enviado por giba wataramy
‘CAMINHANDO PARA NÃO PARAR A HISTÓRIA’, O POVO MỹKY RESISTE
ÁS SUCESSIVAS VIOLÊNCIAS.
Por: Luciana Ferraz, Povo Mỹky e Equipe CIMI MT
Fotos: Wajakuxi Mỹky e
Luciana Ferraz
Caminhão com madeiras retiradas da área
reivindicada e desmatamento para soja e eucalipto.
O Povo Mỹky
habita a margem direita do rio Papagaio, a 53 km da cidade de Brasnorte.
Vivem numa terra demarcada e homologada de 47.094 ha , que abrange
áreas de Floresta Amazônica e Cerrado, sendo uma das poucas áreas remanescentes
de transição entre os dois biomas.
São falantes de
uma língua isolada, tendo sido contatados em 1971, quando eram vinte e três pessoas,
pela então Missão Anchieta. De lá para cá mantém um crescimento demográfico em ascensão.
Atualmente 70% da comunidade Mỹky é constituída por jovens e crianças, numa
população total em torno de 124 pessoas.
O povo Mỹky
mantêm suas práticas de cultivo tradicionais de grandes roças, comunitárias e
familiares, de milho, mandioca, batata, cará branco e roxo, amendoim, algodão,
cana e várias espécies de feijão. Também praticam o extrativismo sustentado da
castanha, caju do mato, tucum, pequi, buriti, e bacaba, entre outras frutas
silvestres. Caçam anta, queixada, caititu, primatas, tamanduá, veados, bem
como, pescam diversas espécies de peixes.
Mesmo realizando
expedições na porção de seu território que ficou fora da atual demarcação em
busca de castanha, tucum e demais pontos de coleta e caça não é mais possível
manter a tradição dos acampamentos, posto que, suas áreas necessárias à extração
desses recursos são atualmente fazendas – propriedades privadas – dificultando
a permanência do costume.
Na busca por manter
suas práticas tradicionais e sua cultura, o povo iniciou a luta para reaver a integralidade
de seu território.
Após longos anos
de reivindicação, e de iniciativas em conjunto com o Ministério Público Federal
em Mato Grosso o estudo do território Mỹky foi concluído em 2011. Como em todo
processo de demarcação, após concluído o estudo, foi publicada a declaração de
Terra Indígena e aberto o prazo de 90 dias para as contestações, em cumprimento
ao que definiu o § 8º do Decreto 1.775/96. A partir daí o processo de
demarcação foi judicializado, ou seja, entre decisões hora negativas hora
favoráveis aos indígenas e recursos judiciais dos fazendeiros, por um lado, e
da Funai por outro, vai sendo postergada a efetivação do direito constitucional
à terra tradicional.
Em
maio de 2012 o juiz federal, através de liminar, considerou nulos todos os
estudos realizados para a demarcação, atendendo a Associação de Produtores
Rurais de Brasnorte (APRUB). A Fundação
Nacional do Índio obteve em Brasília decisão favorável junto ao Tribunal
Regional Federal da 1ª Região para dar continuidade aos estudos de revisão e
demarcação da Terra Indígena. Para esta decisão também já se conseguiu outro
recurso favorável aos fazendeiros. E assim segue até não haver mais possibilidade
de recursos.
Enquanto
o direito a terra integral não se efetiva, os Mỹky sofrem diversas pressões dos
ruralistas de Brasnorte unidos aos ruralistas de toda a região: Juína, Tangará
da Serra, Campo Novo dos Parecis e Sapezal. Pressões que se expressam por
manifestações na cidade de Brasnorte, reuniões de fazendeiros e deputados
ruralistas travestidas de audiências públicas em Juína, campanha feita no comércio
e outros espaços com panfletos e, provavelmente ainda não por fim, através de
campanha discriminatória e criminosa em rádio, jornal impresso local e pela
internet.
Ao
passo que isso se dá fora, na terra reivindicada vai-se, progressivamente, ocorrendo
desmatamentos por supostos “planos de manejo”, destruindo o que se pode,
enquanto o processo não chega ao fim previsível que reconhecerá aos indígenas
seu direito ao bem roubado.
