domingo, 30 de dezembro de 2018

Sem igualdade não há liberdade

le monde
 https://diplomatique.org.br/sem-igualdade-nao-ha-liberdade/

OS DIREITOS HUMANOS, UM BLOCO INDIVISÍVEL

Sem igualdade não há liberdade

por Kumi Naidoo
novembro 30, 2018
Imagem por Cau Gomez


Ao adotarem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, 58 países entraram, pela primeira vez, em acordo sobre os princípios que permitem a cada um viver em liberdade, igualdade e dignidade. Muito progresso se fez desde então, mas a explosão das desigualdades ameaça tanto as liberdades políticas como os direitos econômicos e sociais
Ler e reler a Declaração Universal dos Direitos Humanos, setenta anos após sua adoção pelas Nações Unidas em Paris, é sempre um exercício útil, pois o texto propõe, ainda hoje, a visão mais progressista daquilo que nosso mundo poderia ser. No momento de comemorar seu aniversário, seria lógico ressaltar os inegáveis progressos realizados em conjunto nos últimos anos a fim de transformar essa visão em realidade. Mas a honestidade nos obriga a dizer que a intolerância aumenta e que as desigualdades extremas se disseminam, enquanto os Estados parecem incapazes de tomar coletivamente as medidas necessárias para enfrentar as ameaças globais. Encontramo-nos exatamente na situação que os países signatários da Declaração prometeram evitar. Por isso, não nos contentemos com uma simples comemoração e aproveitemos a ocasião histórica para fazer um balanço e tentar concretizar os direitos humanos para o maior número.
O artigo 2 da Declaração Universal reza que os direitos por ela proclamados pertencem a cada um de nós, sejamos ricos ou pobres, não importando nosso sexo ou a cor de nossa pele, o país onde vivemos, a língua que falamos, aquilo que pensamos e aquilo em que acreditamos. Longe de se traduzir em fatos, esse universalismo, que subentende todos os direitos da pessoa humana, sofre hoje ataques violentos. A Anistia Internacional, à semelhança de outras organizações, não cessa de sublinhar que os discursos promotores da estigmatização, do ódio e do medo se desenvolveram de maneira inédita no mundo a partir dos anos 1930.
A recente vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial brasileira, apesar de um programa francamente hostil aos direitos fundamentais, ilustra muito bem os desafios que temos pela frente. Se conseguir pôr em prática as promessas de uma campanha desumanizadora, Bolsonaro, chegando ao poder, ameaçará as populações indígenas, as comunidades rurais tradicionais – chamadas “quilombos” –, as lésbicas, os gays, os bissexuais, os transgêneros e intersexuais (LGBTI), a juventude negra, as mulheres, os militantes e as organizações da sociedade civil.
É crucial nos perguntarmos por que estamos exatamente na situação que a Declaração pretendia evitar – uma situação na qual os direitos humanos são atacados e repelidos porque protegeriam alguns, e não todos.

