carta maior
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Risco, trabalho e medo
A aceitação da exploração do trabalho e a exposição ao risco decorrem da necessidade de sobrevivência; vista pelo avesso, a obediência, ganhou status de virtude e a recusa em expor-se a ele, a de covardia. São extremos de conduta social, exclusivamente humanos, que somam instinto, sociabilidade, moralidade e moralismo. Portanto, risco e subordinação são conceitos arraigados em práticas que atravessam a história e se universalizaram com o capitalismo. Por Herval Pina Ribeiro.
Herval Pina Ribeiro (*)
A convivência com o risco dentro e fora do trabalho percorre toda a história da humanidade. De natural ele se converteu em social, sobretudo depois da revolução industrial. Risco natural significa inexistência de relações entre sujeitos, resultado da atuação singela do indivíduo contra as forças da natureza. Expor-se voluntariamente ao risco é excepcional, nunca uma necessidade. Só nesta situação se deveria falar em exposição natural ao risco por livre arbítrio. O risco natural é comum a todas as espécies animais e a resposta natural a ele é a fuga. No entanto, nas sociedades de classe, e na capitalista em particular, o risco resulta de relações assimétricas entre sujeitos, em que uma parte, a submetida, por não ter poder decisório, é a que expõe-se ao risco. O que existe é um processo contínuo de sujeição social ao risco.
A aceitação da exploração do trabalho e a exposição ao risco decorrem da necessidade de sobrevivência; vista pelo avesso, a obediência, ganhou status de virtude e a recusa em expor-se a ele, a de covardia. São extremos de conduta social, exclusivamente humanos, que somam instinto, sociabilidade, moralidade e moralismo. Portanto, risco e subordinação são conceitos arraigados em práticas que atravessam a história e se universalizaram com o capitalismo.
A história da humanidade é, também, a história dos valores sociais como esses, vale dizer, do poder das regras sobre o instinto, ainda que seja sobre o instinto de sobrevivência. É preciso, segundo o discurso normativo, que as haja para que literalmente não nos devoremos uns aos outros, importando pouco se este canibalismo, moralmente condenado, seja virtual, através da exploração e adquira feições violentas dentro e fora do trabalho.
O que determina a obediência em situações críticas? O que leva o indivíduo a se sujeitar ao risco e à morte, justo o que ele mais teme? O que o faz abdicar de sua vontade e consciência? O que o torna tão submisso a despeito de ameaça tão onipresente?
Ferir-se, adoecer e morrer do trabalho são possibilidades, abstrações; podem ou não acontecer. Negar-se a este risco socialmente determinado implica de imediato em alguma forma de sanção. Quem se nega a obedecer é punido: na guerra como covarde, no trabalho como insubordinado e fora dele como contraventor. São ápodos morais que resultam em processos de exclusão social e induz ao medo de não ser mais aceito, ser demitido, perder os meios de sobrevivência e a liberdade, medo da morte em vida.
Nesses dois séculos de revolução industrial, os processos de produção e as relações sociais mudaram muito e com eles a natureza e frequência dos riscos e a qualidade dos danos. Sua materialidade é expressa pela exuberância dos números e gravidade dos acidentes e doenças do trabalho que continuam ceifando a saúde e vida de centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo. Mas, ao par destes danos que desintegram fisicamente o trabalhador, há outros riscos imateriais e danos sutis que rompem sua integridade psíquica e afetiva e o fazem adoecer.
Em tais situações, seja o risco físico ou imaterial, o medo está presente sob formas e graus diferentes, resultado da percepção abstrata da sua presença. Diante do perigo pressentido, ainda que não materializado, o trabalhador se pune com a angústia, preâmbulo do adoecimento. Sente-se inseguro por não saber ou por ter medo de errar e ter de arcar com as consequências.
Saber sobre o trabalho e seus presumidos riscos, sejam naturais ou sociais, mesmo que não se os possa eliminar, é uma forma de assumir, em parte, o domínio da situação e coibir a angústia. Mas, ainda que, até certo ponto, saber seja profilático, não é suficiente para coibir o risco e o dano, sobretudo se sua determinação é social e as relações de poder persistem embora, historicamente, mudem de qualidade (Ribeiro, 1999).
Inescapáveis ou não, risco e medo fazem o homem engendrar estratégias para poupar-se, tanto mais eficazes quanto maior seu conhecimento sobre o risco. No final do século XIX, os riscos matérias no trabalho se tornaram excessivamente banais em decorrência da aceleração e intensidade dos processos produtivos, calcadas na apropriação e incorporação de tecnologias novas e novas relações sociais. Ainda que predominantemente físicos, eram de outro tipo, mais frequentes e com consequências mais graves, acabando por se tornarem escândalo social e uma questão pública. Desgraçadamente, à medida que cresciam, em número e gravidade, aumentavam também a complexidade dos processos produtivos, o desconhecimento dos trabalhadores, a impossibilidade de conhecerem o próprio trabalho e a perda de autonomia dentro e fora do emprego.
Com a incorporação das novas tecnologias e maior automação dos processos produtivos, o dano imediato e a morte no trabalho passaram a ser menos frequentes; com o que o medo da perda física de partes do corpo ou da vida diminuiu; porém cresceram outros tipos de risco e danos à saúde, como os relacionados à intensidade e pressão do trabalho, à insegurança no emprego que causam distúrbios orgânicos e psíquicos que podem levar à incapacidade e à exclusão social. Há, pois, diferenças qualitativas de medo.
Nos países mais industrializados, mais da metade da força de trabalho está hoje alocada no setor terciário da economia, a maior parte a realizar tarefas de escrituração e de comércio onde predominam os riscos imateriais e os danos sobre o psiquismo; os riscos físicos e a mortalidade são altas apenas em algumas atividades do setor, como no ramo de transportes e segurança.
Mesmo nas atividades industriais e agropecuárias, a probabilidade atual imediata de adoecer ou morrer devido os riscos físicos do trabalho, está se tornando progressivamente menos expressiva em função da automação dos processos produtivos e da diminuição relativa da força de trabalho. Contudo, apesar da redução numérica de acidentes e doenças tipificadas como do trabalho, não se pode, a rigor, falar da diminuição do risco social do trabalho que pode existir sem que haja conhecimento dele e sem que ele necessariamente desperte medo.
