segunda-feira, 10 de junho de 2019

Educação e Direitos Humanos

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Educação e Direitos Humanos

Edição do mês
Educação e Direitos Humanos
(Foto: Liz Dorea)

Vivemos tempos sombrios. Sombrios e cruéis, tanto para a educação quanto para os direitos humanos. É preciso força moral, coragem e, sobretudo, estarmos juntos nas lutas que continuam e exigem de nós informação confiável, organização, objetividade e também, apesar de tudo, uma boa dose de esperança.
A realidade nacional, nos dois temas aqui escolhidos, é angustiante. Desde o governo do usurpador M.T., com a Emenda Constitucional do corte de gastos que atinge dramaticamente as políticas sociais e os grupos mais vulneráveis, até as propostas absurdas dos recentes ministros da Educação, tudo nos dá medo, raiva e tristeza. Podemos resumir o cenário: o Brasil não respeita sentenças condenatórias de legítimos órgãos internacionais referentes às violações de direitos humanos; o abandono das principais formas de participação popular através de Conselhos; deformação radical dos compromissos do Estado com o respeito aos direitos humanos, com o consequente aumento da violência; desprezo e abandono de órgãos atuantes na redução das desigualdades, com a desvalorização da diversidade e da inclusão; conservadorismo e reacionarismo ideológico explícitos no movimento “Escola sem Partido”, assim como na defesa das escolas militarizadas e da educação domiciliar; estímulo à delação de professores considerados “doutrinadores”; graves cortes no financiamento do ensino público, ignorando o Plano Nacional de Educação; propostas do neoliberalismo triunfante sobre a privatização das universidades públicas. É um horror.
Ciente desse horror, creio que vale a pena retomar a discussão e a prática de nossos projetos de Educação em Direitos Humanos, pois é a nossa maneira, como intelectuais e professores, de contribuir para a formação ética e cívica dos adolescentes e jovens (sobretudo nas periferias) que estão perplexos, desanimados e perdidos. Já temos em São Paulo certo acúmulo de experiências com EDH, sobretudo na gestão municipal com Fernando Haddad e com os projetos do Instituto Vladimir Herzog, do qual faço parte.
O que entendemos por Educação em Direitos Humanos? Trata-se, essencialmente, da criação de uma cultura de respeito à dignidade humana – de todos, e não apenas das minorias privilegiadas que se consideram “superiores” – através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da igualdade, da justiça, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a educação assim proposta é uma formação – isto é, mais do que a instrução, a qual é igualmente importante e obrigatória nas diferentes áreas do conhecimento. A formação dessa cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem daqueles valores essenciais – os quais assumem sentido na vida quando se transformam em práticas. Tratar educação como formação já é uma ideia radical, pois pela tradição a formação (que inclui a educação moral) sempre foi obrigação da família e das Igrejas. Hoje, justamente essa tradição tem voltado com força, embora nossa Constituição afirme que a educação é dever da família e da sociedade.
Algumas premissas se impõem. A EDH é de natureza permanente, continuada e global. É necessariamente compartilhada por todos, educadores (incluindo todos os funcionários da escola, da direção às merendeiras) e educandos, como sempre enfatizou nosso mestre Paulo Freire. Deve ser um projeto de toda a escola e a comunidade na qual está inserida. É uma formação ética, que visa atingir tanto a razão quanto a emoção, ou seja, conquistar corações e mentes. Não é uma disciplina, mas um tema transversal. É uma formação que valoriza a realidade dos alunos, de suas famílias, de suas dificuldades de aprendizado ou de relacionamento (preconceito, racismo, bullying, assédio físico e moral) e que deve lidar constantemente com os problemas através da escuta e do diálogo. Importa destacar que essa escuta e o diálogo são esforços que buscam conhecer e compreender, mesmo quando não se concorda ou se entende. É uma formação que valoriza costumes e tradições de uma determinada região, mas está voltada para a mudança, para a transformação dos(as) educandos(as) em sujeitos históricos, críticos e emancipados. Por emancipação, entende-se aqui a proposta educadora de ensinar a pensar, a argumentar, a fazer escolhas.