Se as múltiplas razões que conduziram a esse impasse de fato são complexas, uma coisa parece certa: o que está em causa é, em parte, nossa incapacidade de considerar os direitos humanos como um conjunto indivisível de direitos intrinsecamente associados e aplicáveis a todos. A Declaração Universal não separava os direitos cívicos dos direitos culturais, econômicos, políticos e sociais. Não distinguia a necessidade de concretizar o direito à alimentação da exigência de garantir a liberdade de expressão. Já reconhecia o que hoje admitimos naturalmente: as duas são estreitamente ligadas.
No curso das décadas que se seguiram à adoção do documento, os Estados seccionaram os dois tipos de direito, instaurando o desequilíbrio em sua percepção e proteção.1 Mas as organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, devem também assumir sua parte de culpa nessa distorção. Nossa entidade é conhecida sobretudo pela defesa da liberdade de consciência e por seu apoio aos prisioneiros políticos, isto é, às pessoas presas em razão do que são e daquilo em que acreditam. Lutamos também contra a tortura, pela abolição da pena de morte e em favor da liberdade de expressão. Só começamos a estudar e a defender ativamente os direitos econômicos, sociais e culturais nos anos 2000. Desde então, promovemos campanhas conjuntas contra as violações do direito à moradia decente, à saúde e à educação. Sabemos que ainda há muito a fazer.
A crise econômica mundial, cujas consequências se fazem sentir em profundidade, ilustra perfeitamente a urgência de aceitar esses desafios do ponto de vista dos direitos humanos. Os acontecimentos em diversos países europeus puseram a nu a fragilidade, talvez mesmo a inexistência prática, de uma proteção social de base. Pior ainda: nos países mais afetados, as legislações econômicas e sociais continuam na maioria dos casos insuficientes. Isso significa que os cidadãos não podem fazer valer seus direitos na justiça, mesmo quando estes são notoriamente violados.
Em vários países, os governos preferiram responder à crise econômica com medidas de austeridade de elevado custo humano, entravando o acesso aos bens de primeira necessidade, à saúde, à moradia e à alimentação. A Espanha fornece um bom exemplo: após a crise econômica, o governo reduziu as despesas públicas, inclusive na área da saúde. Os tratamentos de qualidade estão agora inacessíveis e mais caros, em detrimento sobretudo dos pobres, mas também das pessoas afetadas por doenças crônicas e deficiências físicas ou mentais. Um homem interrogado sobre esse assunto declarou que deverá agora escolher entre comida e medicamentos: “Sofro muito e preciso tomar meus remédios. Ou me cuido ou me mato [de tal forma a dor é insuportável]… Portanto, se for necessário me privar de comida, farei isso, do contrário não poderei comprar os medicamentos”.2 A maneira como os governos reagiram aos movimentos antiausteridade é outra prova do caráter indissociável dos direitos políticos, econômicos, sociais e culturais. No Chade, as medidas restritivas adotadas pelas autoridades mergulharam ainda mais a população na pobreza. Barraram o acesso aos cuidados de saúde elementares e colocaram a educação fora do alcance da maioria. Muitos chadianos se manifestaram e fizeram greves. Em vez de ouvir suas reivindicações, o governo decidiu calar os contestadores. Optou pela repressão brutal, prendendo os militantes e atentando flagrantemente contra sua liberdade de reunião.
A crise mundial pode parecer distante, mas ainda observamos suas ramificações sociais e econômicas. As desigualdades, a corrupção, o desemprego e a estagnação econômica, que castigam as populações, criam terreno propício à emergência de dirigentes prontos a semear a divisão e o ódio, com as consequências explosivas que todos conhecem.
O presidente francês Emmanuel Macron se arvora em paladino da luta contra esses discursos, que ameaçam enraizar-se. “A Europa pende quase em toda parte para os extremos e, de novo, cede ao nacionalismo”, declarou ele pela televisão em 16 de outubro de 2018. “Precisamos, nestes tempos conturbados, de todas as energias da nação […]. Confio em vocês, confio em nós.” Contudo, o povo francês está inquieto com as políticas de Macron nas áreas de direito trabalhista, aposentadoria e acesso à universidade. A Anistia Internacional pôs em evidência também as restrições impostas ao direito de manifestação na França, sob a alegação de estado de emergência. Em 2018, as mobilizações em favor de leis respeitosas dos direitos econômicos, sociais e culturais suscitam, no máximo, a indiferença do presidente francês e, no mínimo, uma violenta repressão policial.
Esse esquema está por toda parte no mundo. Impõe-se que os governos se reconheçam incapazes de fazer respeitar todos os direitos, de todos os tipos. Para esse fim, não basta reclamar a liberdade de expressão e de manifestação; devemos examinar igualmente os motivos da contestação. Tomemos o exemplo de Jamal Khashoggi, o jornalista saudita agora conhecido no mundo inteiro por ter sido brutalmente assassinado, em outubro último, no consulado da Arábia Saudita em Istambul. Como inúmeros defensores dos direitos humanos em seu país, ele estava na mira de Riad por ter ousado exercer sua liberdade de expressão. Em um último artigo, publicado no Washington Post, escreveu que seus compatriotas não podem tratar abertamente das questões relativas à vida cotidiana. “Padecemos de pobreza, incúria política e má educação”, disse ele. “A criação de um fórum internacional, independente dos governos nacionalistas que semeiam o ódio, permitiria aos cidadãos comuns do mundo árabe encontrar soluções para os problemas estruturais de sua sociedade.”3 Khashoggi havia compreendido perfeitamente por que os direitos humanos formam um todo. A liberdade de expressão é essencial por nos permitir reivindicar os outros direitos; mas não basta. Por isso, o povo egípcio entoava “Pão, liberdade, justiça social!” durante a Primavera Árabe de 2011. O que nem sempre conseguimos entender, os manifestantes da Praça Tahrir, no Cairo, já entendiam dolorosamente há sete anos: em matéria de direitos humanos, é tudo ou nada. Ou exercemos todos ou não exercemos nenhum.
Se quisermos que, verdadeiramente, os direitos humanos se tornem uma realidade para todos, impõem-se medidas de emergência. Como movimento de defesa dos direitos humanos, precisamos não apenas salvaguardar, como sempre fizemos, a liberdade de expressão e de manifestação, mas também estabelecer um vínculo com as decisões econômicas e financeiras tomadas por nossos dirigentes. Temos de trabalhar com organizações semelhantes à nossa para exigir, dos responsáveis políticos, que prestem contas da utilização do dinheiro público no combate à corrupção, às transações ilegais de capitais e às falhas na fiscalização internacional. Devemos nos empenhar na busca de soluções para os problemas estruturais de nossas sociedades.
Esse é um projeto de grande envergadura, que só se concretizará se unirmos nossas forças para a criação de coalizões com nossos parceiros de outros movimentos: militantes de direitos humanos, advogados, sindicalistas, representantes de movimentos sociais, economistas e líderes religiosos. Com a ajuda de nossos aliados em todas as regiões do mundo, seremos os porta-vozes daqueles que precisam ser ouvidos. Somente a solidariedade nos permitirá edificar um mundo sem desigualdades e injustiças, um mundo à altura dos compromissos assumidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

