terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Marcelo Rubens Paiva

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Marcelo Rubens Paiva

Leia perfil publicado na CULT 178
Helder Ferreira
É difícil definir uma década tão conturbada quanto a de 1980 foi para o Brasil. Talvez porque o período tenha sido uma época de redefinição. Se no campo político foi a década da abertura “lenta, gradual e segura” para a democracia, das “Diretas Já!”, do fim da ditadura militar, no comportamental, foi a era do “desbunde” – a resposta mais visceral ao fim da rigidez militarizada, da repressão, da censura. Foi nesse tempo de mudanças, mais precisamente no final de 1982, que Feliz Ano Velho, o romance autobiográfico do filho do deputado cassado e desaparecido político Rubens Beyrodt Paiva, chegou às livrarias. Nele, Marcelo narra como, no dia 14 de dezembro de 1979, às 17h, com o Sol em conjunção em Netuno e em oposição a Vênus, ele pulara com a pose do Tio Patinhas para mergulhar em um lago com 50 centímetros de profundidade, batera a cabeça no chão, fraturara a quinta vértebra cervical e comprimira a medula, resultando, a curto prazo, na invasão de seus tímpanos por uma estranha melodia – “biiiiiiiiin” – e, permanentemente, em uma tetraplegia. Ele também conta como foi o processo de recuperação, intercalando a narrativa com digressões, flashbacks e flashforwards sobre suas experiências, traçando um retrato da geração dos universitários de classe média da qual fazia parte, e também expurgando alguns fantasmas, como o do sequestro e assassinato de seu pai.
Hoje, trinta anos, diversos livros, peças de teatro e filmes depois, ele se encontra em seu apartamento no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, recebendo a reportagem da CULT. É a típica residência do escritor “meio intelectual, meio de esquerda”: paredes (azuis) forradas por centenas de livros, alguns quadros e um diploma de bacharel em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo, discos do Chico Buarque, móveis em madeira rústica, um sofá branco meio puído, um lustre no estilo luminária chinesa, dois gatos e um computador com o Twitter aberto no navegador. O lançamento de As verdades que ela não diz, coletânea de contos e crônicas sobre o universo feminino, assunto predileto do escritor, e a divulgação, feita pela Comissão Nacional da Verdade, de documentos que, discordantes da versão dada pelos militares à época, atestam a morte do pai de Marcelo nas dependências do DOI-CODI do Rio de Janeiro, em 1971, motivaram o encontro. Mas não é nenhum dos dois assuntos o que pauta a conversa inicialmente, quando ele descobre que o repórter havia lido, recentemente, seu primeiro livro.
– Você achou muito datado? Achou sexista?
– Ah, é datado no sentido de ser um retrato de uma certa geração. Mas há aspectos que continuam atuais. Eu não achei sexista… até achei estranho você se autocriticar diversas vezes pelo seu suposto machismo. Você se acha machista?
– Eu não me acho machista, não. Mas a época em que escrevi era mais sexista. Hoje, acho que muitas vezes a gentileza é confundida com o ato de você subjugar uma mulher. E eu fui educado assim, com essas regras de etiqueta que devem ter sido criadas na Era Vitoriana, como abrir a porta do carro, pagar a conta e caminhar do lado da rua quando acompanhado de uma mulher.
Marcelo é do tipo de pessoa que observa atentamente seu interlocutor; seus olhos não vagueiam pelo recinto enquanto o outro fala, nem demonstram impaciência. O bigode e o cabelo, ainda vastos mas já grisalhos, as rugas e os quilos acumulados ao longo das últimas três décadas já o distanciam do garoto magricela retratado em seu primeiro romance, e, ao mesmo tempo, o aproximam da figura rechonchuda do pai. Aos 53 anos, ele já tem a idade que considera ideal para a criação literária.
É que, apesar de sempre ter sido um ávido leitor, tendo já devorado toda a obra de Dostoiévski, Kafka e Sartre aos 20 anos, ele afirma nunca ter imaginado que seria escritor. “Na minha época, uma pessoa de 20 anos não tinha nem o direito de pensar em ser escritor; as pessoas começavam a escrever com 40, 50 anos – aliás, elas deveriam. Não existia uma literatura feita por jovens”, afirma ele. “Entrei nessa por causa do Caio Graco [editor da Brasiliense naquela altura], que teve a ideia da coleção Cantadas Literárias. Ele buscava a inovação da literatura brasileira, trazendo pessoas de diversos universos para uma mesma coleção focada numa literatura mais coloquial”.
Talvez ele tenha criado precedentes para outros.
