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Escravidão brasileira, uma chaga ainda aberta
Imagem: fotografia do artista Fabrice Monteiro Maroons.Por Carlos Eduardo Araújo
“A ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”, Machado de Assis.
“O escravo brasileiro literalmente falando só tem de seu uma coisa — a morte”, Joaquim Nabuco.
No último dia 20 de novembro comemorou-se o dia da consciência negra. A efeméride foi instituída em 2003 e oficializada por uma lei federal em 2011: antes tarde do que nunca! A data, na qual teria morrido Zumbi dos Palmares, foi escolhida para homenagear o mártir e herói da causa libertária negra. Passados cento e trinta anos da “abolição”, o tema ainda comporta pontos sensíveis e controversos. Essa temática não deve, em minha modesta avaliação, se circunscrever aos escolásticos, à academia ou aos especialistas, uma vez que diz respeito a todos nós brasileiros, produtos de um amálgama étnico, social e cultural, que tem como ingrediente constitutivo e relevante a escravidão.
A escravidão é uma herança constitutiva do que somos, como povo e como indivíduos, imiscuindo-se sobre nossa índole, caráter e temperamento. É necessário e imperativo que tenhamos consciência da dimensão de tal fato sobre nossa individualidade e de suas decorrências sobre a sociedade brasileira, no seu conjunto. Ela foi uma ignóbil e indelével realidade em nosso país por mais de trezentos anos, nos poucos mais dos quinhentos de nossa existência.
Começo a abordagem do tema por um livro publicado em maio deste ano: “Dicionário da Escravidão e Liberdade – 50 Textos críticos”, em comemoração crítica aos 130 da abolição da escravatura. O livro é formado por 50 textos que investigam, escarafuncham, revolvem e seguem, no intuito de entender, esclarecer e desvelar, os caminhos da escravidão, pela via crucis do sofrimento e desamparo, do cativeiro e liberdade, do amor e ódio, sentimentos tão humanos levados à sua última potência, que provocou.
O livro é apresentado pelo diplomata e africanista Alberto da Costa e Silva, historiador e poeta, dotado de grande conhecimento e sensibilidade sobre o tema da escravidão.
“Lemos
comovidos esses enredos da vida em cativeiro. Não se estuda o
escravismo sem emoção e sem um sentimento de vergonha e remorso. Embora a
escravidão seja quase tão antiga quanto o homem na história e esteja
presente no desenrolar de quase todas as culturas, é com extrema
dificuldade que conseguimos estudá-la como algo que ficou no passado e
lhe pertence completamente. A ela se aplicaria a afirmação de que não há
história que não seja contemporânea, pois com a régua dos sonhos do
presente medimos os sucessos que narramos. (da Escravidão e Liberdade –
50 Textos críticos. Editora Companhia das Letras, 2018).”
Apesar
de ter ocupado a atenção de estudiosos brasileiros e estrangeiros já de
algum tempo a esta parte, a escravidão ainda se coloca como um tabu no
seio da sociedade brasileira, encoberto por interditos, estratagemas e
eufemismos sutis ou mal disfarçados.Durante décadas, e ainda hoje, vivemos sob o mito, ideologizado, da democracia racial, a escamotear um racismo sempre presente, ínsito, oculto, furtivo, velado e latente.
A obra de Abdias do Nascimento foi precursora em investir contra tal ideologia, com a publicação, em 1978, do seu “Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado”, da qual extraio, da introdução, o seguinte trecho:
“O
ensaio que desenvolverei nas páginas a seguir não se molda nas fórmulas
convencionalmente prescritas para trabalhos acadêmicos e/ou
contribuições científicas. Nem está o autor deste interessado no
exercício de qualquer tipo de ginástica teórica, imparcial e
descomprometida. Não posso e não me interessa transcender a mim mesmo,
como habitualmente os cientistas sociais declaram supostamente fazer em
relação às suas investigações. Quanto a mim, considero-me parte da
matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no
grupo ético-cultural a que pertenço, interagindo no contexto global da
sociedade brasileira, é que posso surpreender a realidade que condiciona
o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão
histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a
mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade.