*Kumi Naidoo é secretário-geral da Anistia Internacional.



1 Ver Jean Bricmont, “Une gauche endormie par l’hypocrisie impériale” [Uma esquerda adormecida pela hipocrisia imperial], Le Monde Diplomatique, ago. 2006.
2 “Wrong prescription: the impact of austerity measures on the right to health in Spain” [Receita errada: o impacto das medidas de austeridade no direito à saúde na Espanha], Anistia Internacional, Londres, 24 abr. 2018.
3 Jamal Khashoggi, “What the Arab world needs most is free expression” [É da livre expressão que o mundo árabe mais precisa], The Washington Post, 17 out. 2018.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

"O problema principal do mundo hoje é a imigração". Entrevista com Mark Lilla

ihu
http://www.ihu.unisinos.br/585694-o-problema-principal-do-mundo-hoje-e-a-imigracao

"O problema principal do mundo hoje é a imigração". Entrevista com Mark Lilla




O historiador das ideias norte-americano Mark Lilla despertou grande controvérsia em seu país com o artigo The End of Identity Liberalism ("O fim do progressismo identitário", em livre tradução), publicado no jornal The New York Times em 2016, quando criticou o foco da esquerda americana na política de identidade. Lilla argumentou que a melhor forma de o Partido Democrata defender as minorias é ganhar as eleições, e para isso o discurso fragmentado para diferentes públicos deveria dar lugar a uma narrativa unificada que valorizasse um espírito mais amplo de cidadania e solidariedade. O argumento foi ampliado no livro O Progressista de Ontem e o do Amanhã (Companhia das Letras). O professor da Universidade Columbia, em Nova York, esteve em Porto Alegre para realizar conferência no Fronteiras do Pensamento e recebeu ZH para a seguinte entrevista.
A entrevista é de Fábio Prikladnicki, publicada por Zero Hora, 15-12-2018.

Eis a entrevista.

