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Como Uruçuí, no
Piauí, tornou-se uma vitrine macabra dos efeitos do glifosato, produzido
pela transnacional. Na cidade, 25% das grávidas abortam e 83% das mães
têm leite contaminado
Por
Nayara Felizardo, no
The Intercept Brasil
O filho de Maria Félix, de 21 anos, resistiu pouco mais de seis meses
de gestação. Morreu ainda no ventre, com apenas 322 gramas. A causa do
aborto, que aconteceu com 25 semanas de gravidez, foi má formação: o
bebê tinha o intestino para fora do abdômen e também problemas no
coração. Não é incomum que as mães da região percam seus filhos
precocemente. O bebê de Maria, ao que tudo indica, foi mais uma vítima
precoce do agrotóxico glifosato, usado em grandes plantações de soja e
de milho em Uruçuí, a 459 km de Teresina, no Piauí.
O mesmo veneno que garante a riqueza dos fazendeiros da cidade, no
sul do estado, está provocando uma epidemia de intoxicação com reflexo
severo em mães e bebês. Estima-se que uma em cada quatro grávidas da
cidade tenha sofrido aborto, que 14% dos bebês nasçam com baixo peso
(quase do dobro da média nacional) e que 83% das mães tenham o leite
materno contaminado. Os dados são de um levantamento do sanitarista
Inácio Pereira Lima, que investigou as intoxicações em Uruçuí na sua
tese de mestrado em saúde da mulher pela Universidade Federal do Piauí.
Conheci a história de Maria Félix Costa Guimarães na maternidade do
hospital regional Tibério Nunes, na cidade de Floriano. É para lá que as
mulheres de Uruçuí são encaminhadas quando têm problemas na gravidez.
Nos primeiros exames, feitos em julho, já havia sido identificada a
má-formação no feto. Em setembro, no leito do hospital, encontrei a
jovem, que lia a Bíblia e se recusava a comer. Carregava um olhar
entristecido, meio envergonhado. Ela tinha sofrido o aborto no dia
anterior e aguardava o médico para fazer uma ultrassom e se certificar
de que não seria necessária a curetagem (cirurgia para retirada de
restos da placenta).
Maria não tinha condições emocionais para conversar, por isso falei
com a sua tia, a funcionária pública Graça Barros Guimarães. Ela não
sabia sobre a pesquisa realizada em Uruçuí, mas acredita nos resultados
apontados por Lima. “Se a gente for avaliar, o agrotóxico causa problema
respiratório e de alergia. Então é claro que se a mulher tiver grávida,
o bebê pode se contaminar também”.
Graça me contou que a sobrinha sempre esteve rodeada de fazendas de
soja. A casa onde vive, em Uruçuí, fica a cerca de 15 km de uma
plantação. Antes, ela morava na zona rural do município de Mirador, no
Maranhão, onde também há plantio de soja. “Os fazendeiros tomaram conta
de tudo.”
Em meados de agosto estive em Uruçuí para conversar com profissionais
da saúde e com os trabalhadores agrícolas. Eu queria entender como
viviam as pessoas no município contaminado pelo glifosato, e se elas
tinham noção de que o problema existe. Também liguei para o pesquisador
Inácio Pereira Lima, que culpa o agronegócio pelo adoecimento das
pessoas. “Tudo isso é consequência do modelo de desenvolvimento
econômico em que só o lucro está em foco, independente das consequências
negativas para a população”, ele me disse.
Epidemia de glifosato
O glifosato é o agrotóxico mais usado no Brasil. É vendido
principalmente pela Monsanto, da Bayer, com o nome comercial de Roundup.
Seus impactos na saúde humana são tão conhecidos que o Ministério
Público pediu que sua comercialização
fosse suspensa no
Brasil até que a Anvisa fizesse sua reavaliação toxicológica. Em
agosto, a justiça aceitou e o glifosfato foi proibido. A suspensão foi
classificada como um “desastre” pelo ministro da Agricultura, Blairo
Maggi, e foi duramente combatida por ruralistas e pela indústria.
