segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Retireiros: lidando com gado em terras alagáveis

Maíra Ribeiro

O Vale do Araguaia tem muitos retireiros, mas um grupo tem se destacado por sua luta pelo território. No município de Luciara, uma pequena cidade de 2.224 habitantes, os retireiros do Araguaia vivem da criação coletiva de gado na beira do Araguaia, numa região chamada de Mato Verdinho. Cada retireiro tem sua história. Os primeiros chegaram há mais de um século e outros foram vindo. A família de Jossiney Evangelista, por exemplo, chegou há 60 anos.
Jossiney, além de retireiro, é vereador. Ele explica que nos retiros o gado é criado solto.  São utilizadas pastagens naturais do cerrado, por isso eles conhecem diversos tipos de capins, como o palha-fina, o canarana e o cebola. Jossiney conta que “se você plantar braquiária ou outro tipo de capim, acaba mexendo com o ecossistema. Lá tem muita biodiversidade, e a vantagem é que a gente vai tentando sempre seguir a natureza”.
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Reserva de Desenvolvimento Sustentável – o que é e como funciona?
Áreas de Preservação Permanente e o interesse da União: a Portaria da SPU
Quem tem medo da regularização fundiária? O latifúndio, a mentira e a violência
Cercas de arame e limitações políticas

Tocando gado em terras alagáveis. Foto: Jossiney Evangelista.
Os retireiros preservam a natureza sem esforço, pois esse é o seu modo de vida há gerações. Mas tudo em volta está mudando, e esse modo de vida está cada vez mais ameaçado. A grilagem de terra é uma prática cada vez mais comum, as cercas estão aumentando e os impactos no ambiente já são sentidos. A saída encontrada pelos retireiros é a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mato Verdinho. A intenção é que, com a RDS, a terra continue sendo usada coletivamente, impedindo o avanço da grilagem de terra e preservando as margens do rio Araguaia.

Até um tempo atrás se pensava que para conservar um ambiente natural era preciso tirar todas as pessoas que viviam nele. Esquecia-se que todo o território brasileiro era antes habitado pelos indígenas e que a natureza não era “intocada”, muito pelo contrário, a natureza sempre foi manejada. Percebeu-se então que, não só os índios, mas também muitas populações tradicionais desempenham um papel fundamental na proteção da natureza, bem como na manutenção da diversidade biológica.
A partir dessa percepção, se criou no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) a categoria Reserva de Desenvolvimento Sustentável, que tem como principal característica a integração de pessoas com a conservação do ambiente. É o reconhecimento do Estado de que as pessoas que viveram em determinado território desenvolveram, ao longo de gerações, uma série de conhecimentos para utilizar os recursos naturais sem esgotá-los, ou seja, de modo sustentável.
Os territórios das RDS são de domínio público, entendendo, portanto, que aquela população desempenha um papel importante para toda a nação, e por isso, tem por direito viver daquela terra. A população deve ser a responsável pela gestão da área, participando das atividades de manejo dos recursos naturais e fazendo a vigilância da reserva.
Jossiney conta que os retireiros do Araguaia entraram com o pedido da criação da RDS em 2003. De lá para cá, segundo ele, “a coisa ficou solta”. “A gente luta pela RDS para evitar a entrada do agronegócio que acaba com tudo. O modelo de agricultura que a gente vê hoje limpa a terra e tira tudo, matando muitos animais e plantas nativas”, afirma. A RDS Mato Verdinho, se criada, estaria localizada em terras alagáveis, que são Áreas de Preservação Permanente (APP).

