quinta-feira, 14 de novembro de 2013

‘O governo optou por uma tragédia permanente: sermos fornecedores de matéria prima para o mundo’

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 ‘O governo optou por uma tragédia permanente: sermos fornecedores de matéria prima para o mundo’

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ESCRITO POR GABRIEL BRITO E LEANDRO IAMIN, DA REDAÇÃO   
QUI, 14 DE NOVEMBRO DE 2013

A comoção em torno do leilão do megacampo petrolífero de Libra parece arrefecer, enquanto governo e grande mídia seguem manipulando a inteligência nacional neste e em novos temas.

Vozes como a do petroleiro Emanuel Cancella insistem, no entanto, em alertas que não devem calar: “Os valores em jogo são muito maiores (do que o propalado US$ 1,5 trilhão). Nós estamos falando de valor de petróleo in natura. Esse petróleo transformado em diesel, em querosene de aviação e, principalmente, em produtos petroquímicos, tem um retorno muito maior. Estamos falando em muito dinheiro”, disse o também presidente do sindicato carioca da categoria, consultor do Dieese e ex-militante petista desde 21 de outubro – data que, segundo técnicos e especialistas não financiados, marcou a maior entrega de patrimônio da história brasileira.

Cancella enxerga na indústria petroquímica o desenho do desastre de se estabelecer mais um ciclo de fornecimento de matérias primas. “É diferente dos aeroportos e dos portos, nos quais a Dilma fez concessão por trinta anos. Depois dos trinta anos, recebe-se de volta o ativo. No petróleo não tem volta”, disse, lembrando que Libra poderia ser entregue somente à Petrobrás, como reza o art. 12 da lei de partilha.

Além do mais, Cancella afirma que Libra tem cerca de 40 bilhões de barris “in situ”. Sendo a taxa média de recuperação da Petrobras de 53% por bacia, o entrevistado afirma que seguramente serão extraídos 20 bilhões de barris. “Os EUA precisam de gasolina, então vamos vender gasolina, nós estamos construindo quatro refinarias e vamos ter um grande excedente (ao invés de importar e pagar a diferença, à custa do caixa da Petrobrás). Deveríamos ter indústria de tablets, de celulares, tínhamos de deixar de ser montadores de automóveis para sermos construtores de automóveis. Portanto, o petróleo tinha de ficar no país, até para financiarmos a formação de técnicos, pois não temos suficientes”, enumera.

Infelizmente, nada disso. Exportaremos o óleo cru e não desenvolveremos cadeias produtivas com valor agregado, como suplicam os especialistas. Mas nada que diminua o assédio privatista. Emanuel Cancella explica: “querem derrubar os 30% da Petrobrás na partilha, derrubar a Petrobrás como operadora única e também já desrespeitam o conteúdo nacional, porque a multa para o desrespeito da questão do conteúdo nacional é insignificante. Para tais empresas, é preferível descumprir a ordem, pagar a multa e comprar o equipamento no seu país de origem”, denuncia.

Com tamanha desfaçatez face à soberania, podemos esperar mais privatização. “A Dilma, pela vontade dela, lançou o pré-edital dos leilões dos terminais da Petrobrás. Já se falou nas refinarias... Vamos precisar de muita briga, muita luta para garantir nossos patrimônios. Não tenham dúvida que a partilha é muito melhor do que a concessão, porém, a partilha já está ameaçada”, arremata.

A entrevista completa com Emanuel Cancella, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida abaixo.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como você enxerga o recente leilão do campo de Libra?

Emanuel Cancella: Olha, é um prejuízo imensurável para o nosso país fazer leilão de petróleo. Nenhum país soberano e desenvolvido no mundo faz leilão de petróleo. Onde não se tem certeza de sucesso, fazem leilão de áreas para as empresas buscarem extrair o petróleo.

O Campo de Libra, já se sabia, tem no mínimo 14 bilhões de barris de petróleo, mas a gente sabe que tem muito mais. Portanto, não tinha por que leiloar, até porque a lei do pré-sal, em seu artigo 12, permite à União entregar o campo à Petrobrás, o que não foi feito.

A presidente Dilma tinha dito na campanha que leiloar o pré-sal era um crime, pois era o nosso passaporte para o futuro. Mas ela vendeu o nosso passaporte de forma aviltante. É como se o leitor encontrasse um tesouro no seu terreno e ficasse com 40%, doando 60% desse tesouro para os vizinhos ricos.

