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Com quantos absurdos e desvarios se constrói a ditadura do judiciário? Com quantas exceções se levanta um estado de exceção?
Hoje eu me pus a pensar no que era pior: ser uma autora com bloqueio criativo por falta de temáticas ou por excesso de inspiração. O meu caso, certamente, parece ser o segundo.
Assim como acontecerá com todos os autores que se propuserem a pensar no poder judiciário no Brasil contemporâneo, ocorre algo como a obstrução arterial por excesso de absurdos. Reduz-se o aporte de fluxos e gera-se a sensação de absoluto mal estar e impotência. De nossa parte, no exercício da escrita, sentimos não caber mais tantos gritos e desconfortos, ficando nossos dias cada vez mais minguados e nossas forças exíguas. Há muito para falar e pouco tempo para pensar e processar, o que nos coloca em travamento.
Essa sensação é claustrofóbica, porque gera o sentimento de que nada do que pudermos fazer ou dizer será suficiente. O mar de lama que paira – e o jogo de palavras não é ocasional – estica os dias em anos e arrasta o último mês a reboque, como se estivéssemos em sala de tortura e perdêssemos a noção do tempo por prolongado sofrimento.
São tantos os mortos que falam:
– os corpos enlameados em Brumadinho, boiando indiferentes à fome do dinheiro;
– o rio Paraopeba, aos poucos, morrendo, prestes a levar com ele o rio São Francisco e seus cadáveres, humanos e não humanos;
– o corpo morto de Vavá, a deriva do poder da Lava Jato;[1]
– os corpos dos idosos e necessitados na proposta de reforma previdenciária, entorpecidos, desqualificados;
– a criminosa legalização da pena de morte, com a lei “anticrime” de Sérgio Moro, aprofundando as diferenças, já tão gritantes, e empoderando a violência policial, já tão empoderada, pela institucionalização formal da matança, já tão institucionalizada;
– os corpos controlados das mulheres na PL 261-2019;
– os corpos de crianças indígenas, irregularmente adotadas, como da kamayurá no Xingu, retirada da aldeia em polêmico caso envolvendo a ministra Damares Alves,[2]silenciadas, emudecidas, catequizadas e simbolicamente violentadas;
– o corpo escoltado de Jean Wyllys, exilado, forçosamente banido, ameaçado, inclusive por aqueles que deveriam ser os primeiros a protegê-lo, como a desembargadora Marília Castro Neves, que sugeriu em um grupo de magistrados o seu fuzilamento profilático, embora não “valesse a bala e nem o pano”;
– o corpo morto de Sabrina Bittencourt e de tantas outras mulheres a que ela deu voz e que morrem, dia a dia, em cada lembrança dos abusos e dos perigos do patriarcado penetrado nos discursos, inclusive e em especial os religiosos;
– a lógica manicomial dos corpos diferentes, na convulsoterapia e no internamento dos menores, na nota técnica 11/2019 do Ministério da Saúde;
– o cadáver putrefato mil vezes morto e mil vezes lembrado de Marielle Franco, quase há um ano sem resolução.
Supomos que todos esses mortos não sejam ocasionais, fazendo-se necessária a análise confluente das institucionalidades em jogo.
Ao invés do uni-duni-tê dentre tantos finados, optamos por falar sobre o presente que eles nos anunciam: o enfraquecimento das leis e da Constituição, em contrapartida ao fortalecimento das vozes dos juízes e das outras narrativas que nestas se escondem. Os fantoches “heróicos” como os de Sérgio Moro anunciam emblemáticos esses novos poderes, em que se dá a autorização para a polícia matar por medo escusável, surpresa ou “violenta emoção” e dá-se aos juízes o poder de ditar a verdade dos fatos, ao sabor dos seus temperos e desejos. Acima da lei, da constituição e – ousamos dizer – do próprio poder político institucional, erguem-se os juízes, pintados como poços de “virtude” e “sabedoria”. Os prejuízos são incalculáveis…
Nesses momentos, renhida e renitente me estoura no peito a poeta, que pede escusas, por invocar Torquato Neto, em literato cantabile, pois toda palavra envolve o precipício e os literatos foram todos para o hospício, quem sabe agora retidos por eletrochoque.
As autoridades exalam juízes. Suas palavras não são ocasionais, mas remitentes; elas se fazem falar nas decisões vazias, nas entrelinhas, nas manifestações de poder e nos grotescos cenários agora pintados, que, como câncer, alastram o encarceramento em massa, fortalecem o crime organizado das milícias, insuflam o racismo institucional, aprofundam a segregação e revigoram a lógica do encarceramento, que exclui os corpos e bane a vida, separada e excluída de si mesma, entregue à morte, para falar com Agamben,[3] já que agora são os mortos que me sopram as narinas.
Esses novos formatos cada vez mais rasgam as leis e destroçam os dias, fazem-se presentes em cada espaço miúdo, até que se preencham e naturalizem os grandes recintos. Mas escolhemos resistir e reinaugurar a existência pela fala morta dos não existentes, pois, para falar novamente com Torquato Neto, toda palavra guarda uma cilada.
Com quantos absurdos e desvarios se constrói a ditadura do judiciário? Com quantas exceções se levanta um estado de exceção? Com quantos destroços se esfacela a Constituição, fazendo erguer a ditadura togada e truncada no lugar de uma democracia, que, embora deficitária, sujeita-se constantemente às perfectibilidades?
Um moroso silêncio paira sobre essas aberrações. Talvez, apenas talvez, os limites já tenham sido ultrapassados e já vivamos nos novos tempos: o da república togada. Os limiares se romperam e, assim como a lama, eles escorrem, deixando para trás os seus lastros e, para falar novamente com eles, os mortos.
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