O
que o leitor encontrará nestas páginas se insere no contexto de um mero
testemunho cruzado de reflexões, comentários, críticas e conclusões
pertinentes às respectivas etapas do trabalho. O que logo sobressai na
consideração do tema básico deste ensaio é o fato de que, à base de
especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas
ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito de democracia
racial; segundo esta, tal expressão supostamente refletiria determinada
relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e
brancos convivem harmonicamente, desfrutando iguais oportunidades de
existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social,
das respectivas origens raciais ou étnicas. A existência dessa
pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas palavras de professor
Thales de Azevedo, “o maior motivo de orgulho nacional”, (…) “a mais
sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e
com intransigência. (in: Abdias do Nascimento. Genocídio do Negro
Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. Editora Paz e Terra,
1978).”
Ainda hoje as
palavras de Abdias, pronunciadas há 40 anos, se mostram extremamente
atuais, para nossa infelicidade. Tem-nos faltado coragem para assumirmos
nosso racismo e, em decorrência da inexorável constatação, buscar meios
e instrumentos para debelá-lo.O mito da democracia racial ainda é, nos dias de hoje, fonte de autoengano nacional. Voltemos a Abdias:
“Devo
observar de saída que este assunto de “democracia racial” está dotado,
para o oficialismo brasileiro, das características intocáveis de
verdadeiro tabu. Estamos tratando com uma questão fechada, terreno
proibido sumamente perigoso. Ai daqueles que desafiam as leis deste
segredo! Pobre dos temerários que ousarem trazer o tema à atenção ou
mesmo à análise científica! Estarão chamando a atenção para uma
realidade social que deve permanecer escondida, oculta.”
O
mito da democracia racial brasileira também vigorava em terras
estrangeiras, como ilustra o exemplo que trago, extraído do livro “Os
Negros na América Latina”:
“De
modo geral, a emancipação [no Brasil] foi pacífica, e os brancos,
negros e índios estão hoje se amalgamando numa nova raça. (W. E. B. Du
Bois, 1915).”
Entretanto, nos deparamos com uma visão um tanto mais crítica quando ao tema da integração das etnias no Brasil:
“Faz
muito tempo que, na América do Sul, temos feito de conta que vemos uma
possível solução no amálgama de brancos, índios e negros. Entretanto,
esse amálgama não prevê nenhuma redução do poder e do prestígio dos
brancos, em relação aos dos índios, dos negros e dos mestiços, e sim uma
inclusão, no chamado grupo branco, de uma porção considerável de sangue
escuro, ao mesmo tempo que se mantêm a barreira social, a exploração
econômica e a privação dos direitos políticos do sangue negro como tal.
[…] E apesar dos fatos, nenhum brasileiro ou venezuelano ousa jactar-se
de seus ancestrais negros. Por isso, o amálgama racial na América Latina
nem sempre ou raramente traz consigo uma ascensão social e um esforço
planejado para levar os mulatos e mestiços à liberdade num Estado
democrático. (W. E. B. Du Bois, 1942). (Henry Louis Gates Jr.. Os Negros
na América Latina. Editora Companhia das Letras, 2014).”
Nós,
brasileiros, temos o vezo do não enfrentamento de questões
historicamente cruciais e, talvez, por isso, necessárias, urgentes e
incômodas. Esquivamos-nos de nos defrontar, por exemplo, com a grave
questão da ditadura militar, por nós vivenciada entre os anos de 1964 a
1985. Ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Argentina, Chile, Peru
e Uruguai. Preferimos varrê-la para debaixo do tapete da história,
impedindo uma necessária catarse coletiva, social, política e humana.Leia mais:
Nosso complexo de avestruz tem-nos feito agir assim em face de inúmeras situações que exigiam e ainda estão a exigir um enfrentamento. Penso que a terceira lei de Newton tem suas consequências para além da Física natural, aplicando-se ao que Augusto Comte denominou de Física Social ou sociologia. Ou seja, a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e com a mesma intensidade. Assim é em nossa vida individual, coletiva e social. Desta feita, enquanto indivíduos, membros da sociedade brasileira, temos que assumir as consequências de nossos atos ou de nossas omissões.
