sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Até os ventos contrários nos conduzirão ao porto seguro

   Até os ventos contrários nos conduzirão ao porto seguro                                  
                                                           Leonardo Boff

         O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta e na amarra”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, no meio da atua crise, que nos coloquem no reto caminho da justiça para todos.
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo nem pelos sucessivos golpes sofridos como o de 1964  civil-militar e o de 2016 parlamentar-juridico-mediático.
Apesar da pobreza, da marginalização e da perversa desigualdade social, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação não mais cindida mas coesa.
O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor.  A esperança nos remete ao princípio-esperança de Ernst Bloch que é mais que uma virtude; é uma pulsão vital que sempre nos faz suscitar novos sonhos, utopias e projetos de um mundo melhor.
Existe, no momento atual, marcado por um quase naufrágio do pais, certo medo. O oposto ao medo, porém, não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no carnaval e na música. Mas  pode ser bom na agricultura, na arquitetura, nas artes e na sua inesgotável alegria de viver.
Uma das características da cultura brasileira é a jovialidade e o sentido de humor, que ajudam  aliviar as contradições  sociais. Essa alegria jovial nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer outra coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor que o relativiza e o torna suportável. O efeito é a leveza  e a vivacidade que tantos admiram em nós.
Está havendo um casamento que nunca antes fora feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular é “um saber de experiências feito”, que  nasce do sofrimento e dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo,  bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, teremos reinventado um outro Brasil. E seremos todos mais sábios.
O cuidado pertence à essência do humano e  de toda a vida. Sem o cuidado adoecemos  e morremos.. Com cuidado, tudo  é protegido e dura muito  mais. O desafio hoje é entender a  política como cuidado do Brasil, de sua gente, especialmente dos mais vulneráveis, como índios e negros, cudado  da natureza, da educação, da saúde, da justiça para todos. Esse cuidado é a prova de que amamos  o nosso pais e queremos todos incluídos.
Uma das marcas do povo brasileiro bem analisada pelo antropólogo Roberto da Matta, é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, em geral, ele não é intolerante nem dogmático. Ele gosta  de acolher bem os estrangeiros. Ora, esses valores são  fundamentais para uma globalização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo. Infelizmente nos últimos anos surgiu, contra a nossa tradição, uma onda de ódio, discriminação, fanatismo, homofobia e desprezo pelos pobres (o lado sombrio da cordialidade, segundo Buarque de Holanda) que nos mostram que somos, como todos os humanos, sapiens e demens e agora mais demens.. Mas isso, seguramente, passará e predominará a convivência mais tolerante e apreciadora das diferenças.
O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos  também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos diferentes que para cá vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, uma pequena antecipação simbólica de que tudo é resgatável: a humanidade unida, una e diversa,  sentados à mesa numa fraterna comensalidade, desfrutando dos bons frutos de nossa boníssima,  grande, genersosa Mãe Terra , nossa Casa Comum.
É um sonho? Sim, aquele necessário e bom.
Leonardo Boff escreveu Brasil: concluir a refundação ou porolongar a dependência? Vozes 2018.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Monsanto: um aborto a cada quatro grávidas


https://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/monsanto-um-aborto-a-cada-quatro-gravidas/