A despeito das mudanças quantitativas da força de trabalho requerida e dos avanços tecnológicos, o trabalho continua sendo um dos pilares fundamentais indispensáveis à produção, industrial ou não, no campo e na cidade, conquanto se utilize cada vez mais a automação e cada vez mais o operário moderno se distancie do artesanato e da manufatura.
São fatos irrecusáveis as mudanças da natureza do trabalho, a automação crescente dos processos produtivos, as alterações do perfil e alocação da força de trabalho e dos acidentes e doenças e de suas relações e correlações. Essa complexidade, atribuída à automação, leva alguns ideológicos a inferir e difundir, ao mesmo tempo, o fim próximo da necessidade do trabalho e de seus efeitos sobre a saúde física, trazendo como consequências imediatas o medo do desemprego e debilitação da resistência dos trabalhadores às novas exigências do trabalho, induzindo-os a acreditar no aperfeiçoamento infinito das máquinas ao ponto da produção vir a prescindir do trabalho.
O homem, que não é máquina, é devagar e erra; mas a máquina que ele constrói, supostamente, erra menos. Por certo um paradoxo, mas que desperta a intenção e ação de exigir a todos comportamentos automatizados. E se há incentivos materiais ou sociais que remunerem este confronto mudo, tanto melhor. Deste modo reativo, o medo se transforma em desafio e o confronto com o instrumento de trabalho, a máquina, aumenta a angústia e, ao mesmo tempo, a produtividade.
Historicamente, o aumento da produtividade pós-revolução industrial repousou na exploração extensiva e intensiva da força de trabalho e na incorporação de novas tecnologias. Nenhum desses componentes desapareceu; a apropriação de inovações tecnológicas tem servido para intensificar o trabalho, manter praticamente a mesma jornada de um século atrás e baratear seu custo sob a ameaça do desemprego. As máquinas modernas não são apenas mais velozes e precisas: induzem os trabalhadores a também sê-lo por necessidade e medo.
Para muitos trabalhadores, este confronto induzido e desigual resulta em problemas de saúde e doenças que são formas não reconhecidas e individuais de expressar o sofrimento com o trabalho e a vida. Porém, o adoecimento tem ganho dimensões coletivas e atingido trabalhadores de várias categoriais, revelando o aguçamento do conflito do trabalhador com o seu trabalho, tendo como pano de fundo as contradições entre o trabalho e o capital. O exemplo emblemático mais recente é o das Lesões por Esforços Repetitivos/LER. O trabalho e o medo se fizeram LER.
Agora são muitos os adoecidos por LER. Só assim, com a expansão da doença,
a informação sobre uma das suas causas imediatas, mas nem sempre presente, os esforços repetitivos no trabalho, chegou aos trabalhadores. Mas se a dor e a informação sobre as possíveis causas constituem elementos fundamentais para o conhecimento de cada adoecido, ainda não foram suficientes para gerar ações eficazes para evitá-las, recuperar a saúde perdida e facilitar o retorno ao trabalho. Ao contrário, a informação tem sido acompanhada de amargas experiências das vítimas quando se movem para cuidar-se, perseguir direitos e preservar empregos. Assim, o medo tem crescido: nos adoecidos por se sentirem incapacitados para o trabalho, expurgados ou demitidos; nos sintomáticos de estarem adoecendo e nos assintomáticos de virem a ser doentes.
Ou seja, só o conhecimento não é bastante; é preciso que transcenda o caráter de informação e vivencia pessoal e torne-se conhecimento coletivo e qualificado para ação de todos, adoecidos e não adoecidos, propicie políticas e ações coletivas e antecipatórias. Lamentavelmente, porém, a estratégia mais comum, compreensível mas de fôlego curto, é defensiva, pessoal ou quando muito do grupo adoecido, visando o exercício de direitos e benefícios individuais de compensação, frequentemente negados ou postergados.
As políticas do Estado brasileiro na área de saúde do trabalhador
Diz-se com frequência que o Estado nacional não tem uma política para a área do trabalhador e, menos ainda, para a de saúde. Há quem pense de outro modo: “(...) a escravidão, a migração, o contrato de serviços, a deportação de trabalhadores, o regime de assalariamento foram regulamentados nessa instância de governo (...) a legislação em questão compreende as leis, as resoluções ministeriais (portarias), os decretos” (Faleiros, 1992).
Sem quebra desta tradição, hoje toda a legislação que concerne as relações do trabalho com a saúde emanam do Ministério do Trabalho, via decretos, portarias e normas, as mais conhecidas do público sendo as normas regulamentadores (NR); é este ministério que conduz as práticas nesta área, através dos seus órgãos centrais e regionais. Trata-se, pois, de uma política que vem de longe, acompanhando, a seu modo, o processo de implantação do capitalismo industrial no país, reconhecidamente tardio e subalterno.
As determinantes destas políticas e normalização jurídica-administrativa são, pois, históricas e de caráter econômico-social. Se seus enunciados alardeados como socialmente generosos colidem com a prática e o prescrito se distancia do real, sejamos justo: isto se dá menos por desídia dos que devem cumpri-las e mais pelas pressões implícitas e explícitas de quem exerce o poder concreto, no caso, o capital. A tecnicidade jurídica formal da legislação e sua aplicabilidade são aspectos absolutamente secundários.
Não se entenda, porém, que essa legislação - e menos ainda as práticas dos órgãos incumbidos de impô-las e executá-las - expressem tão somente a vontade dos dominadores; elas emanam de relações sociais reais entre o capital e o trabalho, intrinsecamente dinâmicas, conflituosas e sempre desiguais. Inclinam-se mais em favor do patronato, porém, conjuntural e circunstancialmente, podem pender para a classe trabalhadora. De qualquer sorte, importam menos o texto e os instrumentos de aplicação que os resultados; e esses têm sido pífios no Brasil, como mostra sua casuística de acidentes e doenças do trabalho ao longo dos últimos sessenta anos.
Não se lhes negue, porém eficiência em atingir outro resultado: amenizar as relações conflituosas entre capital e trabalho, impedindo que suas consequências visíveis e antissociais, como são os acidentes e as doenças de trabalho, fujam do controle e adquiram feições incontroláveis e desdobramentos imprevisíveis.
