domingo, 31 de agosto de 2014

Marina Silva é uma cara nova para a direita, diz Boaventura de Sousa Santos

saraiva
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Marina Silva é uma cara nova para a direita, diz Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento", o segundo em coautoria com a filósofa Marilena Chaui.

Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em entrevista à Folha
Fábio Braga/Folhapress
Folha - "Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos" é um título provocador. Sugere que o senhor acredita em Deus. E sugere que Deus poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?

Boaventura de Sousa Santos - De fato, não. O título é provocador. Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal [filósofo francês, 1623-1662]: diria que não temos meios racionais para poder afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que podemos é fazer uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como sociólogo, o que penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e que organiza sua vida ao redor disso.

Estamos num momento de fortes movimentos sociais em todo o mundo, com protestos, muita indignação, muita revolta. Alguns desses movimentos trazem no seu interior pessoas e grupos que seguem diferentes religiões. Ou que transformam a religião e a existência de Deus no motivo da ação ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de analisar. Esse fenômeno é extremamente ambíguo.

Quando surgiu a curiosidade?

Eu já tinha notado desde o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que havia movimentos sociais e organizações de diferentes partes do mundo com vivências religiosas, como a Teologia da Libertação e outros. Tinham uma dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era forte. Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da religiosidade é sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me fascinou, pois eu venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo tenho criticado, mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura tinha resolvido o problema através do que chamamos de secularismo, que é expulsar a religião do espaço público.

A presença da religião na política está crescendo?

A religião nunca saiu verdadeiramente da política. Temos sociedades que são laicas, mas cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por exemplo. E temos sociedades onde a convivência é mais laica do que outras. Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo e a secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que a religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na vida. Secularidade é aquela que permite que haja expressões [religiosas] no espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os cidadãos.

Mas é evidente, a gente sabe, a maneira com que a Europa resolveu a questão da separação da igreja e do Estado no século 17, depois de uma guerra enorme, nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter uma grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou com grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco disse recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos), acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são questões de interesse público.

O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior presença da religião no espaço público. No mundo árabe, no mundo indiano e também no mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões religiosas, cada vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. É uma presença pública muito mais forte, mas também um interesse em influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos parlamentos. É o que acontece hoje no Brasil.

No Brasil isso parece mais evidente a partir da eleição de 2010, quando o assunto chegou a dominar o debate eleitoral. Como tem sido no resto do mundo?

Na Europa não é tão forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas encontramos no próprio mundo islâmico, por outro lado, diferentes formas de afirmação religiosa que não são todas fundamentalistas. Algumas são bastante moderadas. Mas que também se recusam a pensar que sua dimensão espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.

Então o mundo hoje é mais diverso, e dessa diversidade, no meu entender, faz parte uma maneira muito diversa de ver a religião na vida pública. Isso está surgindo por todo lado, com formações bem distintas.

Algumas continuam na base da sociedade, como acontecia com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos nos últimos anos, no Brasil muito claramente, a influência [religiosa] na própria cúpula do Estado, na estrutura política do Estado. Isso é novo.

Era uma corrente que já vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma corrente muito conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos Estados Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele disse assim: "quando um dia não houver uma grande diferença entre democratas e republicanos, e se forem todos mais ou menos conservadores, podemos começar a jogar golfe tranquilamente, pois significa que cumprimos a nossa missão".

E a esquerda com isso? Seu livro é uma espécie de ajuste?

O pensamento crítico da esquerda, de uma sociologia crítica, sempre foi muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer análise que não seja simplesmente dizer que religião é o ópio do povo fica como suspeita.

Minha experiência no Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu mantivesse essa atitude pouco complexa, eu deixaria fora da minha análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a injustiça, a discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é alienante. Então escrevi esse livro também para fazer as contas comigo mesmo.

Qual é a sua conclusão?

Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.

O outro livro é sobre direitos humanos, que parece refluir na medida em que aumenta a influência religiosa. Alguns políticos têm como principal plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as relações entre as duas coisas?

É obviamente uma estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as correntes conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo. Houve, de fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua missão era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda uma outra corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do governo. Alguns deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o direito para os Estados e que, portanto, os direitos humanos não pertencem a esse direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde há conceitos muito hostis aos direitos humanos.

Então, de vários lados, estamos a assistir a um ataque aos direitos humanos. Esse é o tema do meu outro livro, escrito por um sociólogo que se considera um cidadão ativista dos direitos humanos.

Eu também faço uma crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica progressista: os direitos humanos são pouco. Então eles são criticados por mim por serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo pouco porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos humanos. São violados constantemente.

Agora, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, em que as narrativas socialistas caíram em desuso, pelo menos até agora, o que ficou de luta por uma sociedade melhor foram os direitos humanos. Se o socialismo estivesse na agenda política, eu tenho certeza que essa direita religiosa incidiria completamente contra o socialismo.
Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?

É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi um grande avanço.

Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo.

Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos coletivos. E os direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos, internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou, sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho], que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. E de boa fé! E que, hoje em dia, depois da declaração das Nações Unidas de 2007 sobre os direitos dos povos indígenas, firma-se na jurisprudência da Corte Internacional de Direitos Humanos que sempre que estejam em causa a própria sobrevivência de um povo, seja uma barragem, seja um projeto de mineração, a consulta deve ser vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho que dizer que tem havido retrocesso.

Não é só na demarcação de terras. Tem ainda a questão de saber se a concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá qualquer concessão.

Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha, está realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena camponês, que foi uma grande forma de transformação em toda América Latina.

O senhor considera o governo Dilma de direita?

Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente parar essa barragem.

Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São governos que eu considero progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da economia.

Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.
Qual o senhor citaria?

É certo que o Congresso é outra coisa. Mas eu fico espantado como é que é possível, estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff, como é possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no Congresso. É a semente que fica estéril, a suicida. Isso está suspenso. É ilegal para o mundo inteiro. É um escândalo, se aprovar. Ela foi suspensa no âmbito da convenção de biodiversidade exatamente porque coloca os camponeses nas mãos da Monsanto e das outras três ou quatro empresas que têm a patente. Isso é o fim da agricultura camponesa.

Em muitos países é a agricultura camponesa que alimenta as populações, pois a grande indústria produz soja e outros produtos de exportação. A diversidade da produção agrícola é feita por pequenas propriedades, a agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso significa arrogância dessas empresas transnacionais que têm acesso ao parlamento para ditar sua lei. E se você olhar bem, há uma aliança entre os religiosos evangélicos e os ruralistas. Então aqui há uma convergência de forças, uns que vêm da tradição ruralista, outros que vêm de uma tradição religiosa de direita, que se armou contra o comunismo e contra a revolução na América Latina.

Então não considero a presidente Dilma um governo de direita por sua capacidade de distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que não vem de agora.

Onde mais há problemas?

Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades antes desses protestos: zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu considero uma perda muito grave.

A ex-ministra Marina Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos que o senhor mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve para a esquerda?

Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva, estive em vários painéis com ela e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não porque a influência religiosa no país iria nitidamente continuar a desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do que um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um potencializador de uma interferência conservadora na sociedade.

Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.

Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Seria desacelerar ainda mais as políticas de redistribuição social que foram aquelas que, no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.

Não penso que a Marina Silva esteja muito sensível a isso tudo. Então eu penso que ela é uma cara nova para a direita. Não é uma cara para a esquerda, no meu entender.

Milhares de pessoas foram às ruas no Brasil para protestar por diversas causas. Tudo muito rápido e inédito. O senhor tem alguma reflexão sobre o que ocorreu no país?

Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no sul da Europa e na Grécia, o movimento "Yo soy 132", que é contra a fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e também os protestos no Brasil.

Considero que 2011-2013 é um daqueles momentos no mundo como nós tivemos em 1968, 1917, 1848. São momentos de movimentos revolucionários.

O que os caracterizam fundamentalmente hoje? São sinais de que, em muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não funcionam propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que não está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se manifestar.

Quem é esse cidadão?

É um cidadão diferente dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um erro do pensamento político foi pensar em cidadãos organizados que fazem essas revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas, normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, de partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na Europa, nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as instituições parecem não dar respostas às aspirações populares. Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do Brasil ou do occupy. São coisas distintas.

O movimento do Brasil tem uma genealogia, uma história, semelhante ao movimento dos indignados de Portugal, da Espanha e da Grécia. São jovens democracias onde houve uma expectativa de uma social-democracia, uma democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte. Havia uma expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa era a promessa. A democracia não é simplesmente mero voto e a representação política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos. Portanto nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína dessas aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda acreditar que eles têm esses direitos.

Os occupy já nem têm sequer essa ilusão, pois a democracia americana é cada vez mais restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a sério nos EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o país.

Uma crise da democracia?

Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que ela acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá amanhã sobre a taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos portugueses, as reivindicações. E quanto mais as pessoas vão para as ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a democracia está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida hoje contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhávamos para um estado de bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa frustração.

Compartilha com os outros movimentos essa espontaneidade. E o fato de não ser ideologicamente unitária, é o mais diverso possível. E com demandas contraditórias. E com uma característica também comum em todos eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o que não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma demanda, como foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma demanda que rapidamente pode ser superada por grandes demandas de superação do Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se imolou na Tunísia queria apenas que legalizassem o seu comércio de rua, e de repente aquilo era uma luta contra a ditadura.

O que todos estão a dizer? Estão a dizer que o mundo está escandalosamente desigual. Essa não é uma questão da pobreza. É que nos países, internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais ricos.

Essa descrição não coincide exatamente com o que ocorreu no Brasil. A distribuição de renda brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma das piores do mundo, mas melhorou.

Sim, está reduzindo [a desigualdade de renda], nunca tinha acontecido antes, isso é preciso reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha leitura, é que as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer - e por isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita - são as que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração é que essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer evoluir, quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos serviços públicos. E aí estancou.

O senhor disse que esses grupos sabem dizer o que não querem, mas não sabem dizer bem o que querem. No Brasil, entre as coisas que eles diziam não querer estavam os partidos políticos. Teve até hostilidade, violência. O senhor vê isso com preocupação?

