intercept
https://theintercept.com/2019/02/05/imprensa-suicidio-de-sabrina-bittencourt/

https://theintercept.com/2019/02/05/imprensa-suicidio-de-sabrina-bittencourt/

A caçada ao corpo de Sabrina Bittencourt
Sabrina Bittencourt durante transmissão ao vivo no Facebook em 17 de dezembro de 2018. Foto: Reprodução/Facebook
“Uma guia que trabalha
na Casa Dom Inácio de Loyola marcou vários dos matadores profissionais
de João de Deus, pedindo para me localizarem”, escreveu Sabrina
Bittencourt. A mensagem de WhatsApp chegou às 14h50 de sábado. Menos de
seis horas depois, a mulher que ajudou a denunciar os estupros cometidos
por Prem Baba e João de Deus publicou sua carta de suicídio.
“Sou imparável até o fim dos meus dias”,
ela havia postado dois dias antes. A notícia de seu suicídio foi
aterradora. E a cobertura da imprensa sobre o caso, revoltante. No
domingo, seu suicídio foi anunciado por diversos veículos da imprensa.
Na manhã seguinte, a história já era outra. A incerteza sobre o local
exato da morte, a falta de provas do suicídio e a ausência de detalhes
sobre seu velório fizeram a imprensa dar um passo atrás: teria a
ativista realmente tirado a própria vida? Começava ali a caçada pelo corpo de Sabrina Bittencourt.


À
esquerda/Acima: Título de notícia da Revista Marie Claire publicada na
manhã de domingo dá como certo o suicídio de Sabrina. À direita/Abaixo:
Alteração feita na segunda-feira coloca o suicídio em dúvida.Fotos: Prints do site da Revista Marie Claire
Uma notícia do jornal O Globo,
que destacava as “informações desencontradas” sobre a morte, apresentou
a hipótese de que Sabrina teria forjado seu suicídio e assumido uma
nova identidade. Já textos da revista Carta Capital e do Hypeness
citavam a opinião de pessoas próximas a ela sobre a possibilidade de
uma “morte simbólica”, inventada para que as ameaças contra ela e sua
família cessassem.
Como eu, todas as jornalistas que mantinham contato com ela – que costumava nos enviar mensagens diariamente no WhatsApp por uma lista de transmissão – sabiam o quanto ela temia por sua vida. Ainda assim, de alguma forma, a hipótese de ela ter mentido sobre a própria morte parece soar muito mais plausível do que a possibilidade de essa mulher, alvo de ameaças há meses e que havia tocado no assunto naquele mesmo dia, ter sido assassinada.
A notícia da morte de Sabrina veio cerca de três semanas depois de
conversarmos por uma chamada de vídeo. Nunca tinha visto ou ouvido uma
pessoa tão exausta. Isolada em algum canto do mundo, ela contava,
abatida, as denúncias que vinha recebendo; sua dedicação em tempo
integral ao acolhimento das vítimas; as ameaças incessantes contra ela e
sua família; e a mudança constante para evitar ser localizada por quem a
ameaçava.
Esse jornalismo que lava as mãos de suas consequências, cegado pela busca utópica de uma (inexistente) objetividade inabalável, não me interessa. É irresponsável e umbiguista. Seus defensores podem dizer: “É nosso trabalho ir atrás dos fatos, sejam eles quais forem, e reportá-los ao público”. Eu rebato: mesmo quando o único impacto possível de seu trabalho for facilitar o assassinato de uma mulher?
Trabalhar para provar que essa mulher forjou sua morte para poder continuar viva é colocar sua cabeça de volta numa guilhotina.Nada poderia ser mais irresponsável. Se a morte for real, a falta de respeito da imprensa pela dor dessa família é, para dizer o mínimo, insensível. Se não for, trabalhar para provar que essa mulher forjou sua morte para poder continuar viva é colocar sua cabeça de volta numa guilhotina com a lâmina pronta para despencar.
Como eu, todas as jornalistas que mantinham contato com ela – que costumava nos enviar mensagens diariamente no WhatsApp por uma lista de transmissão – sabiam o quanto ela temia por sua vida. Ainda assim, de alguma forma, a hipótese de ela ter mentido sobre a própria morte parece soar muito mais plausível do que a possibilidade de essa mulher, alvo de ameaças há meses e que havia tocado no assunto naquele mesmo dia, ter sido assassinada.

Print de mensagens enviadas por Sabrina Bittencourt a jornalistas horas antes de publicar uma carta de suicídio no Facebook.
Imagem: Reprodução/WhatsApp
Seu suicídio não deixa de ser uma espécie de assassinato. Os responsáveis são aqueles que ameaçavam matá-la.Nessas condições, seu suicídio não deixa de ser uma espécie de assassinato. Os responsáveis são aqueles que ameaçavam matá-la. Conseguiram. Mas, ao embarcar na hipótese de uma morte forjada sem que isso represente qualquer benefício para a sociedade, a imprensa constrói não apenas um crime sem autores, mas também, como me disse um amigo, um crime sem vítimas.
Em vídeo de 13 de dezembro de 2018, Sabrina desmente
notícia de que teria cometido suicídio na época e diz que está “no seu
limite” e não irá tolerar “jornalista urubu”.
Qual é o propósito? Qual é a finalidade de ligar para consulados,
embaixadas e importunar o único familiar de Sabrina a ter se pronunciado
sobre o caso – um menino de 16 anos – sabendo que arriscar a vida de
Sabrina (se ela ainda tiver uma) é o único resultado possível da busca
por seu corpo?Esse jornalismo que lava as mãos de suas consequências, cegado pela busca utópica de uma (inexistente) objetividade inabalável, não me interessa. É irresponsável e umbiguista. Seus defensores podem dizer: “É nosso trabalho ir atrás dos fatos, sejam eles quais forem, e reportá-los ao público”. Eu rebato: mesmo quando o único impacto possível de seu trabalho for facilitar o assassinato de uma mulher?
Nenhum comentário:
Postar um comentário