O senhor argumenta que o discurso focado na política de identidade fez o Partido Democrata perder terreno nos EUA. Esse fenômeno ecoa um impasse do campo progressista em outras partes do mundo?
Estou descobrindo que sim. Escrevi o livro tendo em mente apenas o caso dos EUA, sem pensar muito se havia coisas similares em outros países. No momento em que o livro saiu, editores ao redor do mundo queriam publicá-lo porque achavam que falava de sua situação. Isso inclui a maioria dos países europeus, Brasil, México, China, Japão, Coreia do Sul. Tem sido extraordinário. O único continente em que não foi publicado é a África. Escrevi o artigo original para o New York Times em dois dias e descobri que havia ecos em todo o mundo e que a crise na esquerda americana não é um caso isolado. Isso me fez pensar nas pré-condições sociológicas mais profundas disso, onde estamos no capitalismo contemporâneo, a sociedade da informação. Todas essas coisas podem ter contribuído para isso. Tem sido educativo para mim.
A política de identidade poderia ser entendida como um bode expiatório para os conservadores canalizarem a frustração da população que no fundo é com o próprio capitalismo e suas crises?
Há certamente um elemento disso. Uma das coisas mais difíceis com que precisei lidar no livro é que a mídia de direita nos EUA instrumentalizou a política de identidade. Eles pegam casos particulares, que são reais, e os exageram, desenvolvendo uma narrativa sobre como são as universidades e por aí vai. Isso incita e enraivece o tipo de pessoas que votam em Trump e em Bolsonaro. O outro elemento é que no livro eu diferencio, mas não o suficiente, entre dois tipos de política de identidade: uma é política e a outra eu diria que é cultural. A política de identidade política tem a ver com a obtenção e a defesa dos direitos de grupos minoritários, sejam afro-americanos, mexicanos americanos, mulheres e minorias de gênero. Essa é uma batalha legal e política. Mas isso mudou com o desenvolvimento de uma segunda onda de política de identidade, focada em mudar a cultura, com demandas individuais por reconhecimento. Aqui, não é tanto uma classe de pessoas com uma reivindicação política, mas é sobre mim e o que me torna especial e por que preciso ser respeitado e compreendido como pessoa. Quanto mais os jovens ficam absorvidos por suas identidades pessoais, especialmente em torno de gênero, menos engajados ficam com a batalha política mais ampla em que estou envolvido e preocupado em relação ao liberalismo e à esquerda nos EUA.
Qual é o papel das universidades nesse cenário, uma vez que lá floresceram muitas das teorias que embasam as políticas de identidade?
O que aprendi é que a história americana é também a história de outros lugares. Tem a ver com o colapso das esperanças revolucionárias da esquerda no mundo nos anos 1960 e início dos anos 1970. Desenvolveu-se uma esquerda radical que descobriu que não tinha as pessoas por trás, porque as pessoas se tornaram burguesas, porque eram tradicionais em suas vidas familiares. Então, a esquerda rompeu com sua base tradicional e radicalizou-se. E descobriu que não tinha as pessoas consigo. Daí, abandou as pessoas para educar as elites. A esquerda retirou-se para as universidades e começou a se engajar na educação ou reeducação cultural. E o que fez não foi ajudar a classe trabalhadora, mas transformar a classe burguesa. As pessoas na classe burguesa foram afetadas por essas coisas, pensando de forma diferente sobre si mesmas e sobre a sociedade e suas identidades. É parte de uma história mais ampla sobre o que aconteceu com a esquerda nas últimas décadas.
Além do foco na política de identidade, quais foram os outros erros dos democratas nos EUA?
Procuro deixar claro no livro que o problema mais profundo com a política de identidade nos EUA não é que as pessoas no interior do país rejeitaram isso. É que o foco na identidade distraiu os democratas, liberais e a esquerda da tarefa de desenvolver uma visão de país, seus princípios, o que compartilhamos e o que nosso futuro em comum poderia ser. Estou interessado no que não aconteceu por causa da política de identidade. E muitas coisas não aconteceram. Não houve uma conversa sobre o que significa ser um cidadão americano, o que devemos ao outro, nenhuma palavra sobre dever. Os democratas defendem muitas coisas, mas não sabem como falar sobre quais são os princípios mais amplos que determinam por que eles defendem essas coisas. Acho que tem a ver com solidariedade, dignidade, todo tipo de coisa, mas eles nem pensam mais nesses termos. Não são apenas pequenos erros aqui e ali. Tem a ver com um bloqueio psicológico sobre como se dirigir ao país como um todo em termos inspiradores.
Questionaram o fato de o senhor ser um homem branco falando sobre minorias?