Sim, evidentemente. Mas ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo. É aquilo que eu disse, que a democracia representativa liberal foi dominada e vencida pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do dinheiro nas eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É aquilo que a gente chama de patologia da representação: os representados não se sentem representados por seus representantes.

É um processo conhecido, pois há anos discute-se no Brasil a necessidade de se fazer uma reforma política, uma reforma do sistema eleitoral, do financiamento dos partidos. E todas essas reformas têm sido bloqueadas. Então essa negação não é propriamente a negação da democracia representativa. São duas ligações importantes: esta democracia participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que tem hoje nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades complexas não chega, ela precisa ser complementada pela democracia participativa.

Eu acho extraordinário que, no caso da primavera árabe - jovens de vários países que não tiveram democracia propriamente - a grande bandeira é a democracia real. Portanto quando dizem que há luta contra os partidos, não é que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não têm nenhuma validade. É esta forma de democracia, a do poder do dinheiro, que está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos riscos para a sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos sobre isso, que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma reforma política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder, não podemos esquecer.

Mas nos protestos ninguém levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.

(risos) É por isso que eu digo: as pessoas não sabem o que querem, sabem o que não querem. Como é que se faz formulação política? Para sair daquilo que elas não querem, é preciso uma reforma política. Obviamente. E é por isso que temos partidos.

Eu acho que cabe à classe política encontrar as soluções. Os jovens não têm que saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam. Como é que vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente robusto? Não têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer isso. A reforma política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu uma certa esperança quando falou nas cinco medidas que seriam tomadas e incluiu a reforma política, mas, infelizmente, os poderes conservadores do Congresso...

Foi nesse contexto que surgiram os grupos "black blocs", com a tática de causar danos materiais para fazer suas denúncias. Eles aparecem em tudo, da greve de professores à ação para libertar cachorros de um laboratório de pesquisa médica. Qual é a opinião do senhor sobre esses grupos?

Esses grupos nasceram nos anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia de que "temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de viver". Tiveram muita repercussão.

No momento em que começam os protestos contra a globalização, Seatle (EUA) é o marco, eles começaram a assumir duas características de sua tática: de um lado a ideia de violência contra propriedades símbolos do capitalismo, que pode ser um McDonald's, um banco; de outro lado, a defesa dos manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações, foram eles que, diante da violência policial, defenderam mais eficazmente os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no meu entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo "black bloc". Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser o enfrentamento entre os "black blocs" e da polícia.

Um terceiro fator que complica, principalmente a partir do ano 2000, isso está documentado, é que a polícia infiltra o "black bloc" para depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários países. E este é o contexto em que nós estamos.

Mas como entender o "black bloc"?

Não são grupos de extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo, temos que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim, queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender, para fazer pressão pacífica sobre os Estados.

Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.

Ora bem, se é esse o objetivo, o "black bloc" é uma força contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem ao final "não vamos". Penso, portanto, que o "black bloc" deve analisar em que contexto nós estamos.

O ex-presidente Lula fez uma crítica direta ao uso das máscaras. Disse que participou de muita manifestação de rua, mas que nunca usou máscara porque não tinha vergonha do que fazia.

Eu acho que é uma posição legítima, mas não sei se é a única resposta que se pode dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo disso é o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de professores no México, teve a presença dos "black blocs" com as máscaras negras. E chegou ao ponto também em que o governo está para promulgar uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi a reação? Os homossexuais começaram a usar máscaras pink. Foram para os protestos com máscaras cor-de-rosa, máscara homossexual. Então a polícia vai prender? Eles não praticam nenhuma violência, usam máscara agora para afirmar a diversidade sexual.

Isso é para ver como a coisa é complicada. Criou-se uma solidariedade entre os homossexuais e o "black bloc". Então, por vezes, as autoridades se excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma. Penso que a forma é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa. Obviamente é uma discussão muito difícil, mas é uma discussão que é preciso ter.

Boaventura de Souza Santos, sociólogo português, doutor pela Universidade de Yale (EUA), professor da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EUA). Livro recente "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" (Cortez Editora)
Ricardo Mendonça
No fAlha

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Ibama libera usina no Rio Teles Pires

ihu
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534651-ibama-libera-usina-no-rio-teles-pires