Monsanto: um aborto a cada quatro grávidas

Como Uruçuí, no Piauí, tornou-se uma vitrine macabra dos efeitos do glifosato, produzido pela transnacional. Na cidade, 25% das grávidas abortam e 83% das mães têm leite contaminado
Por Nayara Felizardo, no The Intercept Brasil
O filho de Maria Félix, de 21 anos, resistiu pouco mais de seis meses de gestação. Morreu ainda no ventre, com apenas 322 gramas. A causa do aborto, que aconteceu com 25 semanas de gravidez, foi má formação: o bebê tinha o intestino para fora do abdômen e também problemas no coração. Não é incomum que as mães da região percam seus filhos precocemente. O bebê de Maria, ao que tudo indica, foi mais uma vítima precoce do agrotóxico glifosato, usado em grandes plantações de soja e de milho em Uruçuí, a 459 km de Teresina, no Piauí.
O mesmo veneno que garante a riqueza dos fazendeiros da cidade, no sul do estado, está provocando uma epidemia de intoxicação com reflexo severo em mães e bebês. Estima-se que uma em cada quatro grávidas da cidade tenha sofrido aborto, que 14% dos bebês nasçam com baixo peso (quase do dobro da média nacional) e que 83% das mães tenham o leite materno contaminado. Os dados são de um levantamento do sanitarista Inácio Pereira Lima, que investigou as intoxicações em Uruçuí na sua tese de mestrado em saúde da mulher pela Universidade Federal do Piauí.
Conheci a história de Maria Félix Costa Guimarães na maternidade do hospital regional Tibério Nunes, na cidade de Floriano. É para lá que as mulheres de Uruçuí são encaminhadas quando têm problemas na gravidez. Nos primeiros exames, feitos em julho, já havia sido identificada a má-formação no feto. Em setembro, no leito do hospital, encontrei a jovem, que lia a Bíblia e se recusava a comer. Carregava um olhar entristecido, meio envergonhado. Ela tinha sofrido o aborto no dia anterior e aguardava o médico para fazer uma ultrassom e se certificar de que não seria necessária a curetagem (cirurgia para retirada de restos da placenta).
Maria não tinha condições emocionais para conversar, por isso falei com a sua tia, a funcionária pública Graça Barros Guimarães. Ela não sabia sobre a pesquisa realizada em Uruçuí, mas acredita nos resultados apontados por Lima. “Se a gente for avaliar, o agrotóxico causa problema respiratório e de alergia. Então é claro que se a mulher tiver grávida, o bebê pode se contaminar também”.
Graça me contou que a sobrinha sempre esteve rodeada de fazendas de soja. A casa onde vive, em Uruçuí, fica a cerca de 15 km de uma plantação. Antes, ela morava na zona rural do município de Mirador, no Maranhão, onde também há plantio de soja. “Os fazendeiros tomaram conta de tudo.”
Em meados de agosto estive em Uruçuí para conversar com profissionais da saúde e com os trabalhadores agrícolas. Eu queria entender como viviam as pessoas no município contaminado pelo glifosato, e se elas tinham noção de que o problema existe. Também liguei para o pesquisador Inácio Pereira Lima, que culpa o agronegócio pelo adoecimento das pessoas. “Tudo isso é consequência do modelo de desenvolvimento econômico em que só o lucro está em foco, independente das consequências negativas para a população”, ele me disse.
Epidemia de glifosato
O glifosato é o agrotóxico mais usado no Brasil. É vendido principalmente pela Monsanto, da Bayer, com o nome comercial de Roundup. Seus impactos na saúde humana são tão conhecidos que o Ministério Público pediu que sua comercialização fosse suspensa no Brasil até que a Anvisa fizesse sua reavaliação toxicológica. Em agosto, a justiça aceitou e o glifosfato foi proibido. A suspensão foi classificada como um “desastre” pelo ministro da Agricultura, Blairo Maggi, e foi duramente combatida por ruralistas e pela indústria.
A decisão, no entanto, foi derrubada pela justiça em segunda instância poucas semanas depois. Maggi – que também é conhecido como “rei da soja” – não escondeu o seu entusiasmo com a liberação do agrotóxico:

