que esses valores, das vendas de potencial construtivo, fossem para equipamentos públicos, habitações de interesse social. Temos uma enorme preocupação com o impacto que isso pode ter como precedente negativo. Porque afinal, é um investimento público altíssimo numa obra privada sem nenhuma contrapartida do privado”.

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