Ibama libera usina no Rio Teles Pires

A hidrelétrica de São Manoel, usina de 700 megawatts de potência prevista para ser construída no Rio Teles Pires, na divisa Mato Grosso-Pará, obteve autorização para o início de suas obras. A licença de instalação da usina foi liberada na semana passada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama).
A reportagem é de André Borges, publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 23-08-2014.
Na autorização, o órgão ambiental condicionou o licenciamento à entrega de 37 programas ambientais que deverão ser desenvolvidos ao longo da etapa de construção da usina.
A hidrelétrica pertence ao consórcio Energia São Manoel, formado pelas empresas EDP Energias do Brasil e CWEIParticipações, além da estatal Furnas, controlada pela Eletrobrás. A usina deve gerar energia a partir de 2018, com capacidade para atender 2,5 milhões de pessoas.
Orçada em R$ 2,3 bilhões, a usina sempre esteve envolvida em uma série de polêmicas e questionamentos, por causa de seus impactos ambientais.
Supremo. No mês passado, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão do licenciamento ambiental da hidrelétrica. Na ação, Janot pediu a suspensão da decisão do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região. O TRF1 conseguiu derrubar uma liminar concedida ao Ministério Público Federal, que paralisava o processo. O caso ainda não foi julgado pelo STF.
Em dezembro de 2013, a usina foi a leilão depois de uma forte pressão exercida pelo governo sobre a Fundação Nacional do Índio (Funai), que via uma série de restrições no empreendimento.
Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pela obtenção da licença prévia da usina, tentava liberar o licenciamento da hidrelétrica há três anos, sem sucesso. Sem a autorização prévia, o projeto não podia ir a leilão.
Funai. Para demonstrar a inviabilidade do empreendimento, a Funai chegou a encaminhar um ofício ao Ibama no qual contabilizava 28 impactos sobre os povos indígenas - 27 eram negativos e apenas um classificado como adverso. Logo depois, porém, o parecer da Funai seria revisto pela própria instituição, abrindo espaço para o Ibama liberar a autorização. A rigor, o instituto ambiental não dependia de aprovação da Funai para emitir seu parecer favorável, mas preferiu aguardar o posicionamento da fundação para evitar novos conflitos.
Apesar da aprovação, até hoje o assunto causa mal-estar na Funai. O ponto de conflito é a distância que o reservatório da usina terá de aldeias da região.
represa de São Manoel tem previsão de inundar 64 quilômetros quadrados de área. A barragem, segundo a Funai, não atingiria diretamente as terras indígenas, mas chegaria a menos de 2 km do limite declarado da terra Caiabi, onde vivem cerca de mil índios.
Outro tema controverso diz respeito ao efeito cumulativo que as hidrelétricas terão na região. Além de São Manoel, o complexo do Rio Teles Pires abrigará outras três hidrelétricas em fase de construção - as usinas Teles Pires (1.820 MW),Colíder (300 MW) e Sinop (400 MW). Paralelamente, há ainda outros dois projetos em fase de estudos, Foz do Apiacás e Magessi.
Cascata de usinas. No requerimento que apresentou ao Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral, Rodrigo Janot, chama a atenção para a cascata de usinas que tomarão conta do Teles Pires e seus efeitos para a população local.
Procurado pela reportagem, o consórcio Energia São Manoel não se manifestou até o fechamento da reportagem. 

Indígenas Maraguá, do Amazonas, são ameaçados de morte

adital
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=82148

Indígenas Maraguá, do Amazonas, são ameaçados de morte

CIMI
Adital
O cacique Raimundo Glória Lopes, juntamente com Misael Seixas Reis e Everaldo Castro de Araújo, do povo Maraguá, denunciam que estão sendo ameaçados de morte por ribeirinhos e moradores de comunidades próximas de suas aldeias no rio Abacaxis, no município de Nova Olinda do Norte, Estado do Amazonas. Na tarde desta segunda-feira, 25 de agosto, eles compareceram à Fundação Nacional do Índio (Funai), à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal para denunciar a invasão de suas comunidades e as ameaças de morte.
Reprodução
Segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I, é tenso o clima na região do rio Abacaxis desde a última quinta-feira, 21, quando os indígenas começaram a abordar lanchas de turistas e adverti-los de que, por se tratar de território do povo Maraguá, eles não poderiam adentrar pelos rios e igarapés. Os indígenas, naquela ocasião, participavam de um curso de formação na comunidade Terra Preta e tiveram que se retirar do local para conversar com os donos das embarcações.
Everaldo Castro de Araújo e outros teriam dialogado com os pilotos de lanchas, que os atenderam e se retiraram do local. Outros, porém, agiram de forma agressiva e com ameaças de morte aos indígenas. "Tinha até um senhor que se apresentou como Amauri Guerreiro, dizendo ser juiz, exigindo a apresentação de uma portaria da demarcação da terra e insistindo que iria entrar”, relata Araújo. No Departamento de Pessoal do Tribunal de Justiça do Amazonas, os indígenas foram informados de que não consta nos quadros daquele órgão juiz de nome Amauri Guerreiro.
Há vários meses, os Maraguá vêm lutando contra a presença de pessoas não autorizadas em seus territórios. Muitos são turistas levados por empresas para a prática de pesca esportiva nos rios e lagos da terra dos indígenas, causando transtorno para as comunidades. Recentemente, eles denunciaram, publicamente, a ocorrência de ameaças de morte feitas por moradores das proximidades, supostamente envolvidos com o tráfico de drogas na região.

CIMI

Conselho Indigenista Missionário

Empresa russa denuncia campanha de ciberespionagem contra países latino-americanos

adital
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=82161

Empresa russa denuncia campanha de ciberespionagem contra países latino-americanos

Natasha Pitts
Adital
Uma ação de ciberespionagem pode estar em andamento neste momento, prejudicando os países da América Latina. A denúncia foi feita por Dmitry Bestuzhev, diretor da equipe de segurança e análises para a América Latina da empresa russa Kaspersky Lab durante o encerramento da "4ª Cúpula de Analistas de Segurança: A hiperconectividade e suas consequências para a privacidade e a segurança”, realizada recentemente em Cartagena, na Colômbia.

