Até os ventos contrários nos conduzirão ao porto seguro
Leonardo Boff
O
povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na
luta e na amarra”, quer dizer, superando dificuldades e com muito
trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de
fazer as mudanças necessárias, no meio da atua crise, que nos coloquem
no reto caminho da justiça para todos.
O
povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a
Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos.
Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com
consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo
começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo nem pelos
sucessivos golpes sofridos como o de 1964 civil-militar e o de 2016
parlamentar-juridico- mediático.
Apesar
da pobreza, da marginalização e da perversa desigualdade social, os
pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar
esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e
valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a
divisão elites-povo e seremos uma nação não mais cindida mas coesa.
O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem
a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o
segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar
seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de
que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor. A esperança nos remete
ao princípio-esperança de Ernst Bloch que é mais que uma virtude;
é uma pulsão vital que sempre nos faz suscitar novos sonhos, utopias e
projetos de um mundo melhor.
Existe,
no momento atual, marcado por um quase naufrágio do pais, certo medo. O
oposto ao medo, porém, não é a coragem. É a fé de que as coisas podem
ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que
não é apenas bom no carnaval e na música. Mas pode ser bom na
agricultura, na arquitetura, nas artes e na sua inesgotável alegria de
viver.
Uma
das características da cultura brasileira é a jovialidade e o sentido
de humor, que ajudam aliviar as contradições sociais. Essa alegria
jovial nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer outra
coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso,
manter o humor que o relativiza e o torna suportável. O efeito é a
leveza e a vivacidade que tantos admiram em nós.
Está
havendo um casamento que nunca antes fora feito no Brasil: entre o
saber acadêmico e o saber popular. O saber popular é “um saber de
experiências feito”, que nasce do sofrimento e dos mil jeitos de
sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do
estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem,
teremos reinventado um outro Brasil. E seremos todos mais sábios.
O
cuidado pertence à essência do humano e de toda a vida. Sem o cuidado
adoecemos e morremos.. Com cuidado, tudo é protegido e dura
muito mais. O desafio hoje é entender a política como cuidado do
Brasil, de sua gente, especialmente dos mais vulneráveis, como índios e
negros, cudado da natureza, da educação, da saúde, da justiça para
todos. Esse cuidado é a prova de que amamos o nosso pais e queremos
todos incluídos.
Uma
das marcas do povo brasileiro bem analisada pelo antropólogo Roberto da
Matta, é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar,
juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, em geral, ele não é
intolerante nem dogmático. Ele gosta de acolher bem os estrangeiros.
Ora, esses valores são fundamentais para uma globalização de rosto
humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo.
Infelizmente nos últimos anos surgiu, contra a nossa tradição, uma onda
de ódio, discriminação, fanatismo, homofobia e desprezo pelos pobres (o
lado sombrio da cordialidade, segundo Buarque de Holanda) que nos
mostram que somos, como todos os humanos, sapiens e demens e agora mais demens.. Mas isso, seguramente, passará e predominará a convivência mais tolerante e apreciadora das diferenças.
O
Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para
sermos também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas
solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de
60 povos diferentes que para cá vieram. Nosso desafio é mostrar que o
Brasil pode ser, de fato, uma pequena antecipação simbólica de que tudo é
resgatável: a humanidade unida, una e diversa, sentados à mesa numa
fraterna comensalidade, desfrutando dos bons frutos de nossa
boníssima, grande, genersosa Mãe Terra , nossa Casa Comum.
É um sonho? Sim, aquele necessário e bom.
Leonardo Boff escreveu Brasil: concluir a refundação ou porolongar a dependência? Vozes 2018.
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