Feitas as digressões acima, voltemos ao tema que ocupa nossa atenção neste momento: os espectros da escravidão e da pós-emancipação, que rondam a sociedade brasileira, tal qual o espectro do pai de Hamlet rondava por seu castelo, no reino da Dinamarca.
Como dito acima, o problema apresenta dois vieses, pelos quais pode ser analisado: o viés da escravidão e o viés da pós-emancipação, que estão umbilicalmente ligados. Quanto ao primeiro, há uma considerável bibliografia, a qual urge ser conhecida, lida, revisitada e assimilada, com um olhar crítico e contextualizado. Entrementes, quanto ao período pós-emancipação a literatura existente ainda é um tanto diminuta e inexpressiva. Não mereceu, como devia, a atenção dos nossos historiadores, ao menos em proporção semelhante aquela de que se fez merecedora a escravidão.
O assunto interessou mais aos nossos sociólogos e antropólogos que aos nossos historiadores. No âmbito da sociologia há uma obra pioneira e digna de todos os aplausos: “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”. Dois alentados volumes da lavra do inestimável Florestan Fernandes, prócer da escola paulista de Sociologia, responsável por abrir um novo e inédito itinerário de estudos sobre a escravidão e seus reflexos na sociedade brasileira. A visão que emana dessa escola, sob a liderança de Florestan, contrapõe-se, veementemente, àquela que decorre da leitura de “Casa Grande e Senzala”, obra do pernambucano Gilberto Freyre, tida por conservadora e leniente com a hediondez da escravidão. (in: Florestan Fernandes. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Vol. I e II. Editora Ática, 1978).
Destarte, a partir do maio de 1888 os ex-escravizados foram dura e desumanamente abandonados à sua própria sorte. “Sem eira, nem beira”, sem que lhes fossem dadas condições mínimas de uma existência digna.
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Em “O Quilombismo” Abdias do Nascimento denuncia que:
“Após
a abolição formal a 13 de maio de 1888, o africano escravizado adquiriu
o status legal de “cidadão”; paradoxalmente, no mesmo instante ele se
tornou o negro indesejável, agredido por todos os lados, excluído da
sociedade, marginalizado no mercado de trabalho, destituído da própria
existência humana. Se a escravidão significou crime hediondo contra
cerca de 300 milhões de africanos, a maneira com os africanos foram
“emancipados” em nosso país não ficou atrás com prática de genocídio
cruel. Na verdade aboliram qualquer responsabilidade dos senhores para
com a massa escrava; uma perfeita transação realizada por brancos, pelos
brancos e para o benefício dos brancos. (Abdias do Nascimento. O
Quilombismo. Editora Editoria Vozes, 1980).”
Em perfeita sintonia com a percepção de Abdias, Florestan constata:
“A
desagregação do regime escravocrata e senhorial operou-se, no Brasil,
sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho
escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o
sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da
responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o
Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumissem encargos
especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de
organização da vida e do trabalho. O liberto viu-se convertido, sumária e
abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua
pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e
morais para realizar essa proeza, nos quadros de uma economia
competitiva.
Essas
facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo
imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel. Ela
se converteu, como asseverava Rui Barbosa dez anos depois, numa “ironia
atroz”. Concretizara-se, de modo funesto, imprevisto e em escala
coletiva, o vaticínio de Luís Gama ao traduzir os anseios de liberdade
de certo cativo: “falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como
queira … . (Florestan, obra citada).”
Seguindo
pela senda adrede aberta, vou buscar, nos escaninhos da memória, um
conto do genial e singular escritor Joaquim Maria Machado de Assis
intitulado “Pai contra Mãe”, uma obra prima do conto universal. Nenhum
resumo que eu faça será capaz, evidentemente, de suprir a necessidade de
estabelecer contato com o texto machadiano e com sua peculiar e
inimitável estilística,O conto mencionado é um dos poucos exemplos, em toda a extensa e diversificada obra machadiana, em que o tema da escravidão é aventado. Apesar de sua afrodescendência, Machado de Assis nunca fez uma defesa aberta, direta e franca da mazela escravocrata. Muitos não lhe perdoaram a omissão.