De acordo com Bestuzhev, a operação ilegal, batizada de "Machete” (facão), está em andamento desde 2010 e busca conseguir informação militar, diplomática e governamental. Até o momento, pelos menos 778 pessoas e entidades da Venezuela (46%), Equador (36%) e Colômbia (11%) teriam sido atingidas pelas operações de espionagem. Representações diplomáticas latino-americanas em países como Rússia, Bélgica, França, China e Espanha também teriam sido espionadas.
"Não podemos especular sobre as origens, mas sabemos que quem está por trás fala espanhol e é da América Latina. Foram roubadas centenas de gigabytes de informação classificada”, assegurou o diretor da Kaspersky. Bestuzhev acrescentou ainda que o interesse maior é por informação militar altamente classificada, como viagens, folha de pagamento, radares e tudo mais que esteja relacionado à segurança nacional de um governo.
Investigações da empresa russa apontaram que o plano "Machete” está em funcionamento desde 2010 e foi reestruturado em 2012, mas só foi descoberto em 2013, quando a Kaspersky Lab encontrou, no computador de um cliente, um general de um país latino-americano, mecanismos para a gravação de arquivos de áudio, arquivos cifrados e outros com linguagens de programação. Pelo tipo de informação roubada, os especialistas da empresa russa especulam que os cibercriminosos podem ter sido contratados por governos da própria região.
"Essa operação é capaz de interceptar teclados, gravar áudios com o microfone do computador, fazer capturas das imagens da tela, reportar geolocalização e roubar arquivos de um servidor remoto”, detalhou Bestuzhev, acrescentando que basta o computador ser infectado uma vez para começar a emitir informações.
Os computadores são infectados quando descarregam arquivos de Power Point, que os cibercriminosos criam segundo o perfil da vítima. Geralmente, são materiais relacionados a pornografia, política ou guerra. Uma vez com acesso ao computador, o atacante envia a informação roubada a várias páginas web em seu poder.
Durante a Cúpula, também foi informado sobre outras campanhas paralelas de roubo de informação. Os países com o maior número de usuários únicos atacados são Rússia (40%), Índia (8%), Vietnã (4%), Ucrânia (4%) e Reino Unido (3%). No entanto, há um incremento de ataques cibernéticos nos países da América Latina, sendo o Brasil o mais afetado da região.
Os ataques são promovidos por pessoas contratadas por governos ou empresas para roubarem propriedade intelectual ou informação de interesse, seja retirando-as de computadores, celulares ou tablets. Assim, os dados roubados são usados para ataques cibernéticos. Os participantes da Cúpula de Segurança alertaram sobre o cuidado que se deve ter com o conteúdo colocado diariamente nas redes sociais.
Com informações de Hispan TV e Agência Venezuelana de Notícias (AVN).

Natasha Pitts

Jornalista da Adital

A colheita do ódio

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http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed813_a_colheita_do_odio

ANOS DE CHUMBO

A colheita do ódio

Por Carlos Brickmann em 26/08/2014 na edição 813
 
Míriam Leitão, repórter e colunista de economia de O Globo, foi presa pela ditadura quando tinha 19 anos e estava grávida de seu primeiro filho (o marido também foi preso, levado para outro lugar, e um ficou sem qualquer informação sobre o outro). Foi espancada, torturada, mantida nua numa cela, o sangue empastando o cabelo; junto com ela, uma cobra, uma jiboia. Míriam tinha de ficar em silêncio, de se mexer o mínimo possível, para não atrair a atenção da cobra. E o pavor era constante: a jiboia mata apertando suas vítimas, quebrando seus ossos, engolindo-a inteira.
Corte: poucos dias depois da entrega à Comissão da Verdade, pelas Forças Armadas, de documento negando desvio de finalidade de seus imóveis na época da ditadura, Míriam Leitão entrevistou o ministro da Defesa, Celso Amorim, pela GloboNews. O ministro vacilou e defendeu o documento militar, dizendo que estava formalmente correto. Em outras palavras, diante de uma repórter que foi torturada e lhe narrou como tinha sido a tortura, aceitou a tese de que não houve desvio de função das instalações militares.
Numa belíssima reportagem do sempre excelente Luiz Cláudio Cunha, publicada nesteObservatório da Imprensa, Míriam Leitão contou sua história, completando aquilo que já havia sido dito na entrevista com Celso Amorim.
Agora entra a questão da imprensa da cultura do ódio. Durante anos, por ser de O Globo, por criticar a condução da política econômica pelo governo de Dilma Rousseff, militantes governistas se dedicaram a demonizá-la, insultá-la, trocar seu nome, insistir na bobagem de que suas críticas se deviam exclusivamente à vontade diabólica de torcer contra o Brasil, e criticar os leitores que, baseados na reputação de competência que Míriam Leitão veio construindo ao longo do tempo, confiam em suas opiniões.
Durante anos, também, esta mesma militância defendeu todos os ministros do atual governo, inclusive Celso Amorim, esquecendo até, convenientemente, que ocupou um cargo importante na época da ditadura militar, o de presidente da Embrafilme (da qual, faça-se justiça, foi afastado por ter permitido o financiamento a um filme crítico ao regime ditatorial, Pra Frente, Brasil, estrelado por Reginaldo Farias, Antônio Fagundes e Nathalia do Valle).
No debate entre uma vítima da ditadura – uma mulher grávida torturada, espancada, ameaçada pela presença permanente de uma imensa cobra na cela – e um defensor da atitude olímpica dos militares, que não se consideram responsáveis por nada que ocorreu de errado na época – muitos jornalistas adotaram a posição de avestruz: omitiram-se, simplesmente. Adorariam atacar os militares; mas como fazê-lo se o representante dos militares era ministro do governo petista, e pela segunda vez (antes, Celso Amorim tinha sido chanceler). Adorariam defender a moça torturada, mas como fazê-lo se passaram anos a atacá-la por motivos ideológicos, ou, pior ainda, por achar que o seu patrão era melhor que o dela? Pegou mal – tão mal quanto a feia posição militar de nem desculpar-se por torturas ocorridas na ditadura ou defender as torturas por algum motivo. Em certos casos, é preciso lembrar um dos livros da Bíblia cristã, a Revelação, ou Apocalipse (3:15-16): “Sei que você não é frio nem quente (...) Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca.” 