A Monsanto diz que o produto é seguro, mas e-mails da empresa divulgados no ano passado mostram que ela pressionou cientistas e órgãos de controle nos EUA para afirmarem que o glifosato não causa câncer. Isso não impediu a Monsanto de ser condenada a pagar mais de R$ 1 bilhão a um homem que está morrendo de câncer nos Estados Unidos. Cerca de 4 mil ações parecidas estão em curso naquele país.
O produto representa quase a metade de todos os agrotóxicos comercializados no Piauí. O pesquisador Lima explicou que a presença da substância no leite materno indica a contaminação direta ou que as quantidades utilizadas na atividade agrícola da região são tão elevadas, que o excesso não foi degradado pelo metabolismo da planta. As mulheres estudadas por ele sequer trabalham nas lavouras: elas estão intoxicadas porque fazem limpeza, cozinham nas fazendas ou porque comeram o herbicida nos alimentos. Lima, em sua tese, explica que o organismo é contaminado pela pele e vias respiratória e oral.
Mulheres, as maiores vítimas
Pelos registros do hospital regional de Uruçuí, os abortos ocorrem geralmente em mulheres entre 20 e 30 anos, que chegam até a 10ª semana de gestação. O número elevado de casos é citado por Iraídes Maria Saraiva, enfermeira plantonista. “São muitas as mulheres que chegam com sangramento ou já com o ultrassom mostrando que o feto não tem batimentos cardíacos. A maioria desses abortos são espontâneos”, me disse.
Muitas mulheres têm a gravidez interrompida logo nas primeiras semanas. Sem saber que estão grávidas, elas seguem trabalhando cercadas pelo glifosato. Quando descobrem, já não há mais o que fazer. “Dificilmente é a primeira gravidez e elas não têm doenças pré-existentes. Quer dizer, são mulheres jovens que aparentam ser saudáveis”, observou a enfermeira.
Há ainda as que sabem que estão esperando um filho mas não podem deixar o trabalho, simplesmente porque dependem do salário. As que passam da fase mais crítica e levam a gravidez até o fim correm alto risco de ter má formação do feto.
Na maternidade de Floriano, o coordenador do setor de obstetrícia Luiz Rosendo Alves da Silva já viu muitos casos de aborto e de má-formação. Ele acredita na culpa dos agrotóxicos. “É uma contaminação lenta, gradual e diária. A principal consequência é a atrofia de alguns órgãos, principalmente coração e pulmão”.
Alanne Pinheiro, enfermeira do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), observa que as mulheres estão expostas aos agrotóxicos de forma mais perigosa do que os homens que trabalham diretamente na aplicação do veneno. “Elas ficam na cozinha ou fazem a limpeza das fazendas e acabam inalando o agrotóxico de forma indireta. Como não usam roupas especiais, sofrem mais o efeito da intoxicação passiva.”
PIB alto, salário baixo
A cidade de 21 mil habitantes tem as características comuns do interior, onde a vida acontece sossegada e todo mundo se conhece. Quase um terço da população vive na zona rural. No percurso de 40 km do centro até o Assentamento Flores – onde moram muitos dos trabalhadores com quem eu pretendia conversar – quase não há árvores, exceto em pontos isolados ao redor da casa grande, a sede da fazenda. A sensação é de um enorme deserto e uma riqueza distribuída entre poucos.
Na pacata Uruçuí, mesmo quem não trabalha diretamente na agricultura está sendo contaminado.
Uruçuí não é um município pobre. O PIB per capita, de R$ 49 mil, era o 2º maior do Piauí em 2015, último ano da pesquisa do IBGE. Perdia apenas para a cidade vizinha, a também agrícola Baixa Grande do Ribeiro. Mas na prática, o salário dos trabalhadores é de R$ 1.900 por mês, em média.
Quem enriquece de verdade são os fazendeiros. A maioria deles saiu do sul do Brasil para o cerrado piauiense em busca de terras e do clima ideal para o plantio de suas lavouras. Outros ocupam ou já ocuparam cargos na política como deputados ou vereadores. É o caso do ex-deputado estadual Leal Júnior, eleito três vezes para o mesmo cargo, e da vereadora de Uruçuí Tânia Fianco.
‘Não fale com eles’
Joana* trabalhou como cozinheira na Fazenda Serra Branca há sete anos. Ela conta que o cheiro do agrotóxico chega até as trabalhadoras, mesmo quando elas não estão nos locais onde o veneno é aplicado. “Dependendo da posição do vento, a gente sentia. E se tivesse aplicando com o avião, era mais forte. Às vezes eu chegava em casa com dor de cabeça e sabia que era do veneno”, lembra ela, que prefere não se identificar. “Sabe como é, né? A gente depende das fazendas”, conforma-se. O marido ainda trabalha no agronegócio.
Se os males causados pelos agrotóxicos se limitassem às mães e aos seus bebês, o problema já seria grave o bastante, mas o sanitarista Inácio Pereira Lima faz um alerta. “Como minha pesquisa foi voltada para a mulher, coletei amostras biológicas exclusivas; por isso foi o leite. Mas, se a pesquisa fosse da população em geral, poderia optar por outro tipo de amostra como sangue ou urina. E talvez chegasse a esses mesmos resultados. Ou seja, toda a população está sob risco, e não só as mães que amamentam”, me explicou o pesquisador.