Eu não estava falando da condição de negros, mulheres, gays ou algo assim. Estava falando do papel que essas questões exercem em nossa política. Mas o fato de eu abordar algumas dessas questões foi chocante e perturbador para as pessoas. O livro foi uma experiência deprimente e motivadora. A parte deprimente é que o problema é muito pior do que eu havia pensado. As pessoas envolvidas nesse tipo de trabalho, as fanáticas, não podem ser alcançadas, você não consegue se envolver com elas. A boa notícia é que nas últimas eleições de meio de mandato (nos EUA) tivemos candidatos de todo tipo de origem. Muitas mulheres negras, candidatos gays. E nenhum deles falou de suas identidades. Falaram sobre Donald Trump, Donald Trump, Donald Trump. E assuntos locais, escola, educação, estradas. Não tenho perfil no Twitter, mas vi muita gente dizendo: "Viram? Lilla estava errado porque agora há um grupo diversificado de pessoas nas eleições!". Digo que isso justamente prova o meu ponto de vista. Quero ver um grupo muito diversificado de pessoas concorrendo nas eleições, mas tentando desenvolver uma mensagem em comum.
No Brasil, muito do debate nas últimas eleições girou em torno de valores tradicionais, como família, casamento, religião. Assuntos urgentes do país, como melhorias efetivas na educação e emprego, parecem ter ficado em segundo plano. O senhor acredita que isso reflete uma tendência mundial?
O que você está me dizendo é muito interessante porque acho que é parte do futuro. Ou pelo menos posso dizer que estou começando a ver isso cada vez mais. Se você olhar para a Polônia, para a Hungria, essas questões sociais, como as chamamos nos EUA, tornaram-se primordiais na política. Na New York Review of Books, está saindo um artigo meu sobre a nova direita jovem francesa. Em sua luta contra o casamento gay, eles mobilizaram muitas pessoas e também jovens intelectuais. Marion Le Pen (sobrinha de Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional) está falando desses assuntos. Esse será o futuro na França também.
No que essa onda de intolerância pode resultar para a geopolítica mundial?
É ruim para a geopolítica mundial, mas não acho que a tolerância seja a questão. É que as pessoas que exploram esses temas tornam-se demagogas e antidemocráticas. Esse é o problema. De resto, as sociedades estão se tornando mais tolerantes. Todas as sociedades desenvolvidas, em comparação com 50 anos atrás, passaram por uma transformação incrível. O problema principal é a imigração. A imigração é um problema sério porque muito dela é ilegal. Parece-me que as democracias têm o direito de determinar a quantas pessoas é permitido ser cidadãs. Minha posição é que a esquerda tem de ser muito forte contra a imigração ilegal para tirar esse tema da direita. Sem esse tema, o que a direita tem hoje em termos de intolerância? O antissemitismo está mudando. Muito do antissemitismo na Europa é o antissemitismo muçulmano, não é branco. As pessoas, aos poucos, estão se acostumando ao fato de seus sobrinhos e sobrinhas serem gays. As mulheres estão no mercado de trabalho. Não temos muitos problemas com essas coisas. Mas a imigração alimenta essas questões.
Vejamos a crise da Síria ou da Venezuela. Como devemos lidar com isso?
Há muitos problemas diferentes. Há problemas de direitos humanos, em que as pessoas vão embora porque estão ameaçadas; tem a imigração econômica, porque as pessoas estão sem esperança; e tem a imigração por causa da internet. Se um imigrante africano consegue entrar na França, por exemplo, sua condição de vida pode ser terrível. Mas não é isso que ele diz para as pessoas em casa. Ele faz um vídeo mostrando a (avenida) Champs-Élysées, a Torre Eiffel e manda histórias de como é sua vida, mas na verdade não é a sua vida, porque seria humilhante dizer como é sua vida. E quanto mais essas histórias circulam, mais pessoas querem vir. Na África, os problemas econômicos, políticos e climáticos estão levando as pessoas para fora. Não há boas respostas fáceis para isso. Quando os chamados sírios foram para a Alemanha, havia jovens solteiros paquistaneses. Não eram só famílias sírias. Havia muitos homens solteiros. Havia tensões com homens solteiros que queriam essencialmente se dar melhor na vida, com o sonho de fazer dinheiro e voltar para casa. Eles moram sozinhos, não têm mulheres, sentem-se marginalizados, sentem-se desrespeitados. E alguns deles são muçulmanos e são atraídos para o islã radical. Se não, há crime e todo o resto. É uma situação muito insalubre. Acredito que não podemos fazer nada pelos outros países se não tivermos liberais e pessoas de esquerda no poder político. E não podemos chegar ao poder se formos suaves com a imigração. Então, precisamos ser duros com a imigração ilegal para então estarmos na posição de ver o que podemos fazer para ajudar esses países.
Há economistas que já projetam uma possível recessão econômica para 2020. Qual seria o impacto político?