Junto a tais premissas, um problema bastante citado pelos responsáveis de cada projeto refere-se ao próprio conceito de direitos humanos, deformado por ignorância ou má-fé em nosso país. Sempre houve, mas hoje é ainda mais comum ouvirmos que “são direitos de bandidos” ou que só valem para “humanos direitos”. Daí a importância, como dizia Antonio Candido, de “esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias”.
O que são direitos humanos? São aqueles direitos comuns a todos os seres humanos, desde o nascimento, sem distinção alguma de nacionalidade, etnia, sexo e orientação sexual, nível socioeconômico e de instrução, opinião ou filiação política, limitações físicas ou mentais, ou qualquer julgamento moral. São, portanto, universais; e o Brasil é signatário de todas as Declarações, Pactos e Convenções internacionais. Direitos humanos são históricos, lista aberta a aperfeiçoamentos e acréscimos. Hoje, além do direito humano ao meio ambiente saudável, que tem mobilizado jovens ao redor do mundo, temos novos direitos para mulheres e a comunidade LGBT+ e cotas raciais, embora a herança maldita da escravidão (quase quatro séculos!) perpetue-se na discriminação e na morte violenta de jovens negros, na maioria das vezes pela ação policial abusiva (76% dos mortos pela polícia são negros). Mas o racismo é crime e deve ser punido. Direitos humanos são também interdependentes e irreversíveis: direitos civis e políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.
Uma questão relevante diz respeito à igualdade, como essência dos direitos humanos. Trata-se de igualdade em dignidade (ou seja, a vida digna com os direitos sociais junto às liberdades individuais). Igualdade não é homogeneidade, assim como não é o contrário da diferença. A desigualdade é cultural e economicamente construída, quando se estabelece uma hierarquia dos seres humanos, quem nasceu superior para mandar, e quem nasceu inferior para obedecer. Já a diferença é uma relação horizontal e expressa identidades que devem ser reconhecidas e respeitadas. Logo, o direito à igualdade e o direito à diferença são faces da mesma moeda. Uma diferença pode ser (e, geralmente, o é) culturalmente enriquecedora, enquanto a desigualdade pode ser um crime. No Brasil é o que ocorre em muitas situações, a começar pelo racismo e pelo machismo. É preciso entender que todo crescimento de direitos das classes tradicionalmente perseguidas e humilhadas produz, nos dominantes, uma reação contrária.
É importante também enfatizar que ser tolerante e ser solidário não são a mesma coisa. A simples aceitação do outro, do diferente, é pouco. A tolerância ativa significa que, concretamente, é reconhecida, respeitada e defendida a diferença do outro. Maria Rita Khel insiste que a solidariedade não investe contra o interesse individual. O bem-estar garantido pelos direitos humanos de todos é também favorável a cada um, pois é de nosso interesse viver em uma cidade que não nos envergonhe. Ao falar da megalópole São Paulo, cidade onde alguns são cidadãos e muitos são “sobras”, Maria Rita afirma: “12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias de vida de seus habitantes”. São essas histórias de vida que, nas escolas, os projetos de EDH devem buscar conhecer e entender.
Voltando à educação, a EDH deve estar associada ao projeto político-pedagógico de cada escola. É claro que tudo dependerá da gestão democrática. A Constituição vigente define que o ensino será ministrado com base em vários princípios, dentre os quais está a gestão democrática (art. 206, VI), o que se desdobra nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas dos Municípios. Logo, a gestão democrática escolar é uma exigência constitucional, desde 1988.
A democracia representativa está em crise no Brasil e no mundo. Cabe defendê-la como o regime político que melhor reconhece, garante e promove os direitos humanos. Está difícil entre nós. Mas não podemos desistir. Muitos se referem à EDH, a busca da igualdade e da justiça, como uma utopia. Que seja. Mas prefiro acompanhar o teólogo Leonardo Boff: “A paz e a democracia, por sua natureza, possuem forte densidade utópica. Quer dizer, são anseios que nunca vão se realizar plenamente na História. Nem por isso são destituídos de sentido. Os anseios, as utopias e os sonhos nos desinstalam, nos obrigam a caminhar e a buscar sempre novas formas de democracia e de paz. São como as estrelas. Não podemos alcançá-las, mas são elas que nos iluminam as noites e orientam os navegantes”.
Maria Victoria de Mesquita Benevides é doutora em Sociologia pela USP e professora titular da Faculdade de Educação da USP, autora de A cidadania ativa(Ática)

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