A decisão, no entanto, foi derrubada pela justiça em segunda
instância poucas semanas depois. Maggi – que também é conhecido como
“rei da soja” – não escondeu o seu entusiasmo com a liberação do
agrotóxico:
A Monsanto diz que o produto é seguro, mas e-mails da empresa
divulgados no ano passado mostram
que ela pressionou cientistas e órgãos de controle nos EUA para
afirmarem que o glifosato não causa câncer. Isso não impediu a Monsanto
de
ser condenada a
pagar mais de R$ 1 bilhão a um homem que está morrendo de câncer nos
Estados Unidos. Cerca de 4 mil ações parecidas estão em curso naquele
país.
O produto representa
quase a metade de
todos os agrotóxicos comercializados no Piauí. O pesquisador Lima
explicou que a presença da substância no leite materno indica a
contaminação direta ou que as quantidades utilizadas na atividade
agrícola da região são tão elevadas, que o excesso não foi degradado
pelo metabolismo da planta. As mulheres estudadas por ele sequer
trabalham nas lavouras: elas estão intoxicadas porque fazem limpeza,
cozinham nas fazendas ou porque comeram o herbicida nos alimentos. Lima,
em sua tese, explica que o organismo é contaminado pela pele e vias
respiratória e oral.
Mulheres, as maiores vítimas
Pelos registros do hospital regional de Uruçuí, os abortos ocorrem
geralmente em mulheres entre 20 e 30 anos, que chegam até a 10ª semana
de gestação. O número elevado de casos é citado por Iraídes Maria
Saraiva, enfermeira plantonista. “São muitas as mulheres que chegam com
sangramento ou já com o ultrassom mostrando que o feto não tem
batimentos cardíacos. A maioria desses abortos são espontâneos”, me
disse.
Muitas mulheres têm a gravidez interrompida logo nas primeiras
semanas. Sem saber que estão grávidas, elas seguem trabalhando cercadas
pelo glifosato. Quando descobrem, já não há mais o que fazer.
“Dificilmente é a primeira gravidez e elas não têm doenças
pré-existentes. Quer dizer, são mulheres jovens que aparentam ser
saudáveis”, observou a enfermeira.
Há ainda as que sabem que estão esperando um filho mas não podem
deixar o trabalho, simplesmente porque dependem do salário. As que
passam da fase mais crítica e levam a gravidez até o fim correm alto
risco de ter má formação do feto.
Na maternidade de Floriano, o coordenador do setor de obstetrícia
Luiz Rosendo Alves da Silva já viu muitos casos de aborto e de
má-formação. Ele acredita na culpa dos agrotóxicos. “É uma contaminação
lenta, gradual e diária. A principal consequência é a atrofia de alguns
órgãos, principalmente coração e pulmão”.
Alanne Pinheiro, enfermeira do Centro de Referência em Saúde do
Trabalhador (Cerest), observa que as mulheres estão expostas aos
agrotóxicos de forma mais perigosa do que os homens que trabalham
diretamente na aplicação do veneno. “Elas ficam na cozinha ou fazem a
limpeza das fazendas e acabam inalando o agrotóxico de forma indireta.
Como não usam roupas especiais, sofrem mais o efeito da intoxicação
passiva.”
PIB alto, salário baixo
A cidade de 21 mil habitantes tem as características comuns do
interior, onde a vida acontece sossegada e todo mundo se conhece. Quase
um terço da população vive na zona rural. No percurso de 40 km do centro
até o Assentamento Flores – onde moram muitos dos trabalhadores com
quem eu pretendia conversar – quase não há árvores, exceto em pontos
isolados ao redor da casa grande, a sede da fazenda. A sensação é de um
enorme deserto e uma riqueza distribuída entre poucos.