A escritora gaúcha Luisa Geisler – que, aos 21 anos, tem dois livros publicados (e premiados) e foi incluída na antologia “Os melhores jovens escritores brasileiros”, da revista Granta – acredita que os livros de Marcelo foram importantes para sua formação cultural. “Li Feliz Ano Velho quando ainda estava na escola, porque minha professora era grande fã dele. Mais tarde, li Malu de bicicleta. Acho que a maneira que ele interpreta a mulher é muito íntima, muito sincera e bem-humorada. Me agrada bastante”.
Para Antonio Prata, 35, tido por Marcelo como o “melhor cronista brasileiro, disparado”, a leitura de Feliz Ano Velho foi inspiradora. “Li num ônibus, indo do Rio para São Paulo. Eu tinha uns onze anos, acho, e foi uma revelação: então pode ter All Star na literatura? E referências pop, baseados, gírias?”.
Já para o autor de Diário da queda, Michel Laub, 40, que leu o romance aos 18 anos, a experiência foi mais catártica. “Li Feliz Ano Velho na cama, me recuperando de um acidente de carro em que quebrei uma vértebra. Por isso, mas não só por isso (gostei bastante do livro), foi uma experiência inesquecível”, escreveu por e-mail.
Marcelo no lançamento de Feliz Ano Velho, em 1982
Cabeceira de escritor
Ele conta que o que o levou a escrever Feliz Ano Velho foi, além da vontade de dividir sua dor com as pessoas, mostrar que a cadeira de rodas não era sua única história, não o definia. “Eu queria discutir isso. Que, apesar de estar numa cadeira de rodas, eu tinha desejos, amigos, fumava maconha, transava, ia a shows de rock, ao Pacaembu”, conta. “Então, quando eu vejo um filme ou leio um livro, eu me pergunto o que a pessoa quer mostrar com aquilo. O E aí, comeu?, por exemplo, tinha um motivo. Queria falar sobre o universo masculino e sobre como os homens se relacionam entre si e com as mulheres. Muita gente acabou achando o filme machista, mas não era sobre o machismo”, comenta sobre o longa que, no ano passado, levou 2,5 milhões de brasileiros às salas de cinema e é baseado na peça homônima que lhe rendeu o Prêmio Shell de teatro em 1999.
– E como surgiu a ideia de reunir as crônicas e contos de As verdades que ela não diz?
– A Isa Pessoa, minha editora, sempre me disse que tenho um jeito peculiar de escrever sobre as mulheres. E que as mulheres gostam de me ler e gostam de ler quando os homens falam delas. Aí surgiu o projeto do livro, que reúne um material que eu fui escrevendo e acumulando ao longo de 8 anos. Depois, rolou uma edição, reescrevi muita coisa.
Há doze anos, Isa Pessoa trabalha como editora de Marcelo. Nos primeiros 11, pela Objetiva, que ela deixou no ano passado com a criação da Editora Foz, pela qual publicou o último livro do escritor. “O Marcelo é um escritor que se aprimora a cada livro, aquela figura que faz, que estuda. Com ele dá pra dialogar, sugerir ideias, propor soluções… ele é bem aberto”, conta. “A ideia do livro surgiu porque, além das crônicas que já tinham repercutido bastante no blog dele no Estadão, o Marcelo, tendo crescido ao lado de quatro irmãs, mãe e avó, sendo casado e conselheiro sentimental de outras tantas mulheres, é bem conhecedor da alma feminina, que está sempre retratada nos livros dele”.
Nos últimos tempos, os escritores norte-americanos Jeffrey Eugenides, David Foster Wallace e Jonathan Franzen têm revezado espaço na cabeceira do autor. O último, em particular, chama sua atenção. “O Franzen fala que é preciso se comunicar com o público, facilitar a leitura, ser lido. Eu sempre quis ser lido, o único livro que eu fiz experimental foi o Ua:Brari, que, por consequência, foi um dos meus romances que menos repercutiu”, declara ele, que afirma não possuir preconceitos contra a cultura de massa. “Eu adoro Resident Evil, filme de zumbi; eu gosto mais de filme de zumbi do que muito filme de arte. Já vi muita gente falando bobagem, que o pior filme brasileiro é melhor que o melhor norte-americano. Não acho. Discordo totalmente. A crítica, agora, parece que ergueu um altar para O som ao redor, aquele filme do… esqueci o nome dele”.
– Kleber Mendonça Filho?
– Isso! Não aguento mais ouvir falar do Kleber Mendonça Filho. Tô até com aquela resenha que saiu na Carta Capital, no dossiê sobre “O vazio da cultura”.
– E o que você achou da revista?