Ouvi de muitas pessoas da cidade que alguns fazendeiros não são simpáticos com quem os contraria. O conselho que todo mundo me deu foi: “Não fale com eles”. As fazendas têm seguranças armados.
Decidi ir ao escritório da Fazenda Canel, administrada pelas famílias Bortolozzo e Segnini, originárias de Araraquara, no interior de São Paulo. Eles se instalaram no Piauí há 30 anos e são os pioneiros no plantio de soja no estado. Eu queria entender a posição deles. Todos se negaram a conversar comigo. Funcionários justificaram que os responsáveis estavam “viajando para o exterior”.
Mais medo de demissão do que de doença
Na cidade onde quase todo mundo se conhece, o mesmo segredo é compartilhado. Ninguém fala para os profissionais de saúde quando sente os efeitos do agrotóxico no organismo, e dificilmente o hospital é procurado. Se a intoxicação for mais grave, os trabalhadores escondem dos médicos sua possível causa. É muito difícil detectar laboratorialmente doenças causadas por agrotóxico. Se o paciente não fala, muitas internações provocadas pelos químicos não caem na conta deles.
A enfermeira Alanne Pinheiro me disse que as pessoas têm medo de perder o emprego. “Se eles disserem que estão doentes por causa dos agrotóxicos, aquilo pode repercutir na cidade e ficar mal pro fazendeiro. Os trabalhadores têm mais medo de demissão do que de uma doença.”
‘Quando a gente começa a investigar, eles não falam tudo.’
Há ainda a falta de conhecimento sobre os riscos dos agrotóxicos. “Eles nem acreditam que possa acontecer algum problema grave porque os danos só aparecem a longo prazo. Não existe a percepção de que os males se acumulam e podem trazer doenças irreversíveis, como um câncer que já se descobre em metástase”, diz Alanne.
Um possível exemplo é João*, marido de Helena*. Conversei com ela porque João sai cedo para a Fazenda Nova Aliança e só chega à noite. Este ano, o trabalhador teve uma alergia nos braços, mas decidiu tratar em casa. Sem avaliação médica e sem exames, João se auto-medicou. “Acho que não foi agrotóxico, porque ele é pedreiro e não mexe com veneno. Deve ter sido por causa do cimento”, opina a mulher.
É comum que os moradores atribuam os sintomas da intoxicação a outras causas. “Os pacientes chegam com queixas vagas, como ardência nos olhos. Mas, quando a gente começa a investigar, eles não falam tudo”, comenta a enfermeira Iraídes. Nas raras vezes em que vão ao hospital, são levados por algum funcionário da fazenda. Com essa vigília, o medo de perder o emprego é maior e a saúde fica em segundo plano.
O Centro de Referência em Saúde do Trabalhador está tentando evitar o alto índice de subnotificação: eles treinam os enfermeiros e médicos para que notifiquem os casos de intoxicação quando perceberem os sintomas, independente do que afirmam os pacientes.
Tecnologia para o lucro
Geivan Borges da Silva é técnico em agropecuária e presta assessoria para muitos fazendeiros de Uruçuí. Ele defende que o uso de sementes transgênicas reduz a necessidade de agrotóxicos. “Quase 100% das áreas plantadas aqui são de variedades transgênicas, resistentes a muitos tipos de praga e ervas daninhas”, ameniza.
Na verdade, as provas científicas dizem o contrário. O dossiê sobre agrotóxicos da Abrasco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, mostra que o uso de transgênicos aumentou a necessidade de defensivos agrícolas. É só olhar para a soja, campeã no uso de agrotóxicos: 93% da safra é transgênica, e a quantidade de litros de produtos químicos aumentou mesmo assim.
Na região sul do Piauí, as sementes de milho, soja e algodão também são vendidas pela Monsanto, a mesma que fornece o glifosato, de acordo com o cadastro de junho de 2018 da Agência de Defesa Agropecuária do Piauí, a Adapi.
Outra tecnologia defendida por Silva é a que minimiza a disseminação do agrotóxico no ar: usa-se um produto que aumenta o peso da gota, fazendo com que ela desça diretamente na planta e não disperse com o vento. “Tudo é agricultura de precisão para reduzir os custos”, argumenta.
É certo que essas tecnologias otimizam a produção agrícola, mas elas foram incapazes de evitar a intoxicação de Emanuel*, que trabalha como operador de máquina de aplicação de agrotóxico na Fazenda Condomínio União 2000.
Após um ano trabalhando, Emanuel sentiu tontura, fraqueza, ardência nos olhos e chegou a vomitar. Quem conta essa história é a esposa dele, Rosa*. “Nós fomos pro hospital e quando saiu o resultado do exame, deu que tinha agrotóxico no sangue. A médica passou remédio, mandou ele se afastar do trabalho por um tempo e tomar muito leite”.
Emanuel melhorou, mas há três anos voltou para o mesmo ofício. “Ele já me disse que só fica até o final desse ano. Não vale a pena perder a saúde por causa de dois mil por mês”, diz Rosa. Eram 18h quando me despedi. O marido dela ainda não tinha chegado. Ele trabalha para a vereadora Tânia Fianco, do PSDB.
No Brasil, o Projeto de Lei conhecido como PL do Veneno pretende liberar mais rapidamente vários produtos, entre eles muitos que são à base de glifosato. O lobby da indústria é pesado, e ataca sobretudo a Anvisa, agência reguladora suscetível a todo tipo de pressão e que já mostrou que está disposta a fazer o jogo das grandes corporações.
________________