Não sou economista, mas a questão interessante é: se houvesse uma nova crise econômica, como reagiríamos? Muito dos desenvolvimentos que estamos vendo na direita foram precipitados pela crise econômica (de 2008), em que muita gente perdeu dinheiro, emprego, seu padrão de vida caiu e não foi recuperado ainda. Então, podemos apenas especular. Se houvesse outra crise, me parece que não ajudaria a esquerda, mas continuaria a ajudar a direita populista. Porque levaria a mais ressentimento. Seria uma crise apenas para as pessoas sem dinheiro. Do jeito que as coisas estão estruturadas agora, o ressentimento contra os ricos, estranhamente, está sendo lucrativo para a direita, não para a esquerda. É a estranheza do nosso tempo.
Por que a esquerda não conseguiu instrumentalizar esse descontentamento mundial?
O motivo básico é que ninguém sabe o que fazer com a economia global. Ninguém tem uma resposta para todos os problemas que surgiram da conectividade e da globalização. Ninguém tem uma resposta para o fato de que você pode movimentar capital de uma parte do mundo para outra e que isso prejudica uma cidade ou região instantaneamente enquanto ajuda outra. Estamos simplesmente em uma nova situação. O Estado-nação, o conceito de soberania, todas essas coisas foram questionadas por causa dessa nova força que está lá fora. Então, esse é um tempo para os intelectuais começarem a pensar sobre isso e continuarem pensando. O problema é que na política você não pode dizer: "Dou um retorno para você depois de seis meses, quando eu descobrir". Você tem que ter uma resposta agora. Então a pergunta é: você explora isso ao dizer que tem uma poção mágica que pode resolver isso ou não? A direita está disposta a dizer que tem uma poção mágica. Mas, independentemente de quem está no poder, não se controla a economia mundial. O que acontece é que as pessoas desacreditam o sistema democrático como tal, não a direita ou a esquerda. A democracia está em declínio porque, não importa em quem as pessoas votem, elas continuam sendo chacoalhadas por essas forças. A vítima real não é a direita ou a esquerda, mas a democracia, porque há uma grande desconfiança do próprio sistema. E isso serve à direita. Não à direita responsável, conservadora, mas à direita alternativa, a extrema direita.
No livro A Mente Imprudente, o senhor aborda as ilusões políticas de grandes filósofos, alguns dos quais se deixaram seduzir por regimes autoritários, como Heidegger e Carl Schmitt. Por que essas grandes mentes às vezes se deixam levar?
No livro, eu chamo de "a sedução de Siracusa". Sabemos que, certa vez, Platão foi a Siracusa, na Sicília, porque um amigo que era aluno de Platão falou para Dionísio sobre a ideia da República ideal. Dionísio disse: "Que ele venha e me ensine". E Platão foi. E não foi ouvido. Então fez uma segunda viagem e foi preso. No final, percebeu que a distância entre o filósofo e a cidade é muito grande. Mas por que ele foi? Acho que há uma certa vontade de poder, como diz Nietzsche, um perigo dentro da filosofia. Você está fazendo o seu trabalho, tem algumas ideias sobre o futuro, e então alguém bate à porta: "Olá, sou Hitler. Prazer em conhecer". É uma tentação, é uma sedução para ir. Essa é uma sedução direta do líder. Mas há também a sedução de uma ideologia. Desde o século 19, convivemos com essas ideologias poderosas que são como ditadores. Em certos momentos, se você se entrega a essa causa, então essa causa é o mesmo que a sua filosofia, e então você se junta a ela.
A mente naufragada, outro de seus livros, aborda a figura do reacionário. Como você relaciona o livro ao que ocorre hoje no mundo?
Estamos vivendo um tempo de mudança, mas a questão é a velocidade da mudança. Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, 1925-2017) tem um ponto de vista muito bom sobre a era líquida. Nas sociedades tradicionais, as instituições mudam, mas mudam lentamente. Em um tempo de vida normal, as instituições que existiam quando você nasceu não eram muito diferentes. Mas há um momento em que a vida institucional passa a ser mais curta do que o tempo de vida humana. Durante a nossa vida, vemos mudar nossa ideia de sexualidade, de casamento, todas essas coisas. As sociedades criam ordem. Não somos feitos, enquanto criaturas, para uma sociedade que gera desordem. Quando os computadores começaram, havia um manual. Essa era a Bíblia. Mas agora não temos ideia do que se passa com as máquinas. Temos instabilidade na economia, instabilidade causada pela onipresença do mundo inteiro pela internet, enfim, é profundamente desestabilizador para o tipo de criatura que somos. É compreensível que algumas pessoas queiram dizer: "Devagar, devagar".
O senhor está escrevendo um livro intitulado Ignorance and Bliss (Ignorância e Benção, em livre tradução). Poderia falar sobre ele?
É sobre a ideia de que quanto menos sabemos, mais felizes somos. Um pensamento ocidental tradicional é baseado na ideia socrática de que conhecimento é igual a virtude e igual a felicidade. Mas a tradição mais popular diz que não. Diz que não devemos tentar aprender muito porque isso nos fará infelizes. Que quando éramos mais simples, vivíamos de um jeito mais feliz. Então, é um livro sobre todas as diferentes formas pelas quais esse pensamento está lá e nos faz questionar duas ideias: inocência e curiosidade.

