sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Se latifúndio não existe, por que tantas mortes no campo?

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Se latifúndio não existe, por que tantas mortes no campo?

João Zinclar

Em 2014, segundo dados parciais do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, foram registrados 34 assassinatos no campo até o momento; Entre as vítimas, pessoas de comunidades tradicionais, assentados, sem-terra, posseiros, pequenos proprietários e sindicalistas

06/01/2015
Por Cristiane Passos,
De Goiânia (GO)
2014 inverteu a lógica de violên­cia que vinha se mantendo nos últimos anos. Foram seis membros de comuni­dades tradicionais assassinados, con­forme dados preliminares da CPT. A lu­ta organizada desses povos e a atenção midiática que se voltou para suas pautas em todo o mundo pode ter freado a in­vestida do capital contra suas vidas. Em compensação, tal investida voltou-se para os assentados, pequenos proprie­tários, trabalhadores sem-terra, possei­ros e sindicalistas, que perderam 28 mi­litantes nesse ano.
Apenas no mês de julho foram 7 as­sassinatos em 4 estados, em somente 20 dias. No mês de agosto foram 4 em uma semana, sendo 3 assassinatos no estado do Mato Grosso. A violência do latifún­dio e do agronegócio contra os povos do campo continua a ameaçar a soberania dos territórios e a luta por direitos huma­nos. A diretoria e a coordenação executi­va nacional da CPT divulgaram Nota Pú­blica com as denúncias de assassinatos e repúdio à onda de violência que se man­tém no campo, intensificada nos meses de julho e agosto desse ano.
Segundo semestre com matança
No dia 13 de agosto, foi assassinada a tiros a ex-presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de União do Sul (STTR), em Mato Gros­so, Maria Lúcia do Nascimento, que morava no assentamento Nova Con­quista II. Tanto ela quanto outras famí­lias assentadas e dirigentes do STTR lo­cal já haviam sofrido ameaças do dono da fazenda, Gilberto Miranda, registra­das em Boletins de Ocorrência e em atas de denúncias feitas diretamente ao Ou­vidor Agrário Nacional, desembargador Gercino José da Silva Filho. As amea­ças foram testemunhadas, inclusive, por oficiais de justiça.
 