As áreas alagáveis de um rio são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP), que de acordo com o Código Florestal (Lei nº12.651/12) são áreas naturais intocáveis, com rígidos limites de exploração. As APPs se destinam a conservar solos e, principalmente, as matas ciliares, protegendo os rios e reservatórios de assoreamentos, garantindo a preservação da vida aquática.
Somente órgãos ambientais podem abrir exceção à restrição e autorizar o uso de uma APP (art. 8º da Lei 12.651/12). A presença dos retireiros do Araguaia nestas áreas alagáveis seria, portanto, uma exceção, só permitida porque o Estado reconhece que seu modo de vida é sustentável. Em 26 de novembro de 2014 foi publicada a Portaria nº 294 da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), declarando as áreas de várzea do rio Araguaia como terras de interesse público da União.
O Procurador Wilson Rocha de Assis, da Procuradoria da República no Município de Barra do Garças, defende que esta é uma definição legítima. Ele afirma que “não se trata de desapropriação de terras particulares, de tomada de terra de ninguém, mas tão somente da formalização e da delimitação de uma área que por lei pertence à União e que vinha sendo ocupada de uma forma irregular, através da grilagem de terras, e invariavelmente expulsando populações que já estavam nessa região há décadas ou séculos”.
Com 1.627.686 hectares, a área indicada pela Portaria nº294 abrange os municípios mato-grossenses de Luciara, Canabrava do Norte, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Santa Terezinha e São Félix do Araguaia, e os municípios tocantinenses Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Pium. Apesar de ser apenas uma formalização já prevista na legislação, a iniciativa gerou polêmica e os latifundiários rapidamente se organizaram. Foram propagados rumores de que toda a área seria “Reserva Indígena” (sic), que os moradores seriam expulsos dali e que o preço das terras na região havia despencado.
No dia 30 de janeiro de 2015, a Portaria nº 294/2014 foi revogada, sendo substituída pela Portaria nº10/2015, que instituiu um Grupo de Trabalho para realizar um estudo técnico das áreas então desapropriadas a que fazia referência, a fim de analisar sua situação fundiária.
Com a regularização fundiária na região, os grileiros, aqueles que se apropriaram ilegalmente de grandes áreas de terras devolutas através de documentos falsos, teriam suas fazendas passíveis de desapropriação. A grilagem de terras geralmente é feita para a aquisição de financiamentos bancários dando a terra como garantia. Os produtores de soja estariam também interessados em adquirir quotas de Reserva Legal, já que o novo Código Florestal permite que sejam compradas reservas fora da propriedade na qual ocorre o desmatamento, desde que seja no mesmo bioma.
Com a expansão do agronegócio na região, as terras estão cada vez mais valorizadas. A regularização fundiária, prevista na Portaria nº294/2015, impediria a compra e venda das áreas de várzea do Araguaia, e este é o maior temor dos poderosos da região. Já os posseiros, pessoas que se apropriam de terra para morar e trabalhar, não seriam prejudicados. Do mesmo modo, estariam resguardados os direitos das comunidades tradicionais que ali vivem, como pescadores, os indígenas Kanela do Araguaia e os retireiros do Araguaia.
Para Jossiney, a população urbana de Luciara também se beneficiaria com a preservação da área, pois, segundo ele, a maioria dos moradores são ribeirinhos, vivem da pesca. “A criação da RDS é uma forma de conservar esse modo de vida. A fiscalização poderia diminuir ou até extinguir a prática da pesca predatória, porque a gente só respeita um local se tem alguém”. E completa, “Se tem uma casa de ‘fulano de tal’, eu não vou entrar. Mas se continuar do jeito que está, não tem sentido a gente ficar lá dentro. O retireiro sem a natureza preservada nem vale a pena”.

Não é novidade: a grilagem corre solta no Araguaia. O interesse pelas terras é tanto que a violência se torna uma prática comum na busca de mais lucro. Luciara viveu dias violentos em 2013, com diversos atentados cometidos contra os retireiros do Araguaia. Foram queimadas duas casas, tentaram atear fogo em um veículo, pneus foram queimados em frente a residências e foram proferidas ameaças de morte contra diversos membros da comunidade.
A casa de uma liderança religiosa que apoia a causa dos retireiros foi alvejada por tiros e um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foi ameaçado e impedido de entrar na cidade. A MT-100, único acesso terrestre à Luciara foi obstruída, máquinas foram colocadas na pista de pouso do aeroporto e até mesmo o acesso ao lago e beira de rio onde ficam os retireiros foi fechado.
Jossiney era o proprietário de uma das casas queimadas. Dois anos após o crime, ele ainda não superou os momentos de horror. “Até hoje eu lembro do pessoal querendo me linchar, foi muito violento. Eu sou representante do povo, sou vereador, mas muitas vezes eu deixo de ir em algum lugar para resguardar minha vida. Agora que eu estou voltando ao meu retiro normalmente, agora que eu estou conseguindo refazer a casa”, desabafa.
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Casa de Jossiney após incêndio criminoso. Foto: Jossiney Evangelista.
Para ele, a situação permanece tensa, ainda que as ameaças sejam veladas. “Não tem ameaças diretas, mas a posição de quem é contra continua sendo a mesma. O silencio é pior, porque você não sabe quem é a pessoa que vai fazer alguma coisa ruim”, afirma. Ele defende que a criação da RDS é a única saída para os retireiros. “Todo mundo tem o direito de ser contra ou a favor, mas qual é a proposta que eles tem? É só ser contra e pronto? Se houvesse outra alternativa para a gente manter nosso modo de vida, eu iria abraçar a causa”, afirma o vereador.
Em maio de 2014, oito integrantes da Associação dos Produtores Rurais (Aprorurais) de Luciara foram denunciados pelo Ministério Público Federal de Barra do Garças pelos crimes de associação criminosa, sequestro, cárcere privado e ameaça contra a comunidade tradicional retireiros do Araguaia, professores e estudantes da UFMT. A investigação, conduzida pela polícia e pelo Ministério Público Federal, comprovou que as manifestações contra a comunidade tradicional da região do rio Araguaia foram orquestrados, coordenados, financiados e estimulados pela associação criminosa da qual fazem parte os denunciados.
De acordo com o Procurador Wilson Rocha de Assis, o grupo usava a desinformação e controle político para tentar colocar a população da cidade contra os retireiros. “Esses setores têm afirmado que é um ato de desapropriação, que o poder público vai tomar as áreas e vai expulsar as pessoas que residem na região, o que não é verdade, especialmente considerando que é uma região que tem uma ocupação antiga. A boa fé dessas pessoas tem que ser contemplada na medida que a lei autorize”, afirmou.
Mesmo sendo mentira, a maioria do povo acreditou. Segundo Jossiney, esta campanha de desinformação enfraqueceu a luta pelo território. “Pregaram um terrorismo na cabeça das pessoas com informação falsa. Eu sou o único vereador que apoia a criação da RDS, os outros são declarados contra e até o prefeito se declara contra”, lamentou.