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Janeiro, o mês do negro na América


Janeiro, o mês do negro na América


por Rafael Alexandre Lira


Batalha de San  Domingo
arte de January Suchodotski

1 de janeiro de 1804 deveria ser uma data lembrada por todos os cidadãos da América, quiçá de todos os continentes, especialmente pela população negra. Os haitianos sabem bem o significado deste dia histórico, e celebram com gosto o marco que ele traz para sua nação e para o mundo como um todo. Os europeus, especificamente os franceses, devem se lembram com certo desgosto tal dia, afinal uma derrota amarga não se esquece tão fácil.

O ápice da Revolução Haitiana teve seu marco no dia primeiro de janeiro do ano de mil oitocentos e quatro. Foi este o dia da conquista da independência, que veio por intermédio do povo negro escravizado, não pela mão do branco colonizador. Sim, fora através da união que fez a força do povo oprimido pela coroa francesa que a ilha de Santo Domingo se tornou a Primeira República Negra da América. A última batalha armada ocorreu no dia 18 de novembro do ano anterior, 1803, a Batalha de Vertières, sob a liderança do grande Jean Jacques Dessalines que com seu pequeno exército derrotou a poderosa legião de Napoleão Bonaparte.

A derrota dos franceses por aqueles "rebeldes escravizados" que se organizaram e conseguiram expulsá-los da rica ilha caribenha de Santo Domingo inflamou o coração dos negros que estavam em outras colônias distribuídas por toda a América. Rumores e informações verídicas do que havia ocorrido no Haiti começara a correr por todo o continente, influenciando assim pequenos movimentos e rebeliões até mesmo em solo brasileiro. Jean Jacques se tornou uma inspiração para todo o negro que almejava alcançar sua libertação. O historiador Clóvis Moura afirma que, em 1805, negros empregados nas tropas de artilharia do Rio de Janeiro foram presos por carregarem uma foto de Dessalines.

O primeiro dia do ano não tem um mero significado de recomeço para o povo haitiano, povo negro guerreiro e forte. Mais que isso, o dia 1 é o dia de comemorar a libertação, a liberdade, a vida. Outrora, tal povo não podia comer a sopa de abóbora que era um prato da iguaria francesa, hoje é o prato tradicional do 1 de janeiro, alimento este o qual haitianos no mundo todo comem e repartem com seus compatriotas nesta data inesquecível. Aqueles que tem condição fazem e doam àqueles que não tem, a fim de que todos celebrem juntos em memória dos seus ancestrais.

Na bandeira do Haiti a frase em francês "L'union fait la force" faz relembrar o segredo do que trouxe a vitória do povo negro sobre o branco opressor: a força da união! Sem esta a derrota era certa, o exército inimigo era mais numeroso e fortemente armado. Porém, a sede de liberdade e o desejo de ser por si e para si fez deste pequeno exército uma nação independente, única e inspiradora para todos os povos da terra.
O Haiti vive, 
vive o Haiti!

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REFERÊNCIA
LIRA, Rafael. Janeiro, o mês do negro na América. In Lume Mato Grosso, edição 27, p. 37, 2018.


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Feliz ano velho

le monde
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Feliz ano velho

por Juliana Sayuri e Alexandre Busko Valim
dezembro 6, 2018
Imagem por Desvio Coletivo