Para
evitar as distorções, ou a visão tendenciosa de alguns interessados, de que a
luta deste povo é de agora, recorremos ao histórico descrito por Andrea Jakubasko
(2011). Os destaques são nossos:
“No
século XIX, em meio ao crescente processo de ocupação do Centro-Oeste, motivado
pela extração comercial de poaia e seringa, passando pelas linhas telegráficas
e pela Marcha para o Oeste, os povos indígenas sofreram os impactos diretos
gerados pelas frentes pioneiras de expansão e, num efeito dominó, a disputa por
espaços, terras e recursos naturais deflagrou a intensificação dos conflitos
interétnicos. Durante a primeira metade do século XX, os Mỹky procederam a
diversos deslocamentos no interior desse território histórico, em função de
massacres por seringueiros, ataques de inimigos [...] e da proximidade dos
não-índios engajados na abertura de estradas e extração da seringa. Em fins da
década de 1950, o povo sofreu agudo processo de depopulação ocasionado pela
contração de doenças, chegando à beira da extinção, sobrevivendo apenas nove
(9) pessoas. Os Mỹky sempre resistiram ao contato, e após inúmeras tentativas
de aproximação da Missão Anchieta (MIA) durante a década de 60, o encontro com
23 indígenas ocorreu apenas em 1971. Todas as áreas visitadas, filmadas,
fotografadas e descritas pelas sucessivas expedições de contato, como
aldeias e áreas ocupadas pelos Mỹky, ficaram fora do traçado da demarcação,
inclusive a aldeia onde ocorreu o primeiro contato. Os Mỹky foram
empurrados na direção oposta a seu território histórico, arrancados do ambiente
que lhes dá sustentação física, histórica e cultural, localizado em regiões de
floresta, em meio a um contexto de aliciamento, repressão e ameaças, no litígio
com o Sr. Mauro Tenuta - fazendeiro que avançou sobre as terras indígenas com
seus tratores, expulsando os Mỹky da aldeia que ele destruiu em 1974, em troca
de arroz, açúcar, farinha, feijão, foices, machados, facões e roupas.[1]
Dada a interdição das áreas de litígio, após um lento processo
jurídico-burocrático, o acordo para demarcação ocorreu em 1978, como medida
que atendia aos interesses dos não-índios. Cabe enfatizar que os
trabalhos de demarcação da terra indígena foram custeados pelo Sr. Mauro Tenuta,
e que a atuação dos missionários da MIA e da FUNAI pautou-se pela intenção de
garantir, em caráter emergencial, as condições mínimas de sobrevivência do
grupo, completamente fragilizado, frente ao avanço desenfreado das frentes de
expansão no Mato Grosso. Desse modo, a definição dos atuais limites da
T.I.Menkü aconteceu ao arrepio da legislação vigente à época, (Decreto
76.999/76 e a Lei nº 6.001/73), em um processo
pautado pelo vício, dolo e esbulho renitente desconsiderando a totalidade das
áreas tradicionalmente ocupadas pelos Mỹky, uma vez que a demarcação física
baseou-se na área definida pelo Auto de Reintegração de Posse (1974), excluindo-se
até mesmo as aldeias avistadas pelas expedições de contato, bem como as regiões
do Jenipapo, do Castanhal, Tucunzal e nascentes do Rico e Águas Claras,
utilizadas intensamente pelos Mỹky.”
Sem
a necessidade de recorrer ao histórico matogrossense de distribuição de terras
pelos antigos governadores para seus parentes e amigos, só estes elementos provam
os vícios no primeiro processo demarcatório e a necessidade de corrigir este
crime para com esta comunidade já tão violentada.
Mais
recentemente, fatos mais que absurdos somam-se ás diversas formas de pressão e
esbulho efetivado por quem, definitivamente, se nega a reconhecer o direito dos
Mỹky, por um lado, e por outro busca extinguir o mais rápido possível os bens
naturais ainda presentes nesta porção rara da
biodiversidade brasileira.