Machado de Assis não se engajou explicitamente nas hostes abolicionistas, como o fizeram seus amigos Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, nem tampouco fez qualquer censura explícita à escravidão. Todavia, por intermédio da ficção, deixou entrever todo o repúdio que lhe devotava.
O conto “Pai contra Mãe” retrata a violência que a escravidão impingia aos corpos e às almas dos escravizados. A denúncia da crueldade se apresenta sob o manto da ironia, da fina e inconfundível ironia, tão peculiar ao escritor.
“A
escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a
outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se
ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro
ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia
perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha
só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da
cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de
furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com
que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a
honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e
humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos
fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita
ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,
onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há
meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem
todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e
nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono
não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação,
porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve,
ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no
Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes
marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um
escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios
nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito
físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de
gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa:
“gratificar-se-á generosamente” — ou “receberá uma boa gratificação”.
Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de
preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa.
Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse” (in: 50 Contos de Machado de Assis – Seleção John Gledson. Editora Companhia das Letras, 2007).
O
conto põe em confronto duas pessoas marcadas pela exclusão social e
econômica. De um lado, uma escrava fugitiva e grávida e de outro um
pária social disfarçado em “capitão do mato”, à cata de escravizados
fugidos, em busca da recompensa que se lhe prometiam, num anúncio de
jornal que lera. Este último, feito pai recentemente, sem ofício ou
renda de qualquer natureza, pelejava no abjeto ofício de capturar
escravizados fugidos. Daí o conflito retratado no nome do conto: Pai
contra Mãe.Gilberto Freyre publicou, em 1961, o livro “O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX”. A obra se ocupou dos anúncios publicados em jornais, os quais, como acabamos de ver, são mencionados no conto de Machado de Assis. O livro de Freyre, segundo nos diz, começou a ser escrito logo após a publicação de “Casa Grande e Senzala”, em 1933. Esse livro teve a pretensão, segundo o autor, de empreender um estudo antropológico das características relativas à personalidade e às formas dos corpos, de negros ou mestiços, fugidos ou expostos à venda, no Brasil do século XIX, através dos aludidos anúncios de jornais. Um material factual e histórico de grande valor. (Gilberto Freyre. O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX. Editora Globo, 2012).
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Mas além de escravizados fugidos, ocupavam os anúncios de jornais os escravizados que eram oferecidos à venda, troca ou aluguel, fazendo sobressair suas qualidades, como mercadorias postas em oferta no mercado de negros. Algo indigno, nefasto, iníquo: a mais literal coisificação do ser humano, desnudado de sua mais comezinha dignidade humana.
O livro de Freyre, assim como o primeiro aqui referido, é precedido por uma singular “Apresentação” do diplomata e notável africanista Alberto da Costa e Silva, da qual extraio o trecho abaixo:
“Os
anúncios de jornais revelavam a mudança dos hábitos alimentares e a
gula dos africanos. E como os escravos se vestiam. E como se
comportavam. E os seus defeitos, que algumas vezes só eram defeitos aos
olhos do senhor. E as suas habilidades profissionais, como as daquele
escravo que era exímio músico – tocava piano e marimba – e também
cocheiro e alfaiate. Mais do que qualquer outra cousa, os anúncios
mostram, porém, sem o menor disfarce, a crueldade a que estavam
sujeitos. Pois, neles, os escravos fugidos eram muitas vezes descritos
pelos sinais dos maus-tratos e castigos que sofriam. E também – como
acentua Gilberto Freyre – pelas deformações decorrentes de excesso de
trabalho, das condições anti-higiênicas de vida e da má alimentação.
