segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Brasil rural: democracia, participação e conflito

carta maior
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O Brasil rural: democracia, participação e conflito

Desde 2003, o governo federal vem buscando fortalecer mecanismos de participação social voltados ao planejamento e ao debate de políticas públicas.


Silvia Aparecida Zimmermann
Arquivo

Criados na década de 1990, diferentes mecanismos de participação social voltados ao planejamento e ao debate de políticas públicas passavam por certo esvaziamento.

Desde 2003 o governo federal busca fortalecê-los.

A meta é aproximar Estado e sociedade na elaboração das políticas, estabelecendo maior igualdade e legitimidade a esse processo.

Não é um caminho linear.

Elogios ao fortalecimento dos espaços públicos e inovações democráticas não raro se deparam com críticas que, paradoxalmente, enxergam nesses espaços um ardiloso reforço à manutenção de uma estrutura de dominação política e econômica forjada e perpetuada pelo próprio Estado.

Na agricultura brasileira, os instrumentos consultivos associados às políticas públicas setoriais reproduzem distintas visões e concepções --e não raro antagônicas-- de desenvolvimento para o mundo rural.

Simplificadamente, pode-se dizer que elas se agrupam em dois universos separados por distintas cercas históricas: o agronegócio e a agricultura familiar.

De um lado, vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), encontramos o Conselho do Agronegócio (Consagro), suas câmaras setoriais e temáticas, assentados em um modelo de desenvolvimento baseado na monocultura e na agricultura intensiva.

De outro, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), encontramos o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e respectivas conferências nacionais, conselhos municipais e colegiados territoriais, voltados a um modelo de diversidade produtiva e à agricultura menos intensiva.

Uma observação mais acurada destes espaços nos mostra que suas políticas públicas seguem em direções opostas, envolvendo atores políticos, em grande maioria, diferentes.

O Consagro foi fundado em 1998 com o objetivo de promover a articulação entre o poder público e a iniciativa privada. Compreende 30 representações do poder público e da sociedade civil. Vinculadas ao Consagro e abrangendo um número significativamente maior de representações sociais estão as câmaras setoriais e temáticas, que discutem as diretrizes para as políticas públicas apoiadas pelo Consagro.

Essas câmaras foram criadas na década de 1990. Desde então passaram por um período de descrédito sendo retomadas no governo Lula. O propósito é estabelecer um canal de interlocução entre o Ministério da Agricultura e a sociedade, buscando identificar oportunidades para as cadeias produtivas e definir as ações prioritárias de interesse do agronegócio frente aos mercados interno e externo.

Existem atualmente 27 câmaras setoriais, dedicadas a cadeias produtivas específicas; outras 8 câmaras temáticas cuidam de assuntos transversais às câmaras setoriais. O conjunto envolve cerca de 417 entidades, entre representações de produtores, trabalhadores, consumidores, empresários, autoridades do setor privado e de órgãos públicos, técnicos governamentais e instituições financeiras. Destas, 332 representam instituições privadas e 85 representam instituições públicas.

Entre 2009 e 2010, 24 câmaras setoriais elaboraram suas agendas estratégicas para o período de 2010 a 2015.

O resultado é um conjunto abrangente de informações que incluem temas diversos na área de estatística, pesquisa, desenvolvimento e inovação, assistência técnica, defesa agropecuária, marketing e promoção, gestão da qualidade, governança da cadeia, crédito e seguro, comercialização, relações internacionais e legislação.

As agendas estratégicas são referência para as políticas públicas desenvolvidas pelo Mapa e demais órgãos governamentais e, também, para a iniciativa privada, determinando os investimentos propostos no Plano Agrícola e Pecuário brasileiro, lançado anualmente.

Embora seja natural a existência de competição entre os elos das cadeias produtivas, as câmaras têm se mostrado um lócus de diálogo.

Um exemplo é a câmara setorial do algodão. A elevada concentração do setor, composto de poucos grupos de investidores, enseja acordos que beneficiam toda a cadeia.

Algumas câmaras, no entanto, são consideradas mais tensas, a exemplo da câmara setorial de citricultura, em função de diferenças nos padrões impostos pela indústria ao setor produtivo e diferenças fiscais a que os segmentos da cadeia estão submetidos, principalmente na relação com o mercado externo. Aliás, a carga tributária sobre produção e exportação dos produtos é uma das temáticas que geram mais tensão nos debates das câmaras setoriais.

A política pública voltada ao agronegócio tem, portanto, no Consagro e em suas câmaras setoriais e temáticas sua principal inspiração.

Em outra direção e apoiado em outros instrumentos participativos, encontramos o Condraf.

Inicialmente criado como Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDS), em 1999, o Condraf passou por uma mudança institucional importante.

Não foi apenas um ajuste formal. Foi uma adequação estrutural destinada a redirecionar as prioridades das políticas publicas em três eixos temáticos: o desenvolvimento rural, a reforma agrária e a agricultura familiar. A composição política desse colegiado passou a refletir uma paridade entre representantes do poder público e da sociedade, totalizando 38 membros.

Diretamente vinculados ao Condraf, e ampliando sua base de participação social, estão os conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável (CMDRS) e os colegiados territoriais.