*Os nomes dos trabalhadores foram alterados para preservar suas identidades.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Um milhão de mulheres derrotarão Bolsonaro?

op
https://outraspalavras.net/brasil/um-milhao-de-mulheres-derrotarao-bolsonaro/

Um milhão de mulheres derrotarão Bolsonaro?

Uma das grandes marchaque ajudaram a derrubar Eduardo Cunha, em 2016. Por que conseguimos organizar manifestações lindas e poderosas, mas que não mexem um palito na estrutura e nas nossas vidas ?
Grupo viralizou e é importante — mas não há projeto comum nem organização política real. Vencer patriarcado exigirá ir muito além do feminismo como “lifestyle”
Por Marília Moschkovitch
Há poucos dias foi criado – e viralizou – no Facebook um grupo chamado “Mulheres Contra Bolsonaro”. Em seguida, com a viralização, vários homônimos também surgiram. O grupo “original”, se é que se pode chamar assim, alcançou rapidamente a marca impressionante de 1 milhão de membros. Ninguém entendeu muito bem como (e nem pelas mãos de quem) o grupo surgiu, mas o fenômeno é: um milhão de mulheres expressando publicamente, ou ao menos entre si, a repulsa ao candidato presidencial da extrema direita. Não demorou para que o feito fosse comemorado: um milhão de mulheres aparentemente se juntando e se organizando contra Bolsonaro. Eventos sendo chamados para “ir às ruas” e demonstrar que são (somos) muitas as mulheres contrárias ao que representa essa candidatura.
Ou não.
A heterogeneidade do grupo (e sua desorganização, decorrente do espontaneísmo) deixa claro que o problema comum entre esse um milhão de mulheres não é necessariamente o programa de Bolsonaro – já que várias participantes são eleitoras de Amoêdo (que também defende a criminalização total do aborto, a privatização total dos sistemas públicos), Marina Silva (que ainda não abandonou a proposta de rifar o direito das mulheres ao próprio corpo num plebiscito sobre o aborto), Ciro Gomes (cuja vice Kátia Abreu representa o ponto de seu programa em que o agronegócio é beneficiado, num modelo desenvolvimentista que mata mulheres quilombolas e indígenas, além de ter afirmado categoricamente ser contrária à legalização do aborto). Como é possível observar entre a diversidade de membros, tampouco é possível dizer que haja qualquer linha política em relação aos direitos das mulheres (o que se reflete também nos apoios variados a tantas candidaturas que lidam de formas tão distintas com a questão).
O grupo, com o belo slogan como título, nesse ponto se parece com as passeatas “pela paz” ou com os gritos de 2013 a favor da “saúde e educação”: qual paz? Com qual modelo de segurança pública? Qual saúde e qual educação? Pergunto (e me pergunto) o mesmo em relação ao slogan do grupo: Mulheres Contra Bolsonaro mas que defendem colocar o quê no lugar? Será que o que defendem é tão diferente assim do que representa a candidatura rejeitada?
A questão é complexa, e perpassa uma crítica (e autocrítica, necessariamente) em relação às táticas de ação do movimento feminista brasileiro – que em raras ocasiões hoje pode ser chamado com alguma propriedade de “movimento social”, e escrevo isso com o pesar de quem constrói esse espaço nas ruas, partidos, movimentos sociais e universidade desde 2005, tendo tido essa construção como questão central de tese. Essa crítica é uma autocrítica, é uma análise que engloba a todas – muito além do grupo Mulheres Contra Bolsonaro (recentemente elaborei parte delas ao indagar sobre a Argentina, “o que elas têm que nós não temos?”), e muito além até do Brasil (parte dessas críticas rumino como boa vaca desde a tal “Marcha das Mulheres Contra Trump” nos EUA, e a chamada “greve” de mulheres, que infelizmente de greve teve mesmo muito pouco). Vamos por partes.
“Mulheres” ou “Feminismo”?
TEXTO-MEIO Pode ser só um slogan, mas quando um slogan é tudo que há (porque não há, pelo menos ainda, projeto político comum), o uso da categoria “mulheres” é historicamente um problema. Isso acontece por diversos motivos. As feministas negras nos Estados Unidos já questionavam – assim como as teóricas lésbicas francesas – afinal de contas, o que raios é “uma mulher”. De certa maneira, do ponto de vista desse dois grupos, elas eram tratadas pela sociedade e pelo próprio movimento feminista, nos anos 1970, como não-mulheres. Um exemplo bobo (pero no mucho): quando nos anos 1970 repetia-se (e infelizmente ainda se repete) a falácia de que as mulheres “entraram no mercado de trabalho a partir da década de 1960”, ignorando que o trabalho das mulheres negras sempre sustentou a existência do modo de produção capitalista, e das sociedades coloniais, tudo muito antes dessa década. Ou quando se trata as relações afetivas como exclusivamente homem-mulher (quando se fala em filhos, divisão do trabalho doméstico, etc). Mais recentemente, o transfeminismo reacendeu a questão: as mulheres trans* não são consideradas, dentro do próprio feminismo, como mulheres. Mais um exemplo que infelizmente não é de hoje: as prostitutas e trabalhadoras sexuais, que são consideradas por muitas feministas como mulheres que teriam menos direito à autonomia do que as demais trabalhadoras.