Trata-se, pois, de uma política de controle social; controle que conquanto seja exercido por quem detém o poder, ou se faz representar, não é absoluto, obrigado que é a concessões e ao estabelecimento de “limites de tolerância” negociados com a outra parte, subordinada mas não passiva. Esse controle não significa tão somente o simples e abstrato exercício diletante do poder, de dominação pura, discutível no plano da ética; mas de uma dominação objetiva, de, materialmente, garantir o processo de acumulação do capital, a partir da manutenção das relações de produção e trabalho.
Contudo, essa dominação histórica, de natureza econômica e social é mutável; não se basta e procura adotar políticas e ações flexíveis, através do Estado, visando dinamicamente regular os conflitos entre o capital e o trabalho, de acordo com conjunturas e circunstâncias. Estas, em determinados momentos tendem a favorecer o trabalho, em outros, na maioria das vezes, ao capital. Por isso, quando se intentar mudanças nas políticas e ações públicas nesta área é preciso estar atento às condições estruturais, tanto quanto a essas outras.
Não existe, pois, a possibilidade de instituir modelos racionais que deem conta das relações impróprias do trabalho com a saúde, embora seja possível intervir para melhorá-las, desde que se atente para os diversos elementos contraditórios, favoráveis e desfavoráveis. É em função deles que o Estado se move, oscilando no tempo e no espaço, representando sempre a classe dominante, mas obrigado a absorver as demandas do conjunto da sociedade. Ele articula heterogeneidades, legisla e age em função delas e ao sabor das forças sociais em conflito.
Revelando sua visão gradualista, analistas identificados com as atuais políticas e ações do Estado capitalista na área, sustentam que elas têm melhorado e apontam como resultado desta evolução a redução do número dos acidentes e doenças tipificadas como do trabalho em todos os países industrializados, mesmo nos tardiamente industrializados, como o Brasil, consequência, creem, de uma legislação mais rigorosa e uma fiscalização específica, Os que assim concebem, sem afirmar explicitamente a naturalidade dos problemas sociais, incorporam a tese e advogam que as oscilações devem ser buscadas no campo da racionalidade pura e passiva, com base na crença de humanização abstrata dos valores humanos, morais e éticos que nada ou pouco teriam com os conflitos sociais, Outros, como Faleiros, pensam de modo diferente.
Ainda que se tome por base os resultados da queda do numero de acidentes e doenças tipificadas do trabalho e se aceite como real, ela não pode se entendida como reflexo das políticas e ações do Estado, É preciso atentar para o desenvolvimento histórico das forças produtivas, as crises inerentes ao sistema de produção capitalista e os conflitos sociais subjacentes, antes de concluir sobre uma relação de causalidade tão estreita entre a legislação e ações do Estado para explicar a queda dos infortúnios explícitos do trabalho ocorrida na segunda metade do século XX e entre 1970 e 1990 no Brasil. Essa queda no transcurso do presente ciclo de desenvolvimento e crise do capitalismo é um fato e não surpreende quando se aborda historicamente o que é apenas um dos seus epifenômenos: os acidentes e doenças típicos do trabalho.
A automação da produção é o resultado de uma busca incessante de substituir o trabalho vivo, humano pelo trabalho morto da máquina. Enquanto se espicha a maquinação da produção, o trabalho humano se faz cada vez mais compacto e intensivo. É uma tendência histórica e inexorável do modo de produção capitalista.
No correr do primeiro ciclo da revolução industrial na Europa, o maquinário era rudimentar e, por conseguinte, baixo o nível de automação, a produção a requer jornadas extensas de trabalho; ou seja, a produtividade na fábrica estava assentada fundamentalmente no trabalho humano. Os conflitos do trabalho com o capital estavam centrados na remuneração e extensão da jornada, na exploração impiedosa da força de trabalho constituída em sua maior parte por mulheres e menores e no seu controle físico e onipotência da capatazia.
Foram as lutas operárias, por mais de um século, que obrigaram o Estado intervir visando reduzir a violência escandalosa, moralmente insustentável mesmo para a época, culminando em uma legislação específica que passou a regulamentar a jornada de trabalho, fixando-a em 12 horas para adultos e em tempo menor para crianças, se as proibindo de trabalhar à noite.
Se neste aspecto importante, embora restrito, as condições de trabalho melhoraram, em outros pioraram; tanto que a partir do meado do século XIX, o número de acidentes e doenças típicas aumentou o que fez recrudescer as lutas operárias e os movimentos sociais em defesa da vida e da saúde dos trabalhadores. Estes movimentos abriram espaço para uma legislação voltado então para a assistência médica dentro e fora do trabalho e para a previdência social dos trabalhadores. Era e continua a ser uma legislação voltada para o acontecido, fundamentalmente preocupada com a compensação pecuniária dos acidentes e doenças do trabalho e minimizar suas consequências, mas de nenhuma eficácia para reduzi-las.
Nas décadas que se seguiram, em todos os países industrializados da Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, as ocorrências mórbidas ocasionadas diretamente pelo trabalho, principalmente os acidentes, cresceram em número e gravidade, à medida que a produção industrial crescia e a indústria pesada, comandada pela síderometalurgia, transporte e química, assumiam a liderança do desenvolvimento industrial em substituição à manufatura têxtil. Os efeitos das políticas e ações do Estado, apoiadas em uma legislação essencialmente de compensação pecuniária para a coibição de tais agravos, só poderiam ser pífios.
Este “lavar de mãos” do capital e do Estado tinha como premissa teórica a naturalidade desses agravos, ou seja, tratar-se-ia de uma exposição natural e não uma sujeição social ao risco determinada por relações de produção, vale dizer, pelas relações entre quem detém a propriedade dos meios e instrumentos de produção e quem, por não possuí-los, vende força de trabalho. Se a exposição ao risco é tida como natural, cumpre aos próprios trabalhadores pagarem com a saúde e com descontos de seus salários para fazerem jus à assistência médica e aos benefícios de um serviço social e previdenciário quando adoecem, se incapacitam ou morrem.
Por todo este tempo, a produção foi se automatizando, o trabalho se tornando mais intensivo e a produtividade crescendo. Marx (1975) já apontava a inexorabilidade deste fenômeno há 150 anos atrás, dizendo que era inerente ao capitalismo trilhar este caminho, fechando os poros ou tempos vazios das máquinas e homens no trabalho, impondo, em busca de maior produtividade e por força da concorrência, a produção ininterrupta que exaure os meios e instrumentos de trabalho e o trabalhador.