Comparação infeliz
Seguindo-se à entrevista de Míriam Leitão com o ministro Celso Amorim e à reportagem de Luiz Cláudio Cunha, o colunista Rodrigo Constantino publicou em seu blog, na Veja.com, um post criticando a jornalista, com o título: “Míriam Leitão fala da tortura que sofreu na ditadura e quer pedido de desculpas. Legítimo, mas e o seu pedido de desculpas?”
Em resumo, Constantino critica Míriam por apresentar-se como adversária da ditadura (o que era), mas defender uma ditadura comunista, pelo que deveria pedir desculpas. Mas a comparação era descabida: Míriam Leitão foi torturada de fato, o que é um crime, e a ideologia comunista que professava era uma ideia, e ter ideias não é crime.
Veja.com convenceu Rodrigo Constantino (pressionando-o ou não, não ficou claro) a retirar do ar seu texto, o que foi feito. E, na opinião deste colunista, retirá-lo do ar foi uma atitude correta: a discussão é livre, mas não se pode partir, na discussão, para a criminalização de ideias opostas.

Censura é isso
Um caso de censura, de fato, ocorreu no Rio Grande do Sul: irritado com pesquisa realizada pelo Instituto Methodus sobre a eleição gaúcha, Guilherme Gomes, assessor de imprensa do governador Tarso Genro (PT), tentou impedir a Rede Bandeirantes de divulgá-la. Gomes ameaçou criar “uma nova relação entre nós e a Band” – em outras palavras, menos diplomáticas, cortar os anúncios. A Bandeirantes divulgou a mensagem de Gomes, enviada pelo WhatsApp, juntamente com a pesquisa, que mostrava vantagem de 11 pontos percentuais da candidata Ana Amélia, do PP, sobre o governador Tarso Genro.
Gomes pediu desculpas “pelo mal entendido” e garantiu que não se opunha à divulgação da pesquisa, mas à escolha do Instituto Methodus, que a seu ver tem errado com frequência. Nas últimas pesquisas anteriores, o Ibope deu empate técnico entre Tarso e Ana Amélia; o Datafolha indicou vantagem de nove pontos para Ana Amélia; e o Methodus, onze.
Resposta da Bandeirantes ao assessor de Tarso Genro:
“O que espanta é que o governador Tarso Genro pensa que esse tipo de pressão, ou ameaça, funcione com o grupo Bandeirantes. Nunca funcionará. A Band vai continuar divulgando as pesquisa eleitorais dos institutos que escolher, segundo seus critérios reconhecidamente legítimos”.
O coordenador da campanha de Tarso Genro, Carlos Pestana, minimizou o episódio, que viu como manifestação pessoal do assessor de imprensa, e não do governador. E garantiu que o resultado do Instituto Methodus não reflete a realidade da situação eleitoral no Rio Grande do Sul.

Veja na TV
A Editora Abril acaba de lançar a TVeja, uma TV pela Internet dedicada à cobertura e análise política e econômica. Ainda é cedo para analisar a programação da TVeja, que apresentará seu forte time de comentaristas dos blogs da revista. Mas vale a pena prestar atenção em Joice Hasselman, jornalista paranaense, excelente entrevistadora – fala macio e faz perguntas duríssimas com voz suave, evitando o antijornalístico duelo com o entrevistado. Tem uma ótima história jornalística no Paraná, onde acabou sendo vetada por políticos dos mais diferentes partidos. Foi um tiro no pé: em TVeja, Joice ganha o público nacional.

