quinta-feira, 23 de maio de 2019

NOTA DE CONSIDERAÇÃO




NOTA DE CONSIDERAÇÃO


O dia 22 de maio de 2019 foi invadido com notícias por todas as partes do Brasil, sobre uma realidade específica de Mato Grosso, referente ao desfile de jovens no Shopping Pantanal sob o título “Adoção na Passarela”, realizado pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (AMPARA) e pela Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT), além de outras entidades envolvidas no desfile que tem sua segunda edição em 2019.

As notícias não pouparam fôlego em soltar o amargo fel contra as entidades, e de fato, visto assim segmentado de um processo maior, o desfile causou mal-estar generalizado. Alguns criticaram a exposição destas crianças e adolescentes, como se fossem itens de um mero comércio de gado. Uma minoria chegou ao absurdo de comparar com a pedofilia. Outros corresponderam aos mesmos processos de compra de escravos, com higienização do corpo a ser adquirido como mercadoria.

É esta noção de mercado que se faz substrato de nossa nota de consideração. O Brasil foi orientando com a noção de “ordem e progresso” e se estabeleceu acreditando que a geopolítica europeia era superior. Seguiu o modelo do desenvolvimento pautado em campeões, líderes e recentemente, o processo de “coaching” de vários negócios lucrativos que oferecem o inquestionável SUCESSO - pessoal ou profissional. A este processo de colonialidade, restaram valores intersubjetivos marcados por uma única verdade do lado do vencedor, com efeito prolongado porque foram ideários cunhados na práxis da colonização.

Um dos legados da colonialidade é a “Moda Internacional”, que expõe os corpos magros perfeitos, quase à beira da anorexia, que torna a passarela uma exposição do mercado de carpos, roupas e acessórios fashion. A colonialidade criou uma espécie de fetichismo da corporeidade, expressando-se sedutora numa beleza estética das dimensões monetárias que orientam a lógica do capital.

Alguns abaixo-assinados e notas de repúdio já foram publicados, com considerações importantes sobre o efeito da exposição de jovens numa passarela mercadológica. Haverá outra verdade? Do outro lado, com baixa audiência, alguns pais que adotaram suas crianças também expressaram seus sentimentos nas redes sociais. Não restam dúvidas que as entidades envolvidas queriam facilitar a adoção, e que são engajadas politicamente para beneficiar as crianças. Se os procedimentos de adoção fossem menos cristalizados e mais acessíveis, nenhum desfile se configuraria como tática de adoção. E se os processos de decolonialidade conseguissem ser visíveis, poderiam reparar no equívoco que representa um palco com exposição de jovens a serem adotados.

Há, contudo, outras rotas e itinerários possíveis de serem construídos aos pleitos de adoção, que considerem os afetos, a sociabilidade, a pedagogia do bem-querer, a arte de brincar e a construção de culturas que não tenham medo de enfrentar as diferenças, a rejeição, a depressão que aflige os jovens contemporâneos e os diversos abismos cada vez mais profundos das dimensões raciais, sociais, religiosas e orientações de gênero, entre outros contextos.

Sobremaneira, há outros meios de promover uma luta política de todos nós, que tente assegurar uma adoção menos mutilada e mais amorosa – menos meritocrática e mais inclusiva, fazendo com que a sociedade mato-grossense se engaje, e que sinta orgulho das crianças e dos exemplos cuidadosos de amparo.

É neste contexto que lançamos nossa nota de consideração, que não quer condenar as entidades que lutam processualmente a favor da adoção, generalizando apenas um ato pontual como juízo para banalizar todo esforço realizado por pessoas e entidades que buscam promover, incansavelmente, as adoções de crianças e jovens. Não obstante, é preciso prestar atenção em outros valores e princípios que irradiam nossas existências, identidades, culturas e devires. Vivenciamos um período de diversas violências, com discursos de ódio, armamento e dúvidas sobre as esperanças. Para combatê-las, os percursos de exposição corporal devem ser repensados sob o signo de direitos e valores endógenos mais dignos. Os direitos humanos e da Terra devem ser uma condição sine qua non à justiça socioambiental, e devem zelar pelo acolhimento das adoções, para que os processos sejam de excelência e ganhem sua legitimidade e respeito da sociedade global.

Cuiabá, 23 de maio de 2019.


Coletivamente, assinam esta nota as entidades abaixo:


1.       FÓRUM DE DIREITOS HUMANOS E DA TERRA – FDHT, MT
2.     Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP
3.     Associação de Pesquisa Xaraiés
4.     Central Única dos Trabalhadores – CUT, MT
5.     Centro Burnier Fé e Justiça - CBFJ
6.     Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennes – CDHDMB
7.      Centro de Direitos Humanos Dom Pedro Casaldáliga - CDHDPC
8.     Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade – CDHHT
9.     Centro de Pastoral para Migrantes – CPM
10.   Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB
11.    Estudantes do 3º. Ano da Pedagogia, vespertino - UFMT
12.   Fórum de Fluxos Migratórios – FFM, MT
13.   Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacia Hidrográfica – FONASC, CBH
14.   Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação, GPMSE-UFMT
15.   Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA, UFMT
16.   Grupo Semente
17.   Instituto Caracol – ICA
18.   Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST, MT
19.   Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – IGHD, UFMT
20.  Rede Internacional de Pesquisadores em Educação Ambiental e Justiça Climática - REAJA

21.   Rede Mato-grossense de Educação Ambiental – REMTEA

Nenhum comentário:

Postar um comentário