Discurso elogioso à ditadura militar, caça às bruxas nas universidades, censura à imprensa, violência e violações de direitos humanos: 2019 consolida a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência e desperta fantasmas antigos do autoritarismo no Brasil. Confira o Especial – Tendências Autoritárias no Tempo Presente
Jair Bolsonaro (PSL) assumirá a Presidência da República a partir de 1o de janeiro de 2019. Feliz ano velho: fantasmas antigos de um passado autoritário rondam o presidente eleito em outubro último, como o discurso elogioso à ditadura militar, a caça às bruxas nas universidades, a censura à imprensa, além de uma escalada de atos de violência e violações de direitos humanos no país.
Entretanto, conforme expressou o editor Silvio Caccia Bava nas páginas de novembro de Le Monde Diplomatique Brasil: “Pela visão autoritária e repressiva do governo eleito, que se propõe a destituir direitos por atacado no começo de seu governo, a enquadrar os movimentos sociais como terroristas e a tratar com violência a oposição, não faltarão motivos para que a oposição se articule”. Parte dessa resistência se dá no campo das palavras – e é esta a proposta deste dossiê especial que busca discutir tendências autoritárias que se desenrolam no presente, sobretudo a dois diletos temas do presidente eleito: direitos humanos e ditadura militar, segundo reportagem da BBC News Brasil que destacou estudo do sociólogo Leonardo Nascimento.
“Nós, historiadores, sentimos rapidamente no ar o que estava acontecendo. A democracia estava sendo corroída por dentro”, destaca a historiadora Beatriz Mamigonian, professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do movimento Historiadores pela Democracia. Em entrevista exclusiva, ela analisa os sombrios sinais do passado no presente. E destaca o papel dos profissionais da história nos debates atuais: “Observando nosso engajamento de 2016 para cá, penso que fizemos tudo o que era possível”.
Paralelos históricos são instrutivos, escreveu o sociólogo Gabriel Cohn neste Diplô, desde que não levados ao pé da letra. De fato, há momentos que trazem à tona semelhanças entre regimes autoritários do passado e do presente – “e autoritarismo”, diz Cohn, “é o que menos falta no modelo que se vai construindo, importa descobrir a forma particular que vai assumindo em cada caso”. Neste contexto, esta série, assinada por professores e pós-graduandos da UFSC, discute diferentes aspectos de tais tendências autoritárias atuais, partindo de chavões que marcaram a campanha presidencial.

“Tem que mudar tudo isso que tá aí, tá ok?”, por exemplo, deu o tom de desencantamento com a política, um dos elementos de incerteza do futuro que historicamente nutre o fascismo. Dialogando com Francisco Carlos Teixeira da Silva e Robert O. Paxton, a historiadora Natália Abreu Damasceno explora essa discussão. Segundo seu diagnóstico, os admiradores de Bolsonaro, autores de agressões e até assassinato em nome do presidente eleito, já passaram do “simples flerte fascistoide” e abraçaram o neofascismo.
“As instituições estão funcionando normalmente”, outra frase repetida ad infinitum nos últimos tempos, oculta a fragilidade da jovem democracia. Nesta arena se debruça o historiador Ricardo Duwe que, a partir das considerações de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores de How Democracies Die (2018), indica vestígios de uma trilha para institucionalização do autoritarismo no país.

“Vote consciente!” é o bordão bradado invariavelmente a cada pleito. A jornalista e historiadora Luciana Paula Bonetti Silva discute como o lema se esvazia diante de práticas neocoronelistas por empresários comprometidos em angariar votos para certos candidatos, inclusive intimidando e ameaçando demitir milhares de funcionários caso seu pangaré não vença a corrida eleitoral.
“As mulheres de direita são muito mais bonitas que as de esquerda”, paspalhice proferida por Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, sinaliza como as alas conservadoras definitivamente não compreenderam o fenômeno #EleNão, o feminismo e as discussões sobre o feminino. A designer e historiadora Isabela Fuchs aborda o papel das mulheres na política, em 1964 e em 2018.
Arquivo Nacional/Correio da manhã

“Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?” foi a assombrosa afirmação de Jair Bolsonaro após o trágico incêndio do Museu Nacional, no Rio, que se tornou símbolo do descaso pela memória, pela cultura e pela ciência no país. Especialista cultural, a historiadora Giane Maria de Souza analisa a trajetória de tentativas de políticas participativas de patrimônio cultural – e como muitas delas se tornaram cinzas.
“Na ditadura, tudo era melhor” é uma das falácias favoritas de apoiadores do novo governo. Melhor para quem, meus amigos? O professor Jean-Marie Farines, coordenador da Comissão Memória e Verdade da UFSC, revisita o passado autoritário da ditadura militar (não superado, segundo sua análise) no campus da universidade. Farines relata estudantes expulsos, professores presos, censura, desaparecimento, perseguições políticas, prisões arbitrárias e ilegais, torturas, “suicídios” – e questiona: como ter saudades?

*Por Juliana Sayuri e Alexandre Busko Valim, respectivamente jornalista, historiadora e autora de Diplô: Paris – Porto Alegre (2016) e Paris – Buenos Aires (2018), e historiador, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor de O Triunfo da Persuasão (2017), entre outros