O
dono não tinha pejo em identificar o escravo por marcas de ferro em
brasa e por sinais de tortura, como feias cicatrizes de relho, de
correntes no pescoço e de ferros nos pés. Este infeliz tinha os “quartos
arriados”; este outro se apresentava “rendido”, isto é, com hérnia, ou
com veias estouradas; aquele com apostemas pelo corpo. Num anúncio, um
senhor reclama que lhe escapou “um escravo com o olho vazado”; noutro, o
desditoso tinha os artelhos comidos; em outros, faltavam ao fugitivo os
dedos da mão, a mão inteira ou um pedaço do braço. A descrição de
alguns deles deixa perceber que eram raquíticos e depauperados, como
resultado da viagem no navio negreiro, do duríssimo regime de trabalho,
da alimentação deficiente e da “dormida no chão, em senzalas úmidas e
fechadas”. Ou no piso de tijolo das cozinhas. Ou nos vãos das escadas. E
Gilberto Freyre conclui: quase todos eram aleijados ou enfermiços não
tanto por doenças trazidas da África, mas por “causas nitidamente
sociais e brasileiras” (in: Freyre, obra citada).
Em outros trechos, da incitante “Apresentação”, nos é desvelado um mundo inumano, de crueldade e perfídia:
“O
que grita nesses anúncios é que os escravos fugiam do trabalho
desumano, sem hora e sem pausa, e da crueldade e do sadismo dos
senhores. Somando-se os seus textos, o resultado é um pesadelo.
(…)
Ninguém
estranhava que, ao lado de um anúncio de venda, figurasse um outro em
que se propunha a troca, por exemplo, de uma escrava modista por uma boa
cozinheira. Ou por outro bem de valor igual. E não eram incomuns os
anúncios com pedido de empréstimo, oferecendo-se um ou mais escravos
como penhor ou hipoteca. O escravo como garantia financeira e,
consequentemente, como poupança para ser utilizada nos momentos difíceis
ou na velhice, é assunto que ainda não mereceu a atenção dos
historiadores, embora levantado, há mais de meio século, por Gilberto
Freyre. E neste livro. Num simples parágrafo, mas que desata no leitor a
curiosidade por mais” (in: Freyre, obra citada).
Joaquim
Nabuco, em sua obra “O Abolicionismo”, publicada em 1883, também faz
menção aos anúncios de jornais, nos quais os escravizados figuravam, ora
como fugitivos, ora como mercadoria oferecida para aluguel, venda ou
troca, nos moldes do livro de Freyre. O relato de Nabuco, que vivenciou
tal situação como testemunha ocular, assume foros de documental. Era ele
filho da aristocracia do segundo reinado e seu pai, José Tomás Nabuco
de Araújo, foi Senador e Ministro de Estado. Nabuco empenhou-se na causa
abolicionista, que apaixonou a geração de intelectuais brasileiros nos
70/80 do século XIX.Leia mais:
Racismo institucional: para preto pena, para branco medida
De quem herdaste teu racismo?
Colhe-se desse clássico texto a passagem seguinte:
“Em
qualquer número de um grande jornal brasileiro — exceto, tanto quanto
sei, na Bahia, onde a imprensa da capital deixou de inserir anúncios
sobre escravos — encontram-se, com efeito, as seguintes classes de
informações que definem completamente a condição presente dos escravos:
anúncios, de compra, venda e aluguel de escravos, em que sempre figuram
as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho, rapariga de
casa de família (as mulheres livres anunciam-se como senhoras a fim de
melhor se diferenciarem das escravas); editais para praças de escravos,
espécie curiosa e da qual o último espécime de Valença é um dos mais
completos; anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais da
conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa ao ombro, nos quais os
escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que
sofreram, e se oferece uma gratificação, não raro de um conto de réis, a
quem o apreender e o levar a seu dono — o que é um estímulo à profissão
de capitães-do-mato; notícias de manumissões, bastante numerosas;
narrações de crimes cometidos por escravos contra os senhores, mas
sobretudo contra os agentes dos senhores, e de crimes cometidos por
estes contra aqueles, castigos bárbaros e fatais, que formam,
entretanto, uma insignificantíssima parte dos abusos do poder dominical,
porque estes raro chegam ao conhecimento das autoridades, ou da
imprensa, não havendo testemunhas nem denunciantes nesse gênero de
crime” (Joaquim Nabuco. O Abolicionismo. Editora Nova Fronteira, 1999).