Os mais crédulos imaginavam que a elevação da produtividade viria a diminuir a jornada de trabalho e aumentar os tempos de ócio e lazer. Ledo engano, pois não é isto que o capital busca e sim maior e mais diversificada produção, maior produtividade de cada trabalhador e maiores lucros. Não é de estranhar que apesar da jornada nominal de trabalho estar há cem anos fixada em torno de oito horas, no albor do século XXI trabalha-se invariavelmente muito mais, sob a ameaça permanente de se perder o emprego, enquanto o desemprego estrutural cresce em todo o mundo.
Vivemos sob o modo de produção capitalista e a função inerente do Estado capitalista é defender os interesses do capital; mas não o satanizemos, entendendo que o Estado faz o que quer e como quer. Ele atua dentro de limites, fazendo o que lhe é dado fazer, mas condicionado em suas políticas e ações pelas forças sociais em conflito.
As políticas e a legislação que orientam as práticas do Estado guardam este caráter restrito, ate certo ponto ambíguo, sempre desigual: serve mais o lado que ele efetivamente representa; obriga-se, porém, a levar em consideração os dominados, a classe trabalhadora. Esta nasceu com e dentro deste modo de produção e vem se fortalecendo ao longo da História, logrando razoável nível de organização e força que para ser contida precisa de concessões e repressões.
Entre nós, serviços especializados de segurança e medicina do trabalho (SESMT), comissões internas de acidentes de trabalho (CIPAS), serviços médicos (SM) das empresas, normalizados pelo Estado brasileiro por meio de legislação específica, são expressões daquelas contradições e de uma forma de ingerência estatal consentida pelo capital. Sabe-se a ineficácia destes instrumentos, haja vista o crescimento dos infortúnios do trabalho em todo o período de vigência, transcorrido quase sempre em governos de exceção. Mas eles cumprem vários papéis, em primeiro lugar por serem órgãos das próprias empresas ou a elas subordinados, em sua maioria integrados por profissionais de nível superior, o que lhes confere respeitabilidade técnico-científica e sustenta uma apregoada neutralidade. Mas todos estes profissionais, sem exceção, são trabalhadores assalariados e como tal subordinados às empresas.
O que os diferenciam dos outros que atuam para o Estado ou em sindicatos , mais do que a natureza do trabalho técnico que realizam e a remuneração invariavelmente mais alta que recebem, é o caráter menos conflituoso das relações sociais que mantêm com o capital pelas mesmas razões e pela identidade ideológica que têm com seus empregadores. Vide os serviços médicos periciais do próprio Estado Afinal, o que lhes é dado fazer é menor, insuficientemente feito, mal feito ou não feito: o de preservar a saúde e a vida dos trabalhadores dos riscos a que estão sujeitos; o que mais fazem e silenciam é gerenciar os interesses do capital no campo da saúde e segurança do trabalho, suprindo com sua presença as exigências jurídicas formais do Estado.
Percorrendo a história das políticas e da legislação do Estado brasileiro, Faleiros (op. cit.) identifica quatro momentos, segundo as suas características mais visíveis: as do Estado oligárquico pré-revolução de 1930; as do Estado corporativista entre 1930 e 1945; as do Estado populista, entre 1945 e 1964, e as do Estado autoritário (1964-1985). Para este autor cada um deles teve políticas e legislação diferenciadas de acordo com as etapas e peculiaridades do processo e desenvolvimento das forças sociais no capitalismo brasileiro.
No Estado oligárquico teria prevalecido uma legislação indenizatória bastante aleatória, no corporativista e populista, legislações marcadas pela preocupação com a inserção no mercado de trabalho e no autoritário, pelo discurso prevencionista, esclareça-se, de auto-prevenção por parte do trabalhador.
Analisando a periodização de Faleiros percebe-se uma tendência à consolidação de uma legislação trabalhista que acompanha o processo de industrialização, mas também de acerbo do conflito entre o capital e o trabalho que deu mostras na greve geral de 1919 em São Paulo que resultou na primeira lei acidentária do país, uma lei de cunho tutelar e paternalista: o Estado, investido do poder de polícia, a legislar sobre as obrigações do outro, no caso as empresas, com base na teoria do ”risco profissional”, objetivo, obrigando-as a reparar financeiramente os danos à saúde dos trabalhadores (art. 19, parágrafo 1º e 2º da lei 3.724 de 15.01.1919). Não há nesse texto legal qualquer referencia à prevenção quanto às condições e ambientes de trabalho, cuidando a lei de reparar a saúde com a assistência médica e com o sustento material imediato ao trabalhador providenciando a indenização pecuniária por sua incapacidade temporária ou definitiva.
Surgida do rescaldo do calor da greve de 1919, o destino da lei era tão só os trabalhadores urbanos e, no campo, os que lidavam com máquinas. Apesar de representar um avanço social, ela introduziu o negócio de seguro, isto é, forte componente mercantil. Faleiros salienta que as políticas de saúde do Estado nesta área são estruturadas sempre em articulações ligadas aos interesses de um capitalismo dependente do capital financeiro, “experimentando contradições que são próprias à conjuntura particular das relações sociais de uma determinada época”. É preciso, segundo ele, levar em conta, ao mesmo tempo, as condições de reprodução do capital, a manutenção da ordem social e sua legitimidade e, por outro lado, os agentes e interrelações dos grupos de interesse e pressão. Ou seja, as questões estruturais e as questões de conjunturas, as macro e micropolíticas.
A insistência procede para que não se caia no determinismo econômico genérico, fundamentalista, do capital sobre o trabalho, nem na exclusividade das contradições entre os agentes que mediam suas relações. É preciso, como adverte, atentar para os ciclos ou fases do capitalismo que está se vivendo; quer dizer a noção do tempo histórico, dos espaços social, cultural e geográfico. O Estado ainda que seja capitalista, não é um instrumento exclusivo de uma classe ou força social, nem mesmo daquela que ele de fato representa, nem simples e honrado árbitro. Ele é atravessado por forças sociais em conflito e por múltiplas exigências estruturais e conjunturais de um capitalismo periférico, tardio e submisso. Por condensar essas contradições em decorrência de sua natureza intrinsecamente contraditória é ele quem fala em consenso social... Produto de relações de dominação/subordinação, cumpri-lhe elaborar proposta de consenso ou tentá-los, ao mesmo tempo em que elege estratégias de legitimação social. Até os dias atuais, o autoritarismo, o clientelismo/paternalismo e o burocratismo integram as estratégias do Estado brasileiro.