O Globo investiga
Outra boa novidade é o novo projeto “Preto no Branco” de O Globo. O objetivo é conferir e analisar sem partidarismos as promessas de candidatos à Presidência da República e ao governo do Rio, atribuindo-lhes uma de sete classificações: Falso, É cedo para dizer, Insustentável, Verdadeiro, mas..., Verdadeiro, Contraditório, Exagerado. Endereço eletrônico: www.oglobo.globo.com/blogs/preto-no-branco/. É divertido: faz contas, confere custos. Em outros veículos há matérias tocando nesse tema, mas “Preto no Branco” faz isso organizadamente, com todos os principais candidatos e suas principais promessas de campanha.

Um exemplo
Anthony Garotinho, candidato (favorito) ao governo fluminense, pelo PR, disse que foi pioneiro na implantação da política de cotas, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Classificação do “Preto no Branco”: “Verdadeiro, mas...”
O decreto 3.708, que instituiu as cotas, foi assinado pelo governador Anthony Garotinho no final de 2001. Os primeiros alunos negros matriculados pelo sistema de cotas entraram na universidade em 2003. Mas o pioneirismo coube aos gaúchos: em julho de 2001, quatro meses antes do decreto de Garotinho, a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul criou o regime de cotas para alunos que comprovassem “hipossuficiência econômica”.

Getúlio, 60 anos
Em 24 de agosto de 1954, enfrentando uma série de crises – o chefe de sua guarda pessoal participando de um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, no qual foi morto um oficial da Aeronáutica, um inquérito policial-militar dotado de amplos poderes vasculhando seu Governo e seus amigos, a descoberta de vasta rede de corrupção (o próprio presidente da República disse que havia “um mar de lama” nos porões de seu palácio – o presidente Getúlio Vargas se matou com um tiro no peito. A maré virou: as manifestações contra Getúlio, que até as vésperas dominavam as ruas do Rio de Janeiro, se transformaram em gigantescas manifestações contra os inimigos de Getúlio.
A imprensa fez boas matérias sobre os eventos de 60 anos atrás; e há também excelentes livros, alguns deles essenciais para quem quiser estudar a história brasileira, à disposição nas livrarias (há também edições, a custo bem mais baixo, em e-books). Alguns livros: Getúlio, de Lira Neto, três volumes; Getúlioúltimos dias de um presidente, João Jardim; Brasil, de Getúlio a Castello, do brasilianista americano Thomas Skidmore; Vargas e a crise dos anos 50, de Angela de Castro Gomes; Getúlio Vargas, a Esfinge dos Pampas, de Richard Bourne; e Dossiê Getúlio Vargas, de Daniel Rodrigues Aurélio. Deve haver outros, mas estes já compõem um excelente painel da época (que, ao contrário do que se possa imaginar, não terminou com o suicídio de Getúlio: continuou em sucessivas crises, passou pelo 31 de março de 1964 e chega até hoje).

Tá faltando mais um
Há muitos e muitos anos, um grande jornal brasileiro só publicava fotos de negros na primeira página em dois casos: ou Pelé ou um dirigente africano. Um dia, a norma foi abruptamente rompida: Zé Keti, compositor de morro, autor entre outros dos monumentais A Voz do Morro Máscara Negra, foi a principal foto da primeira página. Quem violou a norma não escrita de tal maneira que os donos do jornal só souberam do fato com a edição nas ruas foi um grande jornalista, que morreu há poucos dias: Carlos Tavares.
Tavares era de primeiro time e sempre gostou de trabalhar com gente de primeiro time. Foram seus companheiros Samuel Wainer, Jorge de Miranda Jordão, Henrique Veltman, Luiz Ernesto Kawall, o jovem foca Merval Pereira; para dirigir a ótima revista Problemas Brasileiros, da Federação do Comércio de São Paulo, foi um dos que escolheram Isaac Jardanovski.
Cansado de redações, Tavares trocou o Rio por São Paulo, onde se dedicou à assessoria de políticos. Fez campanhas eleitorais, foi secretário de Estado; e, na Federação do Comércio, onde ficou muito tempo, foi um dos conselheiros mais próximos do presidente Abram Szajman. E – um de seus maiores feitos – participou de alguns dos grandes embates políticos do país sem perder a classe, mantendo os amigos de um lado e de outro, ignorando os insultos e se recusando a fazê-los. Um cavalheiro, enfim; uma pessoa elegante. Um cavalheiro a menos no jornalismo.

Como...
De um grande jornal impresso, comemorando os 60 anos da inauguração do Parque do Ibirapuera, em São Paulo:
** “O parque em números: 1.584 metros quadrados de área”
Pequeno demais: um campo de futebol tem umas quatro vezes essa metragem.
Corrigindo, poucos dias depois: “1.584 milhão de metros quadrados”.
Grande demais: um bilhão e meio de m² é mil vezes o tamanho de um gigantesco estaleiro em Pernambuco, que já exigiu uns US$ 4 bilhões de investimento.
Corrigindo a correção, alguns dias depois, agora com o tamanho certo: “1,584 milhão de metros quadrados”. Ufa!

...é...
De outro grande jornal impresso, de circulação nacional, discorrendo sobre o problema das contusões do atacante do Barcelona:
** “Neymar sofreu uma fratura na terceira vértebra cervical”.
Se tivesse sofrido uma fratura em qualquer das vértebras cervicais, Neymar estaria paralisado. O problema ocorreu com outra vértebra, que fica mais para baixo.