Ao mesmo tempo, houve historicamente uma série de disputas entre as ideias de “Feminismo” versus “Movimento de mulheres”. Por um lado, criticava-se o “Feminismo” por ser branco, de classe média, burguesa ou pequeno-burguesa (na União Soviética essa era uma das críticas de Alexandra Kollontai ao que os países capitalistas vinham chamando de “Feminismo”, sobretudo o movimento das sufragistas que, em larga medida, ignorava uma vez mais as mulheres negras e trabalhadoras como mulheres). Por outro lado, a categoria “mulher” foi sistematicamente usada para despolitizar o debate e afirmar que os problemas das mulheres eram das mulheres, e não estruturais e estruturantes da nossa sociedade como um todo. Hoje não se pode dizer que o feminismo siga sendo um movimento branco e pequeno-burguês, graças às contribuições imensuráveis do feminismo negro, das putafeministas, do transfeminismo, e das feministas marxistas (feminismo classista). A categoria “Mulher”, porém, segue sendo um problema.
O problema da categoria “mulher” é que “mulher” não é um projeto político comum. Feminismo é. O mesmo problema pode ser visto em grupos de “mães” – “mãe” não é projeto político comum, Feminismo é. Lembram do tal Partido das Mulheres, que não tinha nenhuma mulher e era conservador? Pois então. Ao falarmos em “mulher” podemos defender propostas hiperconservadoras – atrelando-as ao papel natural de mãe, por exemplo; ou defendendo a castração química para estupradores (ponto comum da plataforma política de Bolsonaro com alguns grupos feministas que se auto intitulam “radicais” no Brasil, a partir de uma leitura mal feita e anacrônica de textos da década de 1970).
Por isso tantos grupos lutam, desde os anos 1980, para que a questão do Feminismo não seja “A Mulher” mas o Gênero (e lembro que o próprio Problemas de Gênero, de Butler, abre com a pergunta: “Seria a mulher o sujeito político do feminismo?”) Divergências e críticas sobre o conceito de gênero à parte (boa parte delas mapeadas em minha tese de doutorado, por enquanto disponível apenas em inglês), os grandes avanços consolidados com a formulação desse conceito entre as décadas de 1970 e 1980 não tiveram e não têm mero impacto teórico. Desde as propostas das feministas marxistas na França, influenciadas pelo fenômeno de Maio de 1968, vinha-se pensando em três pontos cruciais para desvendar a opressão das mulheres em sociedades como a nossa; grosso modo: a) “mulher” é uma categoria num sistema, ou seja, é impossível isolar essa categoria; b) esse sistema é relacional, portanto as relações entre categorias importam mais do que cada categoria em si mesma; c) essas relações são relações sociais, e não são dados da natureza. Essa foi a base para as noções de interseccionalidade e consubstancialidade, que recusam o isolamento de uma categoria abstrata “Mulher/Mulheres”, no geral, como no caso do título-slogan “Mulheres Contra Bolsonaro”.
O slogan, contudo, é forte e bonito. Serve para as pessoas se declararem publicamente enquanto opositoras do candidato e isso não deixa de ser importante (e a balela de que somos nós que estamos dando visibilidade só pode ser evocada por quem ignora como funciona historicamente o impulsionamento de certos candidatos em nosso país, mesmo antes das redes sociais – recomendo ler e pesquisar sobre as eleições de 1989 e assistir o documentário Muito Além do Cidadão Kane, só para ficarmos no período “democrático”). Mas enquanto articulação política para derrotar não só uma candidatura, mas todo um projeto de país (que transcende a candidatura), parece fraco e insuficiente, pelo menos por enquanto. Em parte, porque aglutina pela categoria “Mulher”, e não por um projeto/proposta/viés político e politizado. Em parte, porque esbarra num os grandes desafios que o feminismo no Brasil encontra: a organização política.
Feminismo e organização política: o que elas têm que nós não temos?