Referências bibliográficas:
FALEIROS, V.P.: O Trabalho da Política: Saúde e Segurança dos Trabalhadores. São Paulo, Cortez, 1992.
MARX, K.: O Capital. Crítica da Economia Política. O Processo de produção do capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, livro 1, v. 1.
RIBEIRO, H.P.: Violência Oculta do Trabalho. As Lesões por Esforços Repetitivos. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1999.
(*) Doutor em saúde pública (USP); pesquisador e colaborador docente em saúde coletiva da UNIFESP
A aceitação da exploração do trabalho e a exposição ao risco decorrem da necessidade de sobrevivência; vista pelo avesso, a obediência, ganhou status de virtude e a recusa em expor-se a ele, a de covardia. São extremos de conduta social, exclusivamente humanos, que somam instinto, sociabilidade, moralidade e moralismo. Portanto, risco e subordinação são conceitos arraigados em práticas que atravessam a história e se universalizaram com o capitalismo.
A história da humanidade é, também, a história dos valores sociais como esses, vale dizer, do poder das regras sobre o instinto, ainda que seja sobre o instinto de sobrevivência. É preciso, segundo o discurso normativo, que as haja para que literalmente não nos devoremos uns aos outros, importando pouco se este canibalismo, moralmente condenado, seja virtual, através da exploração e adquira feições violentas dentro e fora do trabalho.
O que determina a obediência em situações críticas? O que leva o indivíduo a se sujeitar ao risco e à morte, justo o que ele mais teme? O que o faz abdicar de sua vontade e consciência? O que o torna tão submisso a despeito de ameaça tão onipresente?
Ferir-se, adoecer e morrer do trabalho são possibilidades, abstrações; podem ou não acontecer. Negar-se a este risco socialmente determinado implica de imediato em alguma forma de sanção. Quem se nega a obedecer é punido: na guerra como covarde, no trabalho como insubordinado e fora dele como contraventor. São ápodos morais que resultam em processos de exclusão social e induz ao medo de não ser mais aceito, ser demitido, perder os meios de sobrevivência e a liberdade, medo da morte em vida.
Nesses dois séculos de revolução industrial, os processos de produção e as relações sociais mudaram muito e com eles a natureza e frequência dos riscos e a qualidade dos danos. Sua materialidade é expressa pela exuberância dos números e gravidade dos acidentes e doenças do trabalho que continuam ceifando a saúde e vida de centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo. Mas, ao par destes danos que desintegram fisicamente o trabalhador, há outros riscos imateriais e danos sutis que rompem sua integridade psíquica e afetiva e o fazem adoecer.
Em tais situações, seja o risco físico ou imaterial, o medo está presente sob formas e graus diferentes, resultado da percepção abstrata da sua presença. Diante do perigo pressentido, ainda que não materializado, o trabalhador se pune com a angústia, preâmbulo do adoecimento. Sente-se inseguro por não saber ou por ter medo de errar e ter de arcar com as consequências.
Saber sobre o trabalho e seus presumidos riscos, sejam naturais ou sociais, mesmo que não se os possa eliminar, é uma forma de assumir, em parte, o domínio da situação e coibir a angústia. Mas, ainda que, até certo ponto, saber seja profilático, não é suficiente para coibir o risco e o dano, sobretudo se sua determinação é social e as relações de poder persistem embora, historicamente, mudem de qualidade (Ribeiro, 1999).
Inescapáveis ou não, risco e medo fazem o homem engendrar estratégias para poupar-se, tanto mais eficazes quanto maior seu conhecimento sobre o risco. No final do século XIX, os riscos matérias no trabalho se tornaram excessivamente banais em decorrência da aceleração e intensidade dos processos produtivos, calcadas na apropriação e incorporação de tecnologias novas e novas relações sociais. Ainda que predominantemente físicos, eram de outro tipo, mais frequentes e com consequências mais graves, acabando por se tornarem escândalo social e uma questão pública. Desgraçadamente, à medida que cresciam, em número e gravidade, aumentavam também a complexidade dos processos produtivos, o desconhecimento dos trabalhadores, a impossibilidade de conhecerem o próprio trabalho e a perda de autonomia dentro e fora do emprego.
Com a incorporação das novas tecnologias e maior automação dos processos produtivos, o dano imediato e a morte no trabalho passaram a ser menos frequentes; com o que o medo da perda física de partes do corpo ou da vida diminuiu; porém cresceram outros tipos de risco e danos à saúde, como os relacionados à intensidade e pressão do trabalho, à insegurança no emprego que causam distúrbios orgânicos e psíquicos que podem levar à incapacidade e à exclusão social. Há, pois, diferenças qualitativas de medo.
Nos países mais industrializados, mais da metade da força de trabalho está hoje alocada no setor terciário da economia, a maior parte a realizar tarefas de escrituração e de comércio onde predominam os riscos imateriais e os danos sobre o psiquismo; os riscos físicos e a mortalidade são altas apenas em algumas atividades do setor, como no ramo de transportes e segurança.
Mesmo nas atividades industriais e agropecuárias, a probabilidade atual imediata de adoecer ou morrer devido os riscos físicos do trabalho, está se tornando progressivamente menos expressiva em função da automação dos processos produtivos e da diminuição relativa da força de trabalho. Contudo, apesar da redução numérica de acidentes e doenças tipificadas como do trabalho, não se pode, a rigor, falar da diminuição do risco social do trabalho que pode existir sem que haja conhecimento dele e sem que ele necessariamente desperte medo.
A despeito das mudanças quantitativas da força de trabalho requerida e dos avanços tecnológicos, o trabalho continua sendo um dos pilares fundamentais indispensáveis à produção, industrial ou não, no campo e na cidade, conquanto se utilize cada vez mais a automação e cada vez mais o operário moderno se distancie do artesanato e da manufatura.
São fatos irrecusáveis as mudanças da natureza do trabalho, a automação crescente dos processos produtivos, as alterações do perfil e alocação da força de trabalho e dos acidentes e doenças e de suas relações e correlações. Essa complexidade, atribuída à automação, leva alguns ideológicos a inferir e difundir, ao mesmo tempo, o fim próximo da necessidade do trabalho e de seus efeitos sobre a saúde física, trazendo como consequências imediatas o medo do desemprego e debilitação da resistência dos trabalhadores às novas exigências do trabalho, induzindo-os a acreditar no aperfeiçoamento infinito das máquinas ao ponto da produção vir a prescindir do trabalho.