...mesmo?
Da internet, que nunca falha em falhar nas informações:
No título:
** “Noiva de George Clooney vai investigar crimes de guerra em Gaza”
No texto:
** “Noiva de George Clooney rejeita convite para investigar crimes de guerra em Gaza”.

Frases
>> Do músico e escritor Lobão, sobre a possibilidade de vitória de Marina Silva: “Teremos uma clorofilocracia evangélica!”
>> De um comentário de Maria Das Graças Piccolo no Facebook: “Pergunta que não quer calar: se Eduardo Campos disse que não vamos desistir do Brasil, por que o PSB decidiu lançar Marina como sua substituta?”
>> Do radialista João Alckmin: “A gente tinha e não sabia? Precisou morrer?”
>> Do jornalista Fred Navarro: “O desafio de Marina: equilibrar-se numa corda puxada por ambientalistas amadores de um lado e socialistas profissionais do outro.”
>> Do jornalista Fernando Albrecht: “...e se o William Bonner tivesse perguntado à Dilma os nomes dos seus 39 ministros?”
>> Do jornalista Palmério Dória, sobre a morte de Eduardo Campos e os imprevistos da campanha eleitoral, lembrando a Muda Brasil Tancredo Jazz Band: “A filosofia de Tancredo é que nos norteia: pra que fazer planos se depois acaba entrando areia.”
>> Do jornalista Cláudio Humberto: “Se alguém despertar do coma e sintonizar o guia eleitoral na TV, vai achar que Eduardo Campos está vivo e é candidato único a presidente.”
>> Do publicitário Marco Aurélio: “Vamos engolir o orgulho e aceitar que Tiririca é a cara do Brasil.”
>> Do advogado Décio Pedroso: “Tragédia em dois atos. Primeiro ato: Morre o Campos. Segundo ato: Marina é eleita e processa todas as vacas do país por destruírem o verde.”
>> Do jornalista Gabriel Meissner: “Um dos argumentos que li hoje contra a candidatura de Marina Silva é que ela é feia. E a pessoa que falou isso vota na Dilma.”

E eu com isso?
E chega de hard news. Nesta área frufru todo o noticiário é soft – tão soft que se acredita que dezenas de fotógrafos conseguiram, por coincidência, flagrar uma artista exatamente no momento em que o vento fez esvoaçar seu vestido, exatamente numa ocasião em que a jovem nada vestia por baixo. Acredita-se também que o dia a dia de pessoas famosas se resume a praias, festas, namoros, viagens, e que o maior aborrecimento que enfrentam é o atraso dos aviões. Ah, como a vida é bonita!
** “Sabrina Sato optou por um penteado estilo ‘Brigitte Bardot’, semipreso com volume no topo da cabeça e franja solta repartida ao meio”
** “Selena Gomez quase mostra demais em festa na França”
** “Bruna Marquezine posta foto com cabelo rosa”
** “Malia, filha de Barack Obama, vai ao Festival Lollapalooza”
** “Isabeli Fontana chora após pular de paraquedas”
** “Mariah Carey está separada há meses”
** “Viviane Araújo malha com macacão de oncinha”
** “Bradley Cooper e Suki Waterhouse: festa em Londres“
** “Sophie Charlotte e Daniel de Oliveira gravam novela na praia”
** “Gwyneth Paltrow aprova namoro do ex com Jennifer Lawrence”
** “Com boné e óculos, Danielle Winits deixa academia de boxe”
** “Solteira, Geisy Arruda abraça boneco em academia: ‘O nível da carência’”
** “Jeremy Piven está namorando modelo britânica”
** “De shortinho, Laura Neiva passeia pela orla carioca”
** “Brooklyn Beckham prestigia première de sua queridinha, Chloe Moretz”
** “Irmã de Neymar pega o metrô em Londres”
** “Juliana Paes corta cabelo e lança campanha em prol do câncer”
** “Chay Suede e Klebber Toledo sujam os pés contra o câncer”

O grande título
Os meios de comunicação tiveram em mãos uma notícia de alto impacto: o desastre que matou Eduardo Campos e seus companheiros de voo. E, nos dias seguintes, transformaram a notícia de impacto numa coisa chatíssima. De repente, descobriu-se que Eduardo Campos só não tinha sido canonizado em vida por alguma falha burocrática. A coisa chegou a tal ponto que um jornal impresso de grande circulação, num título inesquecível, atribuiu à viúva Renata uma condição atribuída apenas às sacerdotisas (e fora da igreja católica, à qual pertence, pois entre os católicos sacerdotisas não há):
** “Renata Campos celebra missa em casa”
Renata Campos cedeu a casa para a missa. Mas quem a celebrou foi o padre.
Temos um título, nesta semana, que deve servir de exemplo na aula sobre o que é o óbvio:
** “Dívida da Santa Casa de SP cresce após novo empréstimo”
E o grande título:
** “Cabeleireira é sepultada (...) após ser morta pelo ex-marido (...)”
Ao menos escapou de ser enterrada viva.
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação