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Carta Capital
Santuário dos Pajés
02.11.2011 14:39
O novo faroeste caboclo do Cerrado
Por Thiago Foresti
O ambiente climatizado e formal do Prédio da Justiça Federal em Brasília não é exatamente o lugar onde os antropólogos se sentem mais à vontade. Pelo menos é o que as mãos levemente trêmulas e a voz às vezes vacilante de Jorge Eremites demonstram. Ele está diante da juíza Clara Mota dos Santos, cuja fala contundente e precisa contrasta com seu rosto jovem. Apesar de o antropólogo vestir terno preto, deixa transparecer adereços indígenas nos pulsos, pescoço e orelhas. Nas mãos carrega anotações e diários de campo, tudo escrito à caneta.
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Ele está cercado de advogados de empreiteiras e representantes da Fundação Nacional do Índio, a Funai. A data: sexta-feira, 27 de outubro. Todos prestam atenção nas perguntas da juíza, que, de toga e em frente a um crucifixo gigante pendurado na parede, colhe o depoimento.
“Porque esses índios não podem realizar esses rituais em outro lugar?”, pergunta a juíza. “Excelentíssima, derrubar árvores sagradas para eles representa algo como pisar em crucifixos para nossa cultura”, responde o antropólogo.
Jorge Eremites, o depoente, é responsável por um laudo bastante controverso e combatido, no qual atesta que os 50 hectares do último quinhão de cerrado nativo do Plano Piloto do Distrito Federal é na verdade uma terra indígena, o Santuário dos Pajés.
A audiência foi resultado dos crescentes protestos de estudantes no noroeste do Plano Piloto, no Distrito Federal (DF). A região é hoje palco de uma das maiores e mais caras disputas indigenistas do país, envolvendo de um lado a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), e do outro o índio Santixiê, que representa uma tribo com 16 indígenas da etnia funi-ô tapuia.
Construtoras x Índios
O território reivindicado por Santxiê é hoje o metro quadrado mais caro do país. Cada lote foi negociado por cerca de 15 milhões de reais pela Terracap, empresa estatal de Brasília que negocia as terras da união. Duzentos apartamentos já foram vendidos na planta a uma média de 1,5 milhão cada.
“Alguns dos meus clientes pagaram por esses lotes à vista e agora não podem construir, isso é um absurdo. Cada dia de obra parada nos custa algo em torno de 60 mil reais”, diz Antônio Gomes, advogado das construtoras Emplavi, João Fortes e Brasal. Gomes foi presidente da Terracap na época da negociação dos terrenos com as empreiteiras. Na época ele chegou a chamar os índios funi-ô tapuia de “interesseiros” e disse que era um despropósito criar uma reserva indígena numa área tão valiosa. “Não admitimos a criação dessa reserva nem por hipóteses. Meus clientes pagaram pela terra e tem documentos que atestam essa propriedade. Nós não vamos aceitar mais interrupções nas obras. Vamos até o Supremo Tribunal Federal se for necessário”, diz o advogado em entrevista para jornalista durante o intervalo da audiência.
Em 2009 o juiz Hamilton de Sá Dantas, a pedido de uma ação civil pública, impediu a Terracap de reformatar parte do setor noroeste, defendendo ali a demarcação legal do Santuário dos Pajés. A Procuradoria da República do Distrito Federal, também solicitou à Funai a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para decidir de uma vez por todas se o local é território indígena, ou não. Essa era inclusive o condicionante 2.35 da Licença Prévia concedida pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram) para o início das construções no Noroeste: resolver a questão indígena – solução que só poderia ser apontada pela Funai.
Desse modo, sem o licenciamento completo e sem a questão indígena resolvida, os lotes começaram a ser leiloados no Noroeste em 2008 pela Terracap. Só dois anos mais tarde, em 2010, a Funai publicou portaria no Diário Oficial autorizando uma diligência técnica a estudar o caso do Santuário dos Pajés. A conclusão do antropólogo Jorge Eremites foi de que os funi-ôstapuia eram uma comunidade tradicional e terminava o laudo recomendando a criação de 50 hectares de Terra Indígena. O resultado do seu trabalho foi elogiado e defendido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), mas não agradou à Funai, que reprovou o laudo e solicitou estudos complementares.
Um saco de gatos chamado Funai
A sessão do dia 27 de outubro, que durou nove horas, tinha por objetivo esclarecer o laudo e o trabalho dos antropólogos, mas o que ficou mais evidente durante toda a audiência foi a falta de clareza dos processos burocráticos da Funai.
“A senhora poderia dizer por que o laudo do antropólogo Jorge foi reprovado?”, pergunta a juíza para Maria Auxiliadora, diretora de assuntos fundiários da Funai, que prestou depoimento logo após o antropólogo. “Não saberia citar, vossa excelência. Teria que consultar meu corpo técnico”, respondeu.
Os relatos demonstraram que o trabalho de campo também não foi tranquilo. Houve desentendimentos e desavenças entre integrantes da equipe e os índios: “Não escolhi minha equipe, vossa excelência, e todos os antropólogos que me foram designados já tinham uma opinião formada sobre o trabalho”. Em seu relato, Jorge contou que uma das antropólogas apareceu apenas duas tardes na aldeia. Já outro entrou em conflito com os índios por afirmar que a divindade deles era hermafrodita.
Nem mesmo o georreferenciamento da Terra Indígena ficou claro. Um topógrafo designado pela FUNAI também prestou depoimento e confundiu ainda mais os presentes que se amontoaram na mesa da juíza para tentar entender até onde iam os 50 hectares reivindicados pelos indígenas.
A sessão terminou com a leitura da decisão da desembargadora Selene Maria de Almeida, a mesma do caso Belo Monte. A decisão, na prática, autorizava as construtoras a ligarem os motores das retroescavadeiras já no dia seguinte.
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