Os colegiados territoriais operam com base na noção de território como espaço de identidade sociopolítica, que abrange mais de um município.

Em 2001, estes conselhos já se faziam presentes em mais de um quinto dos municípios brasileiros.

Com o advento da política territorial em 2003, foram criados os colegiados territoriais, hoje presentes em 239 territórios rurais do país.

Reflexo do empenho do Condraf, em 2006, foi instituída a Lei da Agricultura Familiar e, em 2008, foi realizada a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável. Neste evento, os participantes reclamaram um lugar de destaque ao segmento familiar no setor agropecuário, considerado estratégico na consolidação de um projeto de desenvolvimento sustentável e solidário para a agricultura brasileira.

Em 2010 o Condraf aprovou a “Política de Desenvolvimento do Brasil Rural”, que serve de referência para as ações do MDA e incide no Plano Safra da Agricultura Familiar, lançado anualmente.

É clara a distinção entre as propostas de desenvolvimento para a agricultura presentes no Plano Agrícola e Pecuário, gerado pelo Mapa e Consagro (basicamente suas câmaras setoriais), e as propostas presentes no Plano Safra da Agricultura Familiar, gerado pelo MDA e Condraf.

Enquanto o primeiro enfatiza o aumento da produção nacional de commodities destinadas ao mercado externo, com o uso intensivo de insumos agrícolas, sem encarar necessariamente a agricultura como um modo de vida, o segundo volta-se à produção diversificada para a garantia da soberania e segurança alimentar nacional. Neste caso, o agricultor familiar, segmento estratégico para o desenvolvimento do mundo rural, além de produzir alimentos representa a população majoritária do país no campo e a maior fatia da mão de obra do setor.

A existência de distintos projetos de desenvolvimento para a agricultura brasileira, condensados pelo Mapa e MDA e seus respectivos Planos, não é uma constatação nova entre os estudiosos das políticas públicas nacionais.

É possível, inclusive, levantar a hipótese de que os dois ministérios surgiram como alternativa acomodatícia de governabilidade frente às divergências de projetos para a agricultura brasileira.

Essa divergência, de qualquer forma, é reiterada nas conflitantes visões obre a ocupação do espaço agrário e as funções da agricultura no século XXI.

O modelo de desenvolvimento assentado no agronegócio concebe a agricultura como meio de exploração econômica, ao passo que o modelo de desenvolvimento assentado na agricultura familiar concebe a agricultura como um modo de vida que garante a sustentação dos agricultores e ao mesmo tempo dinamiza mercados capazes de alimentar as cidades.

Esta diferença é determinante para os investimentos em reforma agrária, por exemplo.

A existência de dois ministérios mostra, contudo, a opção do governo em manter a convivência de dois projetos, mesmo diante das divergências mencionadas.

A complexa engenharia da participação, que envolve múltiplos espaços conforme mostramos aqui, acaba por polarizar os interesses em torno de duas categorias: aqueles voltados ao agronegócio e aqueles voltados à agricultura familiar.

Naturalmente, o Consagro e o Condraf, e suas demais estruturas de participação, explicitam grupos políticos bem distintos.

Em que pese a segmentação mencionada, a existência destes espaços tem garantido um importante diálogo entre poder público e sociedade, representando ganhos significativos para as políticas públicas para a agricultura, que deixaram de ser meras ações “de cima para baixo”.

Ao mesmo tempo, porém, tal dissociação de fóruns sobre um mesmo espaço social e econômico impede a reflexão sobre projetos de desenvolvimento de abrangência mais geral, que escrutinem concepções de desenvolvimento divergentes quanto a ocupação e uso da terra, reforma agrária e uso dos recursos ambientais.

A câmara temática da agricultura orgânica, a única que apresenta uma mescla de segmentos, é, talvez, aquela onde se dá mais claramente uma disputa entre projetos políticos.

Ali se discute a dificuldade de coexistência, para não dizer incompatibilidade, entre transgênicos e orgânicos, além de outras questões ambientais.

A democracia é, por excelência, o espaço público do conflito.

Sua força reside justamente em abrigar propostas contrastantes que, através da razão argumentativa e do embate social tornam-se mais nítidas em seus acertos e flancos e erguem pontes de consensos possíveis.

É também um local de disputa de projeto político de sociedade, onde se contrapõem modelos de desenvolvimento.

Muito embora as políticas para agricultura brasileira não sejam discutidas apenas nos fóruns citados, estes têm se mostrado uma boa saída para garantir a participação social nas políticas públicas, e até garantir a convivência de modelos de desenvolvimento divergentes.

Avulta, porém, a lacuna de origem: a segmentação que bifurca atores, em sua maioria, concordantes, institui uma clivagem no debate, sem que ocorra um profícuo diálogo de projeto político para a sociedade e a agricultura nacional.

Erigida como estratégia de governabilidade ao se manter cada um no seu quadrado, os espaços públicos para a agricultura no Brasil correm o risco de ratificar a crítica à manutenção da dominação política e econômica forjada pelo próprio Estado.

Ou seja, cristaliza-se assim um espaço meio público ao invés de um espaço público inteiro no escrutínio do futuro brasileiro em sua vasta dimensão rural.
 
(*) Professora Adjunta do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política - ILAESP
 
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