Assim, a gente vê com muita tristeza a entrega desse patrimônio, algo em torno de 1,5 trilhão de dólares, metade de um PIB brasileiro, como se metade de tudo aquilo que produzimos em um ano fosse entregue a empresas holandesas, inglesas, francesas e chinesas. E a Dilma ainda diz que fez um bom negócio.

Correio da Cidadania: Você poderia fazer um breve apanhado histórico a respeito da história da descoberta do pré-sal?

Emanuel Cancella: A campanha do petróleo foi a maior campanha cívica que esse país já conheceu, realizada nas décadas de 40 e 50, quando o petróleo era um sonho. Os brasileiros foram às ruas, resultando na criação da Petrobrás e no monopólio estatal do petróleo.

Diziam que não havia petróleo no Brasil, mas logo a Petrobrás descobriu enormes jazidas no mar, em águas rasas e depois em águas profundas, através de estudos que levaram 30 anos, onde se gastou muito dinheiro público em tecnologia, em pesquisa. Em 30 anos, pesquisou-se, descobriu-se  e se desenvolveu a área do pré-sal. Foi desenvolvida uma tecnologia geológica inédita pelos técnicos da Petrobrás no seu Centro de Pesquisa (Cenpes).

Sobre o pré-sal, no governo Lula teve um movimento grande de petroleiros, cientistas e pessoas influentes. O Lula retirou essa área do décimo leilão da ANP, com 41 blocos, incluindo já o nosso pré-sal, mas ainda sob a lei de concessão de FHC. Depois, criou uma legislação especial, a lei 10.351, que no seu artigo 12º permite o que eu falei: a área ser entregue à Petrobrás se houver interesse da União.

Libra é o exemplo típico de área que tinha de ser entregue à Petrobrás. Não existe nenhum argumento que justifique o leilão, ou melhor: nada justifica a privatização da área, porque, na verdade, é uma privatização. Nada justifica, todos os argumentos que colocaram são falaciosos. A gente desmente todos.

Correio da Cidadania: O que você teria a dizer da estratégia do governo na exploração dessa riqueza? Quais os papeis da ANP e ministérios envolvidos na questão?

Emanuel Cancella: É com muita tristeza que eu vejo tanto o governo brasileiro como a Agência Nacional de Petróleo, assim como a própria Petrobrás e sua direção, atuarem de forma subserviente e totalmente antinacionalista.

Porque nós temos uma dívida social muito grande com nosso povo. Nós temos carências que afloram todos os dias na questão da saúde, na questão dos médicos, dos hospitais, da educação, do emprego de qualidade e, lamentavelmente, o nosso governo optou por uma tragédia permanente para o nosso país.

Qual tragédia? A de sermos fornecedores de matéria prima para o mundo. Esse petróleo que doamos à Shell, Total e à China vai voltar em formas de tablets, componentes de automóveis, tênis e milhares de produtos petroquímicos – coisa que já supera os três mil produtos.

A petroquímica domina o mundo, ela é subproduto do petróleo. E então, na hora em que fazemos leilão e entregamos 60% desse campo gigante, nós estamos fazendo aquilo de sempre, lamentavelmente, e que não esperávamos ver a Dilma e o Partido dos Trabalhadores promovendo: ser fornecedor de matéria prima para o mundo.

De forma nenhuma a gente quer se fechar para o mundo. A melhor opção para nós era tratarmos do petróleo de forma estratégica, deixar tudo no nosso país e sermos fornecedores de produtos com valor agregado.

Os Estados Unidos precisam de gasolina, então vamos vender gasolina, nós estamos construindo quatro refinarias e vamos ter um grande excedente. Deveríamos, como falei, ter indústria de tablets, de celulares, tínhamos de deixar de ser montadores de automóveis para sermos construtores de automóveis.

Portanto, o petróleo tinha de ficar no país, até para financiarmos a formação de técnicos, pois não temos suficientes técnicos, engenheiros e geólogos, entre outros.

Agora, na hora em que abrimos mão de tal petróleo, é como no caso do nosso minério de ferro: vendemos o minério e compramos o aço; com a laranja, somos grandes exportadores e depois compramos o suco. O petróleo é um caso similar, assim como já foram o pau-brasil, a borracha... O que a Dilma está fazendo, infelizmente, é promover a maldição de o Brasil ser fornecedor de matéria prima para o mundo. O que a Dilma fez não foi nada de novo. É aquele sentimento de país-colônia, subserviente...