No dia 12 de maio de 2013 um indígena Mỹky que estava
na sede do município de Brasnorte foi abordado e preso por três policiais. A
questionar o motivo de sua prisão recebeu a resposta de que estava sendo preso
“porque eu era índio e tava mexendo com terra”. O indígena não foi levado para
a delegacia, mas para as proximidades do rio do Sangue (aproximadamente 30 km
de Brasnorte), onde recebeu ameaças e foi agredido fisicamente. Segundo o
indígena, os policiais o colocaram na quina da casa abandonada e os três
policiais ficavam querendo saber se o mesmo era “índio dos cabeludos que queria
terra”. Os policias disseram ‘para que os índios que não trabalham querem terra’.
Disseram ainda que ele, o indígena, não tinha visto nada, mas se a terra sair ele
iria ver o que ia acontecer com ele. Posteriormente, os policiais foram embora,
o indígena esperou na referida casa abandonada, saiu andando pela estrada, rumo
à cidade de Brasnorte, aonde chegou ao amanhecer.
Um mês após
este estes fatos, Marcelo Pietsch, presidente da Associação dos Comerciantes de
Brasnorte, dono de uma olaria e que tem terras na área reivindicada pelo povo Mỹky,
foi à rádio local fazer uma "denúncia" que, na prática, se mostrou um
incentivo explicito para que a população local reaja contra os indígenas aderindo
a campanha contra esses povos.
A suposta denúncia
está na página do Facebook de Willian Braz Oliveira, sendo compartilhada por várias
pessoas. Entre os comentários há apelos à violência, à discriminação e ao desrespeito
aos direitos humanos. Este ataque aconteceu às vésperas da manifestação
organizada pela FAMATO, quando os fazendeiros de Brasnorte e de outras regiões
de Mato Grosso buscavam angariar adeptos ás pressões contra as demarcações dos
territórios indígenas e à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 215,
que tramita na Câmara dos Deputados.
Utilizando-se
de outras campanhas também de cunho racista e discriminador – uma delas que
teve por base falsas acusações de infanticídio contra indígenas e um vídeo
montagem, já desmentido, em que se visualizaria o suposto enterro de uma
criança indígena[2] - Pietsch
inflama a população contra os indígenas dizendo que durante festa na cidade um
indígena teria agredido uma criança cadeirante. Ainda vincula a suposta
agressão ao que chama ‘tradição cultural’ de infanticídio. Entre os argumentos
que usa, afirma:
“Em algumas comunidades, a mãe pode matar um
recém-nascido, caso o mesmo possua deficiências físicas, ou ainda esteja amamentando outro, ou se o sexo do bebê
não for o esperado. Para a maioria dos índios, o nascimento de gêmeos ou
crianças anômalas indica promiscuidade da mulher durante a gestação. Ela é
punida e os filhos, enterrados vivos. É importante ressaltar que não são apenas
recém-nascidas as vítimas de infanticídio. Há registros de crianças de 3, 4, 11
e até 15 anos mortos pelas mais diversas causas.
E já que falamos em “Tradição Cultural”,
podemos fazer uma comparação dessa tradição, com o que é vivido por esses
supostos nativos. Os mesmos nativos que matam crianças, por acreditarem nas
tradições, usam celulares, tem barco a motor, motocicletas, caminhões e
caminhonetes. Os mesmos nativos que cometem a atrocidade chamada infanticídio,
participa de manifestações clamando por mais terras. Esses nativos dos quais me
refiro, são os mesmos, que você e eu encontramos comprando e na maioria das
vezes roubando em lojas e supermercados, são os mesmos que dirigem nas vias
publicas sem o mínimo de noção de transito, são os mesmos que bebem em festas
de tradições do homem branco, com a total certeza de impunidade!”
Na página de
Oliveira ainda, o comentário de chamada é: nossos
índios matam crianças portadoras de necessidades especiais? Ao que segue
inúmeros comentários de seguidores que reverberam palavras de discriminação e
declarações como “são maus”, “parasitas”, “selvagem”.
Alem da
vinculação da entrevista no dia 11 de junho, a rádio Transamérica repercutiu
comentários em outros dias.