– Discordo totalmente que há um vazio da cultura. Acho que o Mino Carta não vai ao cinema, ao teatro, não compra disco, não baixa música. É um absurdo afirmar isso! O Kleber Mendonça Filho é um grande cineasta, mas a boa cultura brasileira não se resume apenas a um cineasta e a um filme. Acho que as pessoas estão por fora, elas não estão vendo o que está sendo feito. Não estão lendo o que está sendo escrito, não estão indo ao teatro. É muito fácil meter o pau, muito difícil criticar, mais difícil ainda elogiar.
Ora muito elogiado, ora muito criticado, Marcelo diz sustentar uma relação bastante dúbia com a crítica. “As poucas críticas equilibradas que eu recebi e com as quais eu aprendi foram de escritores. Por exemplo, a resenha do Ivan Ângelo sobre Não és tu, Brasil, e a do Paulo Leminski sobre Blecaute”. Ao seu ver, o grande problema é o elitismo de uma classe cultural que se acha distante das grandes massas. “A desigualdade social brasileira também se reflete numa desigualdade cultural, onde se renega tudo o que é popular”, critica. “O Plínio Marcos, por exemplo, que morreu praticamente na miséria, sempre foi tratado como um autor secundário. Ele mesmo falava: ‘sempre me trataram como um semianalfabeto e eu acho que sou um semianalfabeto’”.
Professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do ensaio “Literatura brasileira contemporânea: um território contestado”, Regina Dalcastagnè acha curioso nunca ter recebido um único artigo sobre a obra do escritor. “Sempre me pergunto o que faz a crítica reverenciar alguns nomes e esquecer de outros, no caso de Marcelo Rubens Paiva talvez exista essa marca equivocada de ‘escritor para jovens’, que sempre gera preconceito no meio acadêmico”, filosofa. “Também nunca trabalhei com ele, embora o Feliz Ano Velho tenha sido um livro importantíssimo na minha adolescência. Acho que não gostei de Blecaute, e daí o abandonei. Boa hora para voltar a lê-lo”.
– Bom… Era só isso? Eu tenho fisioterapia agora, às 17 horas.
Então, foi preciso marcar mais um encontro. Faltava falar sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ficou para dali a dois dias.
A família Paiva em 1964
Dois dias depois
Desapareceram com o pai do Marcelo há 42 anos. Em Feliz Ano Velho, ele narra a invasão de sua casa e a consequente prisão do pai. Diversos artigos de seu blog foram dedicados ao caso ou a assuntos relacionados. Segundo o dramaturgo Mário Bortolotto, amigo de Marcelo, o escritor lida com o assunto de maneira tranquila. “Ele quer descobrir quem foi realmente, mas não tem um lance de revolta. Nunca vi ele nervoso com isso. Não é uma coisa que fica amargurando ele, não. Ele amava muito o pai, isso fica nítido pelas conversas que já tive com ele”, conta.
Os documentos que atestavam a estada de Rubens Paiva no DOI-CODI não representaram grande novidade para o escritor. Ao seu ver, foi mais do mesmo. “Tudo o que foi divulgado, eu já sabia. Inclusive, o documento que foi divulgado já tinha sido publicado no livro Segredo de Estado, do Jason Tércio. Dois ou três documentos que saíram sobre a estadia do meu pai no DOI-CODI também foram entregues, não descobertos pela CNV. Então, na verdade, a CNV não descobriu nada! Eles divulgaram o que já sabíamos em um momento oportuno, em que estava havendo uma troca de coordenador geral. E o que saiu queria mostrar serviço e divulgou esses documentos”, afirma.
O que a família Paiva deseja é que a CNV assuma uma postura mais ativa e passe a chamar pessoas para depor. “No livro Segredo de Estado estão os nomes de todos que trabalharam no DOI-CODI em 1971. Existiam várias equipes: equipe de busca e apreensão, que era o pessoal que prendia; existia a equipe de inteligência, entre aspas; e existia na equipe do depoimento, da tortura”, relata, com aparente irritação. “A gente não sabe quem que deu soco, quem deu choque elétrico, quem cortou a garganta, quem cortou os braços… não se sabe isso. Talvez a CNV descubra se chamar essas pessoas para depor”.
Enquanto aguarda desdobramentos, Marcelo continua cobrando posições mais demarcadas da CNV. Ele também conta que acaba de entregar o roteiro do longa Vale Tudo, sobre o lutador de UFC José Aldo, que ele escreveu em parceria com Afonso Poyard, e que começa a ser filmado em dezembro; e se prepara para as filmagens de No retrovisor, longa baseado na peça de teatro homônima, que roterizou com Mauro Mendonça Filho, que será produzido pela Cazé Filmes, responsável por E aí, comeu?. Mas, por hora, ele só precisa enviar sua coluna semanal para o jornal O Estado de S Paulo.

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