Houve muitas comparações entre o grupo “Mulheres Contra Bolsonaro” (e os encontros/marchas que alguns membros desses grupos estão puxando em algumas cidades brasileiras) e as marchas de mulheres contra Trump nos Estados Unidos. Em termos de derrota de um projeto político, a marcha também não deu (ainda) resultados estrondosos. Embora uma ou outra figura tenham ganhado notoriedade local, nada se mexeu em termos do sistema eleitoral absurdo dos EUA, nem melhoraram as políticas para mulheres no país (se adotarmos uma perspectiva de “Gender Mainstreaming”, ou seja, pensar o gênero como fator transversal em todas as políticas públicas, veremos que na verdade pioraram). Uma ou outra alma otimista pode citar o fenômeno “#MeToo” como exemplo do impacto positivo das marchas: mas que exemplo de sucesso é esse, baseado em punitivismo, organizado de maneira privada e individualizada (e, portanto, bastante despolitizada)?
Nos EUA, como no caso do grupo de Facebook no Brasil, como no caso do nosso Fora Cunha, e das marchas de apoio à legalização do aborto mais recentes, o limite da ação que se diz política é a própria política. Ou melhor, uma visão específica da política: a ideia de que um coletivo e uma ação coletiva são a mera soma de ações individuais, colocadas no mesmo espaço físico ou virtuais, sem necessariamente coesão nenhuma e projeto comum nenhum.
Gosto de comparar com o caso da Argentina, que é um “case de sucesso” do feminismo como movimento social, com a força que isso implica.
Na ocasião da tal “greve” de mulheres, o Ni Una Menos foi citado sistematicamente como exemplo. Infelizmente quem trouxe o exemplo (alô Nancy Fraser e Angela Davis) não parece ter analisado muito bem as condições concretas e relações sociais que fizeram desse exemplo “O” exemplo.
O Ni Una Menos é um movimento unificado organizado em comitês locais, por bairro ou cidade. Esses comitês são permanentes, como coletivos feministas locais alinhavados em um grande movimento. As pessoas participam para além da internet, e sua composição é bem diversa. Há vários comitês em que é comum a participação de homens (e como não, se estamos diante de uma estrutura, um sistema, que também os produz?). Na Argentina, não há um sentimento de antipartidarismo, antisindicalismo e anticomunismo tão acirrado quanto no Brasil (as nossas ditaduras parecem ter sido bem mais eficazes que as deles), e é normal que partidos de esquerda e sindicatos se engajem nesses comitês locais. Historicamente, a sociedade argentina tem uma tradição de organizações locais, por bairro – o que foi essencial para as mobilizações após a crise no governo Menem, por exemplo, e para a maneira como o trabalho de memória da ditadura foi feito. Há um senso de urgência da política pela sobrevivência, uma noção de construção popular, e um acúmulo de experiência e militância política em várias regiões. O Ni Una Menos tem uma estrutura muito mais parecida com o MTST e com a Frente Povo Sem Medo do que com qualquer grupo ou organização feminista ou de mulheres no Brasil. É de fato um movimento social. E por isso tem a força que tem, e conseguiu alavancar uma luta popular significativa pela legalização do aborto na Argentina.
É diante desse “case” que precisamos nos perguntar: porque conseguimos mobilizar tantas mulheres contra Eduardo Cunha, ele “foi saído” do cargo mas continuamos morrendo mais do que as mulheres em boa parte dos países do mundo? Por que conseguimos organizar manifestações lindas e poderosas, mas que não mexem um palito na estrutura e nas nossas vidas (e pelo contrário, vemos a ascensão de discursos conservadores inclusive entre nós mulheres)? A chave está na concepção do que deve ser uma ação política feminista.
Enquanto pensarmos o feminismo como um lifestyle, quase uma commodity como bolsas estampadas de Frida Kahlo e gatas apelidadas de Pagu; sem entendermos que é preciso perder o medo de fazer política de fato (e isso exige disputar, perder, deixar alguns anseios pessoais de lado por um projeto coletivo, frustrar-se às vezes, não ter consenso em outras, deixar o ego de lado, etc), não vamos avançar. Nem na pauta do aborto, e nem na resistência mais ampla contra o projeto de país que observamos na candidatura de Bolsonaro. O slogan continuará sendo só um slogan, e a participação num ambiente virtual seguirá desencadeada de ações cotidianas permanentes e concretas, servindo apenas para dormirmos melhor à noite (não que isso não seja importante, mas certamente não basta).
Para fazer política é preciso lutar muito, quando estamos por baixo. Desfazer rotinas, encaixar tempo para dedicação e engajamento, aprender muito. Talvez o ponto alto de 1 Milhão de Mulheres Contra Bolsonaro seja a sensação essencial de que não estamos sozinhas. Mas para que isso seja mais, precisamos enfrentar a barreira da tela e dos eventos e atos isolados. Precisamos nos organizar. O fascismo não vai se destruir sozinho (e nem nós, mulheres, vamos destruí-lo sozinhas, pois não somos as únicas que ele oprime).