Pincei outro trecho do livro de Nabuco, que ilustra, com veemência, a sordidez da escravidão:
“O escravo ainda é uma propriedade como qualquer outra, da qual o senhor dispõe como de um cavalo ou de um móvel.
…
podendo ser fechado num calabouço durante meses — nenhuma autoridade
visita esses cárceres privados — ou ser açoitado todos os dias pela
menor falta, ou sem falta alguma; à mercê do temperamento e do caráter
do senhor, que lhe dá de esmola a roupa e alimentação que quer, sujeito a
ser dado em penhor, a ser hipotecado, a ser vendido, o escravo
brasileiro literalmente falando só tem de seu uma coisa — a morte. ”
O
capítulo XII da obra de Nabuco abre-se com a seguinte citação do
Senador estadunidense Charles Summer, que viveu entre os anos de 1811 e
1874:
“Bárbara
na origem; bárbara na lei; bárbara em todas as suas pretensões, bárbara
nos instrumentos de que se serve; bárbara em suas consequências;
bárbara de espírito; bárbara onde quer que se mostre; ao passo que cria
bárbaros e desenvolve em toda a parte, tanto no indivíduo como na
sociedade a que ele pertence os elementos essenciais dos bárbaros.”
Espero
que as longas e frequentes citações não estejam a cansar o leitor em
demasia, mas as entendo imprescindíveis para nosso desiderato.Seguindo no caminho que assentamos, tomemos agora outra obra: “Políticas da Raça”, organizada por Petrônio Domingues e Flávio Gomes. Esse livro, publicado recentemente, aponta para a atualidade do tema que nos ocupa e ratifica a necessidade de nos debruçarmos sobre o mesmo, que, como referi linhas atrás, é ainda, para pasmo geral, pouco explorado, como se depreende da apresentação à obra:
“Ao
contrário de outras tradições historiográficas (especialmente de língua
inglesa em relação ao Caribe e aos Estados Unidos), nas quais os
trabalhos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação compõem
diferentes áreas de estudos e pesquisas – com caminhos, especialistas,
influências, correntes e definições teóricas distintas –, no Brasil o
estudo acerca de abolição e abolicionismo foi por muito tempo um simples
capítulo derradeiro das abordagens sobre escravidão. Ainda assim é
deficiente o conhecimento sobre experiências locais, urbanas e rurais
para além do Sudeste. E o pior: os estudos sobre o pós-abolição foram
relegados, um quase silêncio. De um lado, remetido para a dimensão de
determinado passado “naturalizado” – o escravista –, que a própria
sociedade na aurora do século XX queria esquecer. De outro, o seu lugar
científico, quase rejeitado pelos historiadores, alocou-se para o campo
de estudo das “relações raciais” de antropólogos e sociólogos a partir
da década de 1930.
(…)
Emergindo
com vitalidade a partir da década de 1990, o campo de estudos e
pesquisas sobre o pós-emancipação no Brasil ainda é relativamente
recente” (Petrônio Domingues; Flávio Gomes. Políticas da Raça. Summus Editorial, 2014).
Para
a compreensão de nosso passado escravocrata, cujos vestígios ainda
inundam a vida nacional, e a luta libertária que acompanhou toda a saga
antiescravagista, merecem um destacado lugar nesta história, alguns
personagem que carregaram, na cor da pele, o estigma da escravidão em
pleno século XIX. Passo então a reproduzir, do Dicionário da Escravidão e
Liberdade, um esboço biográfico de nomes que desempenharam um papel
fundamental na luta pela abolição, como Luís Gama, José do Patrocínio e
André Rebouças:
– Luís Gama (1830-1882),
nascido livre na Bahia, era o filho de um fidalgo português e da
africana Luísa Mahin. Foi vendido como escravo pelo próprio pai e assim
caiu na rota do tráfico interprovincial, tendo sido embarcado primeiro
para o Rio de Janeiro, em seguida para São Paulo. Depois de ter
conseguido se alfabetizar, Gama reconquistou sua liberdade e, além de se
tornar literato e jornalista brilhante, se fez rábula para defender
judicialmente escravizados que a ele recorriam com as mais diferentes
contendas, inclusive aqueles interessados em reivindicar carta de
alforria para si ou para os seus;
– José Carlos do Patrocínio (1854-1905),
mais conhecido como Zé do Pato, Patrocínio, filho da quitandeira
Justina Maria do Espírito Santo e do padre João Carlos Monteiro, foi
jornalista. Formado em farmácia pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, ele conquistou popularidade por conta de seus discursos
inflamados tanto nas tribunas quanto nas praças. Por considerar a
abolição imediata e sem pagamento de indenização a principal questão
nacional, defendia que a população deveria deixar de se comportar como
“cordeiro submisso” da classe política e realizar tais intentos a
qualquer custo.