Em documento
encaminhado ao Ministério Público Federal, às organizações de Direitos Humanos,
Ministério das Comunicações, Funai e outros órgãos a comunidade Mỹky desmentiu
a suposta agressão “denunciada” pelo rádio e internet, sendo que indígenas de
outros povo conversaram com a família da criança cadeirante, que afirmou não
concordar com as declarações vinculadas por Marcelo Pietsch.
O incentivo a
violência contra os Mỹky segue, enquanto não agem os órgãos responsáveis pela
fiscalização e garantia de que, visto que está sob litígio, não se efetive
supostos planos de manejo ou novos desmatamentos para soja e eucalipto, como os
que estão em curso.
Os Mỹky,
resistentes, mas preocupados com os fatos absurdos que lhes atinge diretamente,
seguem questionando:
“Quando a nossa terra vai ser demarcada, homologada e
devolvida para o nosso povo? Nós queremos a nossa terra de volta, pois ela é
nossa e os fazendeiros a tomaram. Nós precisamos da terra para viver, pois
nascemos lá.
Nós
estamos preocupados com as árvores que eles estão tirando e também com os
moradores das árvores, os espíritos que estão morrendo ou fugindo para outro
local. Estas árvores são a Casa dos Espíritos que controlam a chuva, o tempo, o
vento, o raio. Eles ficam dentro dos troncos das árvores grandes, aí eles
choram ao amanhecer, porque as árvores estão morrendo. Então a gente fica
preocupado em não derrubar mais, porque as árvores controlam.
Os
espíritos da mata ficam bravos porque a casa deles vai ser destruída e cai.
Eles (espíritos) ficam bravos, pegam o espírito da gente e matam ou machucam a
gente com os galhos que caem em cima.
O Mumju'u (Mãe de
Chuva) é igual o tamanduá (na aparência): quando destrói a árvore, ele morre ou
vai embora, ai não chove mais e fica seco, por isso está mudando a chuva. Se
morrer tudo, vai secar a água e aí vem o sol muito quente, porque eles gostam
de viver assim na mata fechada. Assim o tempo fica seco e não pode por fogo,
porque queima tudo, por isso que tem que fazer aceiro. A árvore grande faz
sombra e umidade, quando a gente anda, segura o sol muito quente.
Os
pássaros e os animais, assim como o ser humano, dependem também da água e da
fruta da mata, por isso não pode fazer pulverização de veneno com secante na
nossa terra. Está matando as árvores e contaminando a água das nascentes que
correm para o rio.
Os animais que nós caçamos, porco, anta, cateto, paca
e cutia, estão comendo na lavoura de soja e se contaminando com o veneno, que depois
vai envenenar a gente, que come a carne da caça. Alguns animais estão em
extinção por causa do desmatamento e queimada que os brancos fazem na nossa
terra.”
Em seu mito de origem os Mỹky saíram de
dentro da pedra e caminham nesta vida rumo à ‘Grande Casa’. Vencendo a “dureza”
já em sua gênese, os mais velhos afirmam que não se pode parar de caminhar,
como reforçam em seus rituais, pois senão a história pára.
É assim, caminhando, que os Mỹky fazem e
refazem sua história, resistindo ás ameaças, ás efetivas violências e ensinando
que RESISTÊNCIA e RESILIÊNCIA, além de
gente, também é sinônimo de Mỹky.
[1] Tenuta enganou os Mỹky, que então haviam sido contatados há três
anos, dizendo que a Funai havia determinado que os indígenas saíssem da área. Após
isso destruiu roças, casas e espaços sagrados dos indígenas. Ainda em 1974 o juiz
federal Clóvis Melo reintegra a posse de uma porção do território indígena e condena
o fazendeiro a indenizar os danos causados ao povo Mỹky.
[2] Na página do Facebook de Oliveira é apresentado uma parte da capa
de um livro dedicado à acusações de infanticídio contra os povos indígenas. A
disposição na página é um forçoso apelo à vinculação com as falsas
denúncias.
Material
contrário à demarcação amplamente divulgado em comércios e pelas ruas e em
jornais de Brasnorte com erros propositais que ampliam a área reivindicada.
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