No dia 17 de agosto de 2015, uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em Cuiabá, debateu sobre as Portarias nº 10/2015 e nº 294/2014 da SPU. De acordo com o Procurador Wilson, este foi um momento de democratização do debate. Segundo ele, “o Ministério Público e a SPU foram muito acusados de não estarem ouvindo outros setores, especialmente o setor produtivo. Agora esse argumento não pode mais ser usado. O debate foi praticamente dominado pelo setor ruralista, que está muito bem representado na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso”.
Não podia ser diferente. A Audiência Pública foi realizada pela Comissão de Agropecuária, Desenvolvimento Florestal e Agrário e Regulamentação Fundiária, e contou com a presença de Sindicatos Rurais dos municípios afetados, prefeitos, vereadores e apenas um representante indígena e um retireiro. “O que a gente ouviu foi a oposição desses setores em garantir os direitos das comunidades tradicionais e dos povos indígenas”, disse o Procurador. “Apesar dessa oposição, a gente conseguiu explicar a legislação, que favorece os povos indígenas e as comunidades tradicionais. O Ministério Público e a SPU deram todos os esclarecimentos que foram solicitados”, afirmou Wilson.
A recomendação do Ministério Público é que se faça primeiro a regularização dos territórios dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. A prioridade dada aos povos indígenas e comunidades tradicionais não parte de um interesse ideológico. De acordo com o Procurador Wilson, “a lei que estabelece como se faz regularização fundiária na Amazônia Legal, a Constituição e os tratados internacionais deixam clara a necessidade de respeitar as comunidades tradicionais”. Ele ainda afirma: “eu não posso ser avesso à propriedade privada ou ao agronegócio, mas o que a gente defende é que seja observada essa ordem, primeiro a garantia dos territórios tradicionais e depois as propriedades privadas”.
Enquanto agem nas esferas de decisões políticas, os fazendeiros também intervêm na área reivindicada pelos retireiros. O procurador afirma que o Ministério Público tem recebido diversos relatos sobre novas cercas e atos de invasão de terras públicas. “Estamos tomando todas as providências para que esses atos sejam processados e punidos na forma da lei.”, garante.
Após anos de luta, Jossiney começa a perder as esperanças. “Já tem mais de dez anos que a gente vem esperando acontecer a RDS e nada. O poder de articulação dos fazendeiros é grande. Sempre o mais fraco é o que termina perdendo”, lamenta.
O medo também afeta a esperança. Após as ameaças e cenas de terror vividas, Jossiney teme pelo futuro. “Não é só aqui na região, em vários lugares quem lutou por uma causa acabou morrendo e só viu as coisas acontecendo depois da morte. Eu queria ver em vida”, desabafa. “A gente só tem uma vida. Quem vivencia uma cena de terror, mesmo depois de algum tempo, as imagens não se apagam da mente. A gente pode se acostumar, mas não quer mais vivenciar aquilo”, conclui.
A regularização fundiária é o caminho para construir a segurança jurídica na região e, consequentemente, a segurança das pessoas que lutam pelo direito legítimo ao território.

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