oficina direitos humanos e da Terra



C O N V I T E        

Companheiras e Companheiros,
            O Fórum de Direitos Humanos e da Terra - FDHT, Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos  e  Articulação para o Monitoramento dos DH no Brasil, convida as organizações e Movimentos Sociais para a Oficina de Direitos Humanos e da Terra do Mato Grosso, a ser realizada de 26 a 28 de fevereiro de 2018, iniciando às 9:00hs do primeiro dia, no auditório 68 do Instituto de Educação da UFMT, Cuiabá- MT.
            A Atividade é parte das ações do Projeto “Defendendo Vidas e Garantindo Direitos Expropriados”, da  Articulação para o Monitoramento dos DH no Brasil  e do Fórum de Direitos Humanos e da Terra, tendo como o principal objetivo o fortalecimento das organizações e das lutas em defesa da vida dos defensores e defensoras e da garantia dos direitos humanos para todas as pessoas. Também contribuir no enfrentamento das ameaças crescentes aos defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil frente à ausência de regulamentação do Programa de Proteção dos Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), de sua pouca efetividade e abrangência, bem como do agravamento da perseguição aos defensores e defensoras e movimentos sociais nesta conjuntura de fortalecimento dos setores reacionários, de ataque às conquistas sociais e de desestruturação do Estado Democrático de Direito.

            O objetivo da Oficina é fortalecer a luta em defesa dos direitos humanos; proteger seus defensores/as e movimentos sociais, contribuindo na construção de alternativas para enfrentar as crescentes ameaças e violações que se agudizam no momento atual; enfrentar a criminalização dos movimentos sociais e, finalmente, fortalecer a rede de solidariedade e proteção as defensoras e defensores no Mato Grosso.

            A Oficina será um importante espaço para o debate, reflexão, troca de experiências, fortalecimento e articulação da proteção das lutadoras e lutadores  para o enfrentamento ante da atual conjuntura.
           
Confirme a presença de representantes de sua entidade pelo e-mail: smdhbsb@gmail.com
Outras informações, por meio dos telefones:
(61) 3273-4585 – Fernanda Caroline - SMDH
(65)3023-2959 ou (65) 996642331- Inácio- Forum de Direitos Humanos e da Terra - Mato Grosso
Abraços e contamos com a presença de todas e todos!

Seguimos em luta!
*