 
De acordo com a CPT, o poder público reluta em investigar os casos.
Foto: João Zinclair
Já no dia 16, o presidente da Associa­ção de Produtores Rurais Nova União (ASPRONU), Josias Paulino de Cas­tro, 54 anos, e sua esposa, Ireni da Silva Castro, 35 anos, foram assassinados, no Distrito de Guariba, Município de Col­niza (MT). Em 5 de agosto, Josias ha­via participado, em Cuiabá (MT), de au­diência com o ouvidor Agrário Nacio­nal, desembargador Gercino, e com vá­rias outras autoridades do estado de Mato Grosso. Josias denunciara políti­cos da região por extração ilegal de ma­deira, a Polícia Militar por irregularida­des e órgãos públicos por emissão irre­gular de títulos de terras, assim como a existência de “pistoleiros” na região.
Josias, segundo o site Pantanal, nes­se mesmo dia teria afirmado: “Estamos morrendo, somos ameaçados, o gover­no de Mato Grosso é conivente, a PM de Guariba protege eles, o governo federal é omisso, será que eu vou ter que ser as­sassinado para que vocês acreditem e tomem providências?”
No Pará, estado campeão em assassi­natos até o momento, com oito casos, a história se repete. Félix Leite, vice-presi­dente da Associação de Acampados Divi­no Pai Eterno, em São Félix do Xingu, foi assassinado a tiros quando retornava do trabalho, no dia 18 de julho. Ele já havia registrado boletim de ocorrência sobre as ameaças de morte que vinha sofren­do. Outras quatro lideranças da Associa­ção também estão ameaçadas de morte, e uma delas, Lourival Gonçalves, chegou a levar quatro tiros num atentado ocorrido no dia 16 de abril.
No dia 12 de agosto, no Sudeste do Pa­rá, Maria Paciência dos Santos, 59, foi atropelada por um caminhoneiro que avançou sobre os 1.500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Ter­ra (MST) que marchavam pela BR-155, chamando a atenção para o descaso com a Reforma Agrária. O local é próximo à curva do “S”, onde ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. O trân­sito estava liberado em uma faixa, mas foi bloqueado pelos manifestantes após o brutal assassinato de Maria, que mor­reu na hora.
Em Bom Jesus do Tocantins (PA), no dia 17 de setembro, Jair Cleber dos San­tos e Aguinaldo Ribeiro morreram após serem baleados, juntamente a Antônio Alves e Daniel, pelo gerente da fazen­da Gaúcha. Os trabalhadores sem-ter­ra integravam as 300 famílias que ocu­pam a fazenda desde 2009. Já haviam sido registrados 12 boletins de ocorrên­cia contra o gerente da fazenda devido a ameaças de morte que esse fazia con­tra as famílias.
Maranhão
O estado do Maranhão, até o momen­to, registrou cinco assassinatos. Em to­dos os casos a motivação foi a disputa por terra. Isso em um estado que vem contabilizando mortos na luta pela terra, e cujas lideranças estão sendo dizima­das nessa batalha. Foi o segundo estado com o maior número, até o momento, de mortes no campo, juntamente com o es­tado de Mato Grosso.
Em um dos casos, a vítima, após a investigação da polícia maranhense, virou ré. Conforme relató­rio da polícia, o líder camponês Raimun­do Rodrigues, conhecido como “Bre­chó”, assassinado em fevereiro desse ano, estaria envolvido em uma rixa en­tre famílias, o que teria motivado o seu assassinato. Contudo, testemunhas con­firmaram a motivação do assassinato de Brechó, bem como a denúncia de amea­ças de morte que este vinha sofrendo por causa da sua luta pela conquista da terra no município de Timbiras (MA).
De acordo com denúncias da CPT Ma­ranhão à época, a polícia sequer foi ao lo­cal ouvir as testemunhas do caso, inclu­sive as pessoas que estavam com ele no momento da emboscada. O que as auto­ridades fizeram, prontamente, foi assu­mir a tese de crime de “vingança moti­vada por uma rixa entre famílias que re­sidem no povoado Bondaça”.
A mesma posição foi assumida pelo delegado Rô­mulo Vasconcelos, que chegou a dizer a um agente da CPT Maranhão, que “o cri­me nada tem a ver com conflito por terra, trata-se de briga de família. A Comissão Pastoral da Terra é que quer transformar em conflito por terra”.
A delegada geral da polícia civil do Maranhão, Maria Cristina Resende, ha­via feito afirmações semelhantes, em maio de 2012, quando ao avaliar a situa­ção na comunidade de Brechó, em Tim­biras, disse que “não há disputas agrá­rias envolvidas. Trata-se de problemas pessoais entre vizinhos nos assenta­mentos, ou de acertos de contas do tráfi­co de drogas, em áreas indígenas”.
Con­forme denúncia da CPT Maranhão, inú­meras vezes as lideranças procuraram as autoridades do Sistema de Segurança Pública do estado do Maranhão para de­nunciar os atos de violência contra as fa­mílias. Há vários Boletins de Ocorrência registrados na Delegacia de Polícia Civil de Timbiras (MA). As denúncias foram completamente ignoradas pelas autori­dades do estado do Maranhão e também pelas federais. Em Nota Pública a Pasto­ral destacou que “Raimundo Rodrigues da Silva (Brechó) constou na lista dos camponeses ameaçados de morte, pu­blicada pela Comissão Pastoral da Ter­ra, em 2012. Sua morte é mais um caso de morte anunciada”.
Mato Grosso, assim como o Mara­nhão, tem cinco assassinatos nesse ano de 2014. Além dos três assassinatos no mês de agosto, já destacados nessa ma­téria, mais duas pessoas, novamen­te um casal de assentados, foram mor­tas, em janeiro, por não quererem ven­der seu lote no assentamento em que vi­viam. Maria do Carmo Moura e Gonçalo Araújo foram executados a tiros e golpes de marreta. O filho do casal, de 22 anos, conseguiu fugir, mas ainda foi atingi­do por um tiro no braço. 2014: menos ameaças, mais tentativas.
Assassinatos
Os dados parciais do Cedoc Dom To­más Balduino nos mostram, também, um aumento expressivo na quantidade de tentativas de assassinato. Em con­trapartida, as ameaças de morte se re­duziram abruptamente. Se em 2013 fo­ram 15 tentativas de assassinato, con­forme os dados finais registrados e pu­blicados no relatório Conflitos no Cam­po Brasil 2013, em 2014 foram 52 ten­tativas de assassinatos nos dados ain­da parciais, registrados pela CPT, entre os meses de janeiro e novembro.
A con­clusão a que podemos chegar com es­se número é que o poder privado, prin­cipal responsável pelos casos de vio­lência contra a ocupação e a posse nos conflitos por terra, não está mais fican­do somente nas ameaças. Está indo pa­ra as vias de fato. Nas 481 ocorrências de violência contra a ocupação e a pos­se por ora registradas pela CPT, 411 fo­ram causadas pelo poder privado. O ca­pital está cada vez mais armado contra os povos do campo.
A força da luta de todos esses povos, contudo, não se esvai junto ao sangue de seus lutadores e lutadoras. Os márti­res motivam ainda mais o dia a dia dos povos do campo, na luta contra a im­punidade, o saque das riquezas natu­rais, bem como das terras e dos territó­rios. Como dizia Dom Tomás Balduino, bispo fundador da CPT e que nos dei­xou no ano de 2014, “Direitos Huma­nos não se pedem de joelho, exigem-se de pé!”. De pé, portanto, a luta dos po­vos continua. (CP)
Cristiane Passos émestre em Antropolo­gia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Cultura e Meios de Co­municação, pela Pontifícia Universidade Cató­lica de São Paulo (PUC-SP). Graduada em Co­municação Social, habilitação Jornalismo, pela UFG. Assessora de Comunicação da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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