– André Rebouças (1838-1898).
Ele era filho de Antônio Pereira Rebouças, homem negro que se tornou
conselheiro do Império, e de Carolina Pinto Rebouças. Formado em
engenharia, André defendia que a abolição deveria ser parte de uma
grande reforma nacional capaz de assegurar melhores condições de vida
para os libertos, o que incluiria a concessão de terras e educação para
crianças e adultos. Na perspectiva dele, as feridas abertas pelo crime
que era a escravidão só poderiam cicatrizar com a garantia de certos
direitos aos egressos do cativeiro.
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A vida desses três insignes brasileiros é notável prova de superação, determinação, talento e inteligência. É impressionante que tenham, no âmago de um segundo reinado escravocrata, obtido instrução, cultura e inserção social, quando hoje tais conquistas, em pleno século XXI, para as pessoas negras e pobres, representam aspiração quase irrealizável, sendo que as barreiras sociais que lhes são opostas resultam quase sempre invencíveis. Decerto os nomes citados foram exceção em meio à esmagadora massa de oprimidos, excluídos e marginalizados de que se constituíam os escravizados e libertos.
As pessoas escravizadas não se sujeitaram, passivamente, como já se cogitou, aos grilhões escravocratas. É crucial e indispensável romper com o mito da aceitação passiva da escravidão, que conduz a uma injustificável vitimização. Os escravos, indubitavelmente, foram vítimas da indecorosa engrenagem escravista, mas nunca deixaram de lutar, aguerridamente, por sua emancipação. Há inúmeros registros de rebeliões, fugas e crimes cometidos no caminho que os conduziu à ansiada liberdade. Ela não foi assim uma concessão do poder, senão como o resultado de uma luta que perpassou séculos e cujos frutos foram colhidos apenas no século XIX. É irrefutável que a causa ganhou importância e consistência com a adesão de uma pequena parte da elite intelectual e aristocrática branca e de intelectuais negros, que haviam alcançado algum destaque na ordem social do segundo reinado, exercendo profissões como a advocacia, a engenharia e o jornalismo. No entanto, reitere-se, não deve ser subestimada a luta que os cativos empreenderam.
Para ilustrar tal ponto, cito o trecho abaixo:
“A
agitação negra marcou a luta contra a escravidão na sociedade
brasileira. A revolta escrava, individual ou coletiva, foi o primeiro e
principal instrumento de instabilidade da ordem vigente. Rebeliões,
crimes contra senhores, fugas e tantas outras formas de ação escrava
vivenciadas no Brasil, até quando não explicitavam esse propósito,
construíram os caminhos para a falência do mundo governado por
proprietários de pessoas. Ao mesmo tempo, ao fazerem circular nas
senzalas notícias sobre fugas, revoltas e ideias de liberdade, aqueles
que estavam no cativeiro desestabilizavam a lógica escravista. Não por
acaso, planos e argumentos para a extinção do escravismo sempre entravam
na pauta política quando a rebeldia escrava ganhava maiores dimensões e
intensificava-se o medo de convulsões sociais. Foi o que se pôde notar
depois da Revolta dos Malês na Bahia, em 1835, e da Revolta de Manuel
Congo em Vassouras, em 1838. Movidos pelo temor de que a rebeldia negra
se ampliasse, políticos, jornalistas e até autoridades passaram a
considerar que a escravidão, como instituição legal e legítima, deveria
ser combatida para garantir a segurança dos brancos. A partir dos meados
da década de 1860, o movimento abolicionista se configurou contando com
a liderança de homens negros como Luís Gama, José do Patrocínio, André
Rebouças, Ferreira de Meneses, Manuel Quirino, entre tantos outros” (in: Dicionário da Escravidão e Liberdade: 50 textos críticos).