Como se insinuou, a geopolítica de petróleo no mundo é resolvida através de guerras. Todas as guerras contemporâneas que vemos pelo mundo têm como fundo o petróleo. O Hugo Chávez era tão atacado, tão acusado de ditador, não por outro motivo se não o fato de a Venezuela ter as maiores reservas de petróleo do mundo, das mais cobiçadas.

O Iraque foi atacado, não porque Saddam era um ditador e tinha armas de destruição em massa, mas porque o Iraque tem reservas gigantes de petróleo.

Não estou aqui propondo uma guerra com o mundo. Repito, a gente tinha que dizer aos demais: “Olha, nós vamos fornecer produtos com valor agregado”. Isso geraria mais renda, emprego e qualidade de vida para os brasileiros, mas infelizmente não foi a opção da presidente Dilma e infelizmente ela já disse que vai continuar com os leilões.

E o que é pior: aquilo que a gente considerava uma conquista da lei sancionada pelo Lula (a garantia de, no mínimo, 30% dos campos para a Petrobrás, sendo a Petrobrás operadora de todos os campos do pré-sal, por gerar muito emprego para os brasileiros) está ameaçada. O componente nacional (o próprio Lula também tinha estabelecido que 60% dos equipamentos deveriam ser comprados no país) também está ameaçado.

Portanto, mais do que nunca, precisamos da continuidade da campanha “O Petróleo é Nosso”. Porque, senão, eles vão levar tudo e a Dilma vai entrar em rede nacional dizendo que fizemos um grande negócio, enquanto não temos condições de contestar, a não ser em espaços como esse aqui.

Correio da Cidadania: Ademais, o Brasil não é autossuficiente em petróleo, sem contar com nenhuma gota do pré-sal? Isso não deveria ensejar planejamento estratégico de maior prazo, a fim de garantir o tão prometido retorno social por meio de uma riqueza que é finita?

Emanuel Cancella: É lógico. O Brasil já era autossuficiente na produção. Conquistou essa autossuficiência há alguns anos e tivemos um problema que foi usado contra nós: um excedente de consumo de gasolina. Por quê? Porque o governo incentivou a venda de automóveis isentando o IPI, logo, a frota e o consumo de gasolina aumentaram. Aí, a presidente Dilma e o governo, já que hoje todos os carros no Brasil são flex, tinham de pressionar os usineiros a produzirem o álcool a preço razoável. Mas não fizeram isso, preferiram importar gasolina e pagar a diferença do preço.

No entanto, nós já somos autossuficientes. Estamos construindo quatro refinarias, nós vamos ter um grande excedente para exportação de gasolina e diesel. Assim, vamos precisar de petróleo. Esse petróleo do pré-sal se formou em milhões de anos, se ele ficar mais cinquenta, cem anos, debaixo da terra, não vamos perder nada, nem qualidade e nem quantidade. Nada. Não perde nada.

Pensamos que esse petróleo tem de ser tratado de forma estratégica. “Ah, não temos técnicos”. É verdade. Sendo assim, vamos financiar a formação desses profissionais. Nós já somos autossuficientes, nós já produzimos o suficiente para o nosso consumo. Nós não precisamos de nenhuma pressa para produzir o petróleo do pré-sal. Quem tem pressa são os que compraram a bacia de Libra, porque eles vão querer levar o mais rápido possível o nosso petróleo. E é uma privatização, não é verdade que é concessão, porque tais leilões são válidos por quarenta anos, mas em vinte anos as empresas vão sugar todo o petróleo de Libra.

Portanto, é uma privatização, daquelas mais irresponsáveis que podemos imaginar, pois as reservas não se renovam. É diferente dos aeroportos e dos portos, nos quais a Dilma fez concessão por trinta anos. Depois dos trinta anos, recebe-se de volta o ativo. No petróleo não tem volta, eles vão levar esse petróleo todo e não vão nos devolver. Nós entregamos o tesouro e vamos receber um passivo ambiental violentíssimo.

Correio da Cidadania: O que você tem a dizer da guerra de números apresentados, por todos os lados interessados no assunto, com enormes disparidades entre si? Quais cálculos você diria estarem mais próximos da realidade?

Emanuel Cancella: É uma guerra de números que o cidadão comum não tem como comprovar e saber quem é que está com a verdade. Mas podemos chamar atenção para algumas coisas. A Dilma falou que nós vamos ficar com 85% da receita do Campo de Libra, mas aí eu digo: nós ficamos com 40%, as outras empresas vão ficar com 60%. Alguém está errando. Alguém está mentindo.