O homem, que não é máquina, é devagar e erra; mas a máquina que ele constrói, supostamente, erra menos. Por certo um paradoxo, mas que desperta a intenção e ação de exigir a todos comportamentos automatizados. E se há incentivos materiais ou sociais que remunerem este confronto mudo, tanto melhor. Deste modo reativo, o medo se transforma em desafio e o confronto com o instrumento de trabalho, a máquina, aumenta a angústia e, ao mesmo tempo, a produtividade.
Historicamente, o aumento da produtividade pós-revolução industrial repousou na exploração extensiva e intensiva da força de trabalho e na incorporação de novas tecnologias. Nenhum desses componentes desapareceu; a apropriação de inovações tecnológicas tem servido para intensificar o trabalho, manter praticamente a mesma jornada de um século atrás e baratear seu custo sob a ameaça do desemprego. As máquinas modernas não são apenas mais velozes e precisas: induzem os trabalhadores a também sê-lo por necessidade e medo.
Para muitos trabalhadores, este confronto induzido e desigual resulta em problemas de saúde e doenças que são formas não reconhecidas e individuais de expressar o sofrimento com o trabalho e a vida. Porém, o adoecimento tem ganho dimensões coletivas e atingido trabalhadores de várias categoriais, revelando o aguçamento do conflito do trabalhador com o seu trabalho, tendo como pano de fundo as contradições entre o trabalho e o capital. O exemplo emblemático mais recente é o das Lesões por Esforços Repetitivos/LER. O trabalho e o medo se fizeram LER.
Agora são muitos os adoecidos por LER. Só assim, com a expansão da doença,
a informação sobre uma das suas causas imediatas, mas nem sempre presente, os esforços repetitivos no trabalho, chegou aos trabalhadores. Mas se a dor e a informação sobre as possíveis causas constituem elementos fundamentais para o conhecimento de cada adoecido, ainda não foram suficientes para gerar ações eficazes para evitá-las, recuperar a saúde perdida e facilitar o retorno ao trabalho. Ao contrário, a informação tem sido acompanhada de amargas experiências das vítimas quando se movem para cuidar-se, perseguir direitos e preservar empregos. Assim, o medo tem crescido: nos adoecidos por se sentirem incapacitados para o trabalho, expurgados ou demitidos; nos sintomáticos de estarem adoecendo e nos assintomáticos de virem a ser doentes.
Ou seja, só o conhecimento não é bastante; é preciso que transcenda o caráter de informação e vivencia pessoal e torne-se conhecimento coletivo e qualificado para ação de todos, adoecidos e não adoecidos, propicie políticas e ações coletivas e antecipatórias. Lamentavelmente, porém, a estratégia mais comum, compreensível mas de fôlego curto, é defensiva, pessoal ou quando muito do grupo adoecido, visando o exercício de direitos e benefícios individuais de compensação, frequentemente negados ou postergados.
As políticas do Estado brasileiro na área de saúde do trabalhador
Diz-se com frequência que o Estado nacional não tem uma política para a área do trabalhador e, menos ainda, para a de saúde. Há quem pense de outro modo: “(...) a escravidão, a migração, o contrato de serviços, a deportação de trabalhadores, o regime de assalariamento foram regulamentados nessa instância de governo (...) a legislação em questão compreende as leis, as resoluções ministeriais (portarias), os decretos” (Faleiros, 1992).
Sem quebra desta tradição, hoje toda a legislação que concerne as relações do trabalho com a saúde emanam do Ministério do Trabalho, via decretos, portarias e normas, as mais conhecidas do público sendo as normas regulamentadores (NR); é este ministério que conduz as práticas nesta área, através dos seus órgãos centrais e regionais. Trata-se, pois, de uma política que vem de longe, acompanhando, a seu modo, o processo de implantação do capitalismo industrial no país, reconhecidamente tardio e subalterno.
As determinantes destas políticas e normalização jurídica-administrativa são, pois, históricas e de caráter econômico-social. Se seus enunciados alardeados como socialmente generosos colidem com a prática e o prescrito se distancia do real, sejamos justo: isto se dá menos por desídia dos que devem cumpri-las e mais pelas pressões implícitas e explícitas de quem exerce o poder concreto, no caso, o capital. A tecnicidade jurídica formal da legislação e sua aplicabilidade são aspectos absolutamente secundários.
Não se entenda, porém, que essa legislação - e menos ainda as práticas dos órgãos incumbidos de impô-las e executá-las - expressem tão somente a vontade dos dominadores; elas emanam de relações sociais reais entre o capital e o trabalho, intrinsecamente dinâmicas, conflituosas e sempre desiguais. Inclinam-se mais em favor do patronato, porém, conjuntural e circunstancialmente, podem pender para a classe trabalhadora. De qualquer sorte, importam menos o texto e os instrumentos de aplicação que os resultados; e esses têm sido pífios no Brasil, como mostra sua casuística de acidentes e doenças do trabalho ao longo dos últimos sessenta anos.
Não se lhes negue, porém eficiência em atingir outro resultado: amenizar as relações conflituosas entre capital e trabalho, impedindo que suas consequências visíveis e antissociais, como são os acidentes e as doenças de trabalho, fujam do controle e adquiram feições incontroláveis e desdobramentos imprevisíveis.
Trata-se, pois, de uma política de controle social; controle que conquanto seja exercido por quem detém o poder, ou se faz representar, não é absoluto, obrigado que é a concessões e ao estabelecimento de “limites de tolerância” negociados com a outra parte, subordinada mas não passiva. Esse controle não significa tão somente o simples e abstrato exercício diletante do poder, de dominação pura, discutível no plano da ética; mas de uma dominação objetiva, de, materialmente, garantir o processo de acumulação do capital, a partir da manutenção das relações de produção e trabalho.
Contudo, essa dominação histórica, de natureza econômica e social é mutável; não se basta e procura adotar políticas e ações flexíveis, através do Estado, visando dinamicamente regular os conflitos entre o capital e o trabalho, de acordo com conjunturas e circunstâncias. Estas, em determinados momentos tendem a favorecer o trabalho, em outros, na maioria das vezes, ao capital. Por isso, quando se intentar mudanças nas políticas e ações públicas nesta área é preciso estar atento às condições estruturais, tanto quanto a essas outras.