Na pacata Uruçuí, mesmo quem não trabalha diretamente na agricultura está sendo contaminado.
Uruçuí não é um município pobre. O PIB per capita, de R$ 49 mil, era o
2º maior do Piauí em 2015, último ano da pesquisa do IBGE. Perdia
apenas para a cidade vizinha, a também agrícola Baixa Grande do Ribeiro.
Mas na prática, o salário dos trabalhadores é de R$ 1.900 por mês, em
média.
Quem enriquece de verdade são os fazendeiros. A maioria deles saiu do
sul do Brasil para o cerrado piauiense em busca de terras e do clima
ideal para o plantio de suas lavouras. Outros ocupam ou já ocuparam
cargos na política como deputados ou vereadores. É o caso do ex-deputado
estadual Leal Júnior, eleito três vezes para o mesmo cargo, e da
vereadora de Uruçuí Tânia Fianco.
‘Não fale com eles’
Joana* trabalhou como cozinheira na Fazenda Serra Branca há sete
anos. Ela conta que o cheiro do agrotóxico chega até as trabalhadoras,
mesmo quando elas não estão nos locais onde o veneno é aplicado.
“Dependendo da posição do vento, a gente sentia. E se tivesse aplicando
com o avião, era mais forte. Às vezes eu chegava em casa com dor de
cabeça e sabia que era do veneno”, lembra ela, que prefere não se
identificar. “Sabe como é, né? A gente depende das fazendas”,
conforma-se. O marido ainda trabalha no agronegócio.
Se os males causados pelos agrotóxicos se limitassem às mães e aos
seus bebês, o problema já seria grave o bastante, mas o sanitarista
Inácio Pereira Lima faz um alerta. “Como minha pesquisa foi voltada para
a mulher, coletei amostras biológicas exclusivas; por isso foi o leite.
Mas, se a pesquisa fosse da população em geral, poderia optar por outro
tipo de amostra como sangue ou urina. E talvez chegasse a esses mesmos
resultados. Ou seja, toda a população está sob risco, e não só as mães
que amamentam”, me explicou o pesquisador.
Ouvi de muitas pessoas da cidade que alguns fazendeiros não são
simpáticos com quem os contraria. O conselho que todo mundo me deu foi:
“Não fale com eles”. As fazendas têm seguranças armados.
Decidi ir ao escritório da Fazenda Canel, administrada pelas famílias
Bortolozzo e Segnini, originárias de Araraquara, no interior de São
Paulo. Eles se instalaram no Piauí há 30 anos e são os pioneiros no
plantio de soja no estado. Eu queria entender a posição deles. Todos se
negaram a conversar comigo. Funcionários justificaram que os
responsáveis estavam “viajando para o exterior”.
Mais medo de demissão do que de doença
Na cidade onde quase todo mundo se conhece, o mesmo segredo é
compartilhado. Ninguém fala para os profissionais de saúde quando sente
os efeitos do agrotóxico no organismo, e dificilmente o hospital é
procurado. Se a intoxicação for mais grave, os trabalhadores escondem
dos médicos sua possível causa. É muito difícil detectar
laboratorialmente doenças causadas por agrotóxico. Se o paciente não
fala, muitas internações provocadas pelos químicos não caem na conta
deles.
A enfermeira Alanne Pinheiro me disse que as pessoas têm medo de
perder o emprego. “Se eles disserem que estão doentes por causa dos
agrotóxicos, aquilo pode repercutir na cidade e ficar mal pro
fazendeiro. Os trabalhadores têm mais medo de demissão do que de uma
doença.”
‘Quando a gente começa a investigar, eles não falam tudo.’
Há ainda a falta de conhecimento sobre os riscos dos agrotóxicos.
“Eles nem acreditam que possa acontecer algum problema grave porque os
danos só aparecem a longo prazo. Não existe a percepção de que os males
se acumulam e podem trazer doenças irreversíveis, como um câncer que já
se descobre em metástase”, diz Alanne.