Outro número que avisamos ser irreal é o de que estamos perdendo 1,5 trilhão de dólares, que seria o valor do campo de Libra transformado em dólares. Este valor é muito maior do que 1,5 trilhão.

Primeiro, porque a Petrobrás sabe que Libra tem mais do que 15 bilhões de barris de petróleo. Porque, in situ, o Campo de Libra tem algo em torno de 45 bilhões de barris de petróleo. A Petrobrás furou o solo e já comprovou isso. A reserva in situ não é o mesmo que reserva recuperável. A Petrobrás recupera, em média, 53% do óleo dos campos. Assim, Libra tem, no mínimo, 20 bilhões de barris de petróleo. E quando falamos 1,5 trilhão de dólares é porque consideramos o barril de petróleo a 100 dólares. Mas o barril de petróleo já bateu 138 dólares recentemente e na semana dessa entrevista estava 111 dólares.

Portanto, os valores em jogo são muito maiores. Nós estamos falando de valor de petróleo in natura. Esse petróleo transformado em diesel, em querosene de aviação e, principalmente, em produtos petroquímicos tem um retorno muito maior. Estamos falando em muito dinheiro. Não é à toa que o petróleo é o “ouro negro”.

Dessa forma, a Dilma trava uma guerra de números para justificar o negócio que fez, mas uma coisa da qual não consegue fugir é do fato de na campanha eleitoral ter dito ser “crime privatizar o pré-sal”, por se tratar do nosso “passaporte para o futuro”. Ela simplesmente fez o que tinha denunciado. Para mim, isso é da maior gravidade,  pois ela entregou e vai continuar entregando nosso passaporte, pois já disse que vai continuar com os leilões do pré-sal.

Correio da Cidadania: Ildo Sauer, ex-diretor de petróleo e gás da Petrobrás, diz que o modelo de partilha é tão nocivo quanto o de concessão, uma vez que já está ultrapassado, pois foi concebido antes da própria descoberta do pré-sal. Podemos esperar por mais retrocessos, de acordo com os pontos de vista aqui defendidos por você?

Emanuel Cancella: O regime de partilha é muito melhor do que o regime de concessão. Isso está nos números. Na concessão que foi feita pelo Fernando Henrique, quem produziu o petróleo era dono e, na partilha, o petróleo continua sendo da União. O Lula colocou na partilha parâmetros que são muito importantes para nós, como a questão de no mínimo 30% para a Petrobrás, que a estatal tem de ser operadora de todos os campos, além do quesito conteúdo nacional, ao obrigar as empresas que entraram nesse leilão – como a Shell, a Total e as chinesas – a comprarem pelo menos 60% dos equipamentos no país.

Só que todos os parâmetros colocados pela lei de partilha estão sendo questionados, esse é o problema gravíssimo. Eles querem derrubar os 30% da Petrobrás, querem derrubar a Petrobrás como operadora única e também já desrespeitam o conteúdo nacional, porque a multa para tal desrespeito é insignificante. Para tais empresas, é preferível descumprir a ordem, pagar a multa e comprar o equipamento no seu país de origem.

Portanto, teremos de travar uma batalha muito grande. A nossa campanha vai continuar, inclusive, tentando barrar o leilão de Libra. Há uma questão grave, mesmo pós-leilão: não houve concorrência, e leilão pressupõe disputa; só houve a participação de um consórcio.

Assim, a gente tem muita luta pela frente e não é só a questão do petróleo. A Dilma, pela vontade dela, está lançando o pré-edital dos leilões dos terminais da Petrobrás. A Dilma não só está entregando o nosso petróleo, como está entregando os nossos terminais. E os leitores nem devem imaginar o que são os terminais de que falamos.

Eu passo para vocês uma imagem simbólica: o Brasil é todo interligado através de dutos. Em 60 anos, a Petrobrás criou uma rede de dutos que liga o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Assim, daqui do Rio, manda-se gás para São Paulo, manda-se diesel ao Centro-Oeste, gasolina para o Nordeste etc. É uma linha de dutos, uma malha poderosíssima, para cuja construção a Petrobrás contou com pesados investimentos públicos. Agora essa malha será entregue à iniciativa privada – se a gente permitir.

Vamos precisar de muita briga, muita luta para garantir nossos patrimônios. Não tenham dúvida que a partilha é muito melhor do que a concessão, porém, a própria partilha já está ameaçada.


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