Não existe, pois, a possibilidade de instituir modelos racionais que deem conta das relações impróprias do trabalho com a saúde, embora seja possível intervir para melhorá-las, desde que se atente para os diversos elementos contraditórios, favoráveis e desfavoráveis. É em função deles que o Estado se move, oscilando no tempo e no espaço, representando sempre a classe dominante, mas obrigado a absorver as demandas do conjunto da sociedade. Ele articula heterogeneidades, legisla e age em função delas e ao sabor das forças sociais em conflito.
Revelando sua visão gradualista, analistas identificados com as atuais políticas e ações do Estado capitalista na área, sustentam que elas têm melhorado e apontam como resultado desta evolução a redução do número dos acidentes e doenças tipificadas como do trabalho em todos os países industrializados, mesmo nos tardiamente industrializados, como o Brasil, consequência, creem, de uma legislação mais rigorosa e uma fiscalização específica, Os que assim concebem, sem afirmar explicitamente a naturalidade dos problemas sociais, incorporam a tese e advogam que as oscilações devem ser buscadas no campo da racionalidade pura e passiva, com base na crença de humanização abstrata dos valores humanos, morais e éticos que nada ou pouco teriam com os conflitos sociais, Outros, como Faleiros, pensam de modo diferente.
Ainda que se tome por base os resultados da queda do numero de acidentes e doenças tipificadas do trabalho e se aceite como real, ela não pode se entendida como reflexo das políticas e ações do Estado, É preciso atentar para o desenvolvimento histórico das forças produtivas, as crises inerentes ao sistema de produção capitalista e os conflitos sociais subjacentes, antes de concluir sobre uma relação de causalidade tão estreita entre a legislação e ações do Estado para explicar a queda dos infortúnios explícitos do trabalho ocorrida na segunda metade do século XX e entre 1970 e 1990 no Brasil. Essa queda no transcurso do presente ciclo de desenvolvimento e crise do capitalismo é um fato e não surpreende quando se aborda historicamente o que é apenas um dos seus epifenômenos: os acidentes e doenças típicos do trabalho.
A automação da produção é o resultado de uma busca incessante de substituir o trabalho vivo, humano pelo trabalho morto da máquina. Enquanto se espicha a maquinação da produção, o trabalho humano se faz cada vez mais compacto e intensivo. É uma tendência histórica e inexorável do modo de produção capitalista.
No correr do primeiro ciclo da revolução industrial na Europa, o maquinário era rudimentar e, por conseguinte, baixo o nível de automação, a produção a requer jornadas extensas de trabalho; ou seja, a produtividade na fábrica estava assentada fundamentalmente no trabalho humano. Os conflitos do trabalho com o capital estavam centrados na remuneração e extensão da jornada, na exploração impiedosa da força de trabalho constituída em sua maior parte por mulheres e menores e no seu controle físico e onipotência da capatazia.
Foram as lutas operárias, por mais de um século, que obrigaram o Estado intervir visando reduzir a violência escandalosa, moralmente insustentável mesmo para a época, culminando em uma legislação específica que passou a regulamentar a jornada de trabalho, fixando-a em 12 horas para adultos e em tempo menor para crianças, se as proibindo de trabalhar à noite.
Se neste aspecto importante, embora restrito, as condições de trabalho melhoraram, em outros pioraram; tanto que a partir do meado do século XIX, o número de acidentes e doenças típicas aumentou o que fez recrudescer as lutas operárias e os movimentos sociais em defesa da vida e da saúde dos trabalhadores. Estes movimentos abriram espaço para uma legislação voltado então para a assistência médica dentro e fora do trabalho e para a previdência social dos trabalhadores. Era e continua a ser uma legislação voltada para o acontecido, fundamentalmente preocupada com a compensação pecuniária dos acidentes e doenças do trabalho e minimizar suas consequências, mas de nenhuma eficácia para reduzi-las.
Nas décadas que se seguiram, em todos os países industrializados da Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, as ocorrências mórbidas ocasionadas diretamente pelo trabalho, principalmente os acidentes, cresceram em número e gravidade, à medida que a produção industrial crescia e a indústria pesada, comandada pela síderometalurgia, transporte e química, assumiam a liderança do desenvolvimento industrial em substituição à manufatura têxtil. Os efeitos das políticas e ações do Estado, apoiadas em uma legislação essencialmente de compensação pecuniária para a coibição de tais agravos, só poderiam ser pífios.
Este “lavar de mãos” do capital e do Estado tinha como premissa teórica a naturalidade desses agravos, ou seja, tratar-se-ia de uma exposição natural e não uma sujeição social ao risco determinada por relações de produção, vale dizer, pelas relações entre quem detém a propriedade dos meios e instrumentos de produção e quem, por não possuí-los, vende força de trabalho. Se a exposição ao risco é tida como natural, cumpre aos próprios trabalhadores pagarem com a saúde e com descontos de seus salários para fazerem jus à assistência médica e aos benefícios de um serviço social e previdenciário quando adoecem, se incapacitam ou morrem.
Por todo este tempo, a produção foi se automatizando, o trabalho se tornando mais intensivo e a produtividade crescendo. Marx (1975) já apontava a inexorabilidade deste fenômeno há 150 anos atrás, dizendo que era inerente ao capitalismo trilhar este caminho, fechando os poros ou tempos vazios das máquinas e homens no trabalho, impondo, em busca de maior produtividade e por força da concorrência, a produção ininterrupta que exaure os meios e instrumentos de trabalho e o trabalhador.
Os mais crédulos imaginavam que a elevação da produtividade viria a diminuir a jornada de trabalho e aumentar os tempos de ócio e lazer. Ledo engano, pois não é isto que o capital busca e sim maior e mais diversificada produção, maior produtividade de cada trabalhador e maiores lucros. Não é de estranhar que apesar da jornada nominal de trabalho estar há cem anos fixada em torno de oito horas, no albor do século XXI trabalha-se invariavelmente muito mais, sob a ameaça permanente de se perder o emprego, enquanto o desemprego estrutural cresce em todo o mundo.