O
sociólogo Clóvis Moura tem um papel fundamental e pioneiro na
desmistificação da passiva sujeição dos escravizados à escravidão que
lhes era imposta. Publicou em 1959 “Rebeliões na Senzala”, obra que
provocou o surgimento de uma nova visão dessa problemática:
“O
livro surgiu levantando a temática e a problemática dos conflitos entre
senhores e escravos num momento em que os setores mais categorizados da
nossa historiografia afirmavam o contrário. Surgiu solitário e pioneiro
numa época em que, por exemplo, o próprio Fernando Henrique Cardoso,
apesar da sua contribuição à análise do sistema escravista no Brasil,
afirmava que os escravos foram “testemunhos mudos de uma história para a
qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo”. Este
discurso que leva a se encarar o escravo como coisa reflete-se por
extensão, em muitos historiadores, sociólogos, antropólogos e
economistas que estudaram o nosso escravismo colonial. O escravo
praticamente não existia. Era como se fosse uma abstração que funcionava
de acordo com aqueles mecanismos que asseguravam a normalidade da
estrutura. Em face do aparecimento de “Rebeliões da Senzala” o assunto
foi reposicionado e a discussão sobre o tema/problema adquiriu nova
dimensão” (Clóvis Moura. Rebeliões da Senzala. Editora Anita Garibaldi, 3ª edição, 2014).
Continuando
nessa esteira, da contraposição à passividade das pessoas escravizadas
em relação à escravidão, Clóvis Moura publica, em 1988, “Sociologia do
Negro Brasileiro”, livro no qual ratifica sua constatação pioneira:
“É
neste processo longo, doloroso e contraditório que temos de situar as
lutas dos escravos e avaliar o seu conteúdo social e a sua relevância
histórica. Assim como a escravidão foi uma instituição nacional, a luta
dos escravos contra ela também se espalhou por todo nosso território. Do
Rio Grande do Sul até o Amazonas eles lutaram contra o instituto que os
oprimia. Os quilombos, as insurreições, guerrilhas, assassinatos de
feitores, de capitães do mato e de senhores, o bandoleirismo, incêndios
de canaviais, roubos a colheitas e rapto de escravas, quando não do
suicídio, tudo isso era um fenômeno sociologicamente normal porque
correspondia à contrapartida de negação ao modo de produção escravista.”
Pela
leitura dos textos sobre a escravidão, fica-nos em sentimento de
compaixão, de remorso, de vergonha, de assombro, de pasmo, de
estupefação e até de incredulidade. Como pôde existir entre nós uma
situação de tamanha e indescritível iniqüidade. Como é possível olhar
para esse passado passivamente, sem que aflore, em nós, a semente da
perturbação, da inquietação, da indignação e da revolta. O que fazer com
tudo isso? Fingir que não aconteceu? Os ecos desse ignóbil passado
ainda se fazem ouvir entre nós, seus algozes e suas vítimas carregam
consigo suas marcas inolvidáveis, em seus corpos e alma.Espero que tenha valido a pena ter me acompanhado até aqui. Na verdade a mim só é possível creditar uma parte ínfima do presente texto, uma vez que abusei das citações e transcrições. E isso tem uma razão de ser, confessada nas linhas iniciais: a falta das credenciais e da necessária qualificação deste que vos fala, para dar sustentação, por seus próprios meios, a assunto de tão complexa envergadura. Contudo, se consegui despertar seu interesse para a temática abordada, pondo-o, em contato, meu caro leitor, com obras, autores e nomes que você desconhecia ou conhecia superficialmente, me daria por grato e recompensado do esforço empreendido.
Carlos Eduardo Araújo é mestre em Teoria do Direito (PUC-MG).
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