Um possível exemplo é João*, marido de Helena*. Conversei com ela
porque João sai cedo para a Fazenda Nova Aliança e só chega à noite.
Este ano, o trabalhador teve uma alergia nos braços, mas decidiu tratar
em casa. Sem avaliação médica e sem exames, João se auto-medicou. “Acho
que não foi agrotóxico, porque ele é pedreiro e não mexe com veneno.
Deve ter sido por causa do cimento”, opina a mulher.
É comum que os moradores atribuam os sintomas da intoxicação a outras
causas. “Os pacientes chegam com queixas vagas, como ardência nos
olhos. Mas, quando a gente começa a investigar, eles não falam tudo”,
comenta a enfermeira Iraídes. Nas raras vezes em que vão ao hospital,
são levados por algum funcionário da fazenda. Com essa vigília, o medo
de perder o emprego é maior e a saúde fica em segundo plano.
O Centro de Referência em Saúde do Trabalhador está tentando evitar o
alto índice de subnotificação: eles treinam os enfermeiros e médicos
para que notifiquem os casos de intoxicação quando perceberem os
sintomas, independente do que afirmam os pacientes.
Tecnologia para o lucro
Geivan Borges da Silva é técnico em agropecuária e presta assessoria
para muitos fazendeiros de Uruçuí. Ele defende que o uso de sementes
transgênicas reduz a necessidade de agrotóxicos. “Quase 100% das áreas
plantadas aqui são de variedades transgênicas, resistentes a muitos
tipos de praga e ervas daninhas”, ameniza.
Na verdade, as provas científicas dizem o contrário. O
dossiê sobre agrotóxicos da
Abrasco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, mostra que o uso de
transgênicos aumentou a necessidade de defensivos agrícolas. É só olhar
para a soja, campeã no uso de agrotóxicos: 93% da safra é transgênica, e
a quantidade de litros de produtos químicos aumentou mesmo assim.
Na região sul do Piauí, as sementes de milho, soja e algodão também
são vendidas pela Monsanto, a mesma que fornece o glifosato, de acordo
com o
cadastro de junho de 2018 da Agência de Defesa Agropecuária do Piauí, a Adapi.
Outra tecnologia defendida por Silva é a que minimiza a disseminação
do agrotóxico no ar: usa-se um produto que aumenta o peso da gota,
fazendo com que ela desça diretamente na planta e não disperse com o
vento. “Tudo é agricultura de precisão para reduzir os custos”,
argumenta.
É certo que essas tecnologias otimizam a produção agrícola, mas elas
foram incapazes de evitar a intoxicação de Emanuel*, que trabalha como
operador de máquina de aplicação de agrotóxico na Fazenda Condomínio
União 2000.
Após um ano trabalhando, Emanuel sentiu tontura, fraqueza, ardência
nos olhos e chegou a vomitar. Quem conta essa história é a esposa dele,
Rosa*. “Nós fomos pro hospital e quando saiu o resultado do exame, deu
que tinha agrotóxico no sangue. A médica passou remédio, mandou ele se
afastar do trabalho por um tempo e tomar muito leite”.
Emanuel melhorou, mas há três anos voltou para o mesmo ofício. “Ele
já me disse que só fica até o final desse ano. Não vale a pena perder a
saúde por causa de dois mil por mês”, diz Rosa. Eram 18h quando me
despedi. O marido dela ainda não tinha chegado. Ele trabalha para a
vereadora Tânia Fianco, do PSDB.
No Brasil, o Projeto de Lei conhecido como PL do Veneno pretende
liberar mais rapidamente vários produtos, entre eles muitos que são à
base de glifosato. O lobby da indústria é pesado, e ataca sobretudo a
Anvisa, agência reguladora suscetível a todo tipo de pressão e que já
mostrou que está disposta a fazer o jogo das grandes corporações.
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*Os nomes dos trabalhadores foram alterados para preservar suas identidades.