Vivemos sob o modo de produção capitalista e a função inerente do Estado capitalista é defender os interesses do capital; mas não o satanizemos, entendendo que o Estado faz o que quer e como quer. Ele atua dentro de limites, fazendo o que lhe é dado fazer, mas condicionado em suas políticas e ações pelas forças sociais em conflito.
As políticas e a legislação que orientam as práticas do Estado guardam este caráter restrito, ate certo ponto ambíguo, sempre desigual: serve mais o lado que ele efetivamente representa; obriga-se, porém, a levar em consideração os dominados, a classe trabalhadora. Esta nasceu com e dentro deste modo de produção e vem se fortalecendo ao longo da História, logrando razoável nível de organização e força que para ser contida precisa de concessões e repressões.
Entre nós, serviços especializados de segurança e medicina do trabalho (SESMT), comissões internas de acidentes de trabalho (CIPAS), serviços médicos (SM) das empresas, normalizados pelo Estado brasileiro por meio de legislação específica, são expressões daquelas contradições e de uma forma de ingerência estatal consentida pelo capital. Sabe-se a ineficácia destes instrumentos, haja vista o crescimento dos infortúnios do trabalho em todo o período de vigência, transcorrido quase sempre em governos de exceção. Mas eles cumprem vários papéis, em primeiro lugar por serem órgãos das próprias empresas ou a elas subordinados, em sua maioria integrados por profissionais de nível superior, o que lhes confere respeitabilidade técnico-científica e sustenta uma apregoada neutralidade. Mas todos estes profissionais, sem exceção, são trabalhadores assalariados e como tal subordinados às empresas.
O que os diferenciam dos outros que atuam para o Estado ou em sindicatos , mais do que a natureza do trabalho técnico que realizam e a remuneração invariavelmente mais alta que recebem, é o caráter menos conflituoso das relações sociais que mantêm com o capital pelas mesmas razões e pela identidade ideológica que têm com seus empregadores. Vide os serviços médicos periciais do próprio Estado Afinal, o que lhes é dado fazer é menor, insuficientemente feito, mal feito ou não feito: o de preservar a saúde e a vida dos trabalhadores dos riscos a que estão sujeitos; o que mais fazem e silenciam é gerenciar os interesses do capital no campo da saúde e segurança do trabalho, suprindo com sua presença as exigências jurídicas formais do Estado.
Percorrendo a história das políticas e da legislação do Estado brasileiro, Faleiros (op. cit.) identifica quatro momentos, segundo as suas características mais visíveis: as do Estado oligárquico pré-revolução de 1930; as do Estado corporativista entre 1930 e 1945; as do Estado populista, entre 1945 e 1964, e as do Estado autoritário (1964-1985). Para este autor cada um deles teve políticas e legislação diferenciadas de acordo com as etapas e peculiaridades do processo e desenvolvimento das forças sociais no capitalismo brasileiro.
No Estado oligárquico teria prevalecido uma legislação indenizatória bastante aleatória, no corporativista e populista, legislações marcadas pela preocupação com a inserção no mercado de trabalho e no autoritário, pelo discurso prevencionista, esclareça-se, de auto-prevenção por parte do trabalhador.
Analisando a periodização de Faleiros percebe-se uma tendência à consolidação de uma legislação trabalhista que acompanha o processo de industrialização, mas também de acerbo do conflito entre o capital e o trabalho que deu mostras na greve geral de 1919 em São Paulo que resultou na primeira lei acidentária do país, uma lei de cunho tutelar e paternalista: o Estado, investido do poder de polícia, a legislar sobre as obrigações do outro, no caso as empresas, com base na teoria do ”risco profissional”, objetivo, obrigando-as a reparar financeiramente os danos à saúde dos trabalhadores (art. 19, parágrafo 1º e 2º da lei 3.724 de 15.01.1919). Não há nesse texto legal qualquer referencia à prevenção quanto às condições e ambientes de trabalho, cuidando a lei de reparar a saúde com a assistência médica e com o sustento material imediato ao trabalhador providenciando a indenização pecuniária por sua incapacidade temporária ou definitiva.
Surgida do rescaldo do calor da greve de 1919, o destino da lei era tão só os trabalhadores urbanos e, no campo, os que lidavam com máquinas. Apesar de representar um avanço social, ela introduziu o negócio de seguro, isto é, forte componente mercantil. Faleiros salienta que as políticas de saúde do Estado nesta área são estruturadas sempre em articulações ligadas aos interesses de um capitalismo dependente do capital financeiro, “experimentando contradições que são próprias à conjuntura particular das relações sociais de uma determinada época”. É preciso, segundo ele, levar em conta, ao mesmo tempo, as condições de reprodução do capital, a manutenção da ordem social e sua legitimidade e, por outro lado, os agentes e interrelações dos grupos de interesse e pressão. Ou seja, as questões estruturais e as questões de conjunturas, as macro e micropolíticas.
A insistência procede para que não se caia no determinismo econômico genérico, fundamentalista, do capital sobre o trabalho, nem na exclusividade das contradições entre os agentes que mediam suas relações. É preciso, como adverte, atentar para os ciclos ou fases do capitalismo que está se vivendo; quer dizer a noção do tempo histórico, dos espaços social, cultural e geográfico. O Estado ainda que seja capitalista, não é um instrumento exclusivo de uma classe ou força social, nem mesmo daquela que ele de fato representa, nem simples e honrado árbitro. Ele é atravessado por forças sociais em conflito e por múltiplas exigências estruturais e conjunturais de um capitalismo periférico, tardio e submisso. Por condensar essas contradições em decorrência de sua natureza intrinsecamente contraditória é ele quem fala em consenso social... Produto de relações de dominação/subordinação, cumpri-lhe elaborar proposta de consenso ou tentá-los, ao mesmo tempo em que elege estratégias de legitimação social. Até os dias atuais, o autoritarismo, o clientelismo/paternalismo e o burocratismo integram as estratégias do Estado brasileiro.
Referências bibliográficas:
FALEIROS, V.P.: O Trabalho da Política: Saúde e Segurança dos Trabalhadores. São Paulo, Cortez, 1992.
MARX, K.: O Capital. Crítica da Economia Política. O Processo de produção do capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, livro 1, v. 1.
RIBEIRO, H.P.: Violência Oculta do Trabalho. As Lesões por Esforços Repetitivos. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1999.
(*) Doutor em saúde pública (USP); pesquisador e colaborador docente em saúde coletiva da UNIFESP
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