sexta-feira, 13 de junho de 2014

Copa, Fifa e mercantilização do futebol

carta maior
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Colunista
12/06/2014 - Copyleft 
Jaciara Itaim

Copa, Fifa e mercantilização do futebol

Oxalá que as trapalhadas e os escândalos da Copa abram espaço para um necessário redesenho do modelo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.




Pensando bem, imagino que um evento com a amplitude como essa Copa do Mundo de futebol teria todos os ingredientes para propiciar uma ampla discussão a respeito dessa modalidade esportiva em nossa terra. Seria o período adequado para que aspectos essenciais da questão do esporte viessem à tona. Afinal, todos acreditamos que ainda somos o país do futebol.

No entanto, parece que as coisas tomaram outro rumo, um pouco diverso. A natureza emocional do momento, o impacto provocado pela expectativa de ver a camiseta verde-amarela disputando as partidas em nossas cidades e a partidarização do debate em ano eleitoral são alguns dos muitos fatores que terminaram por confundir as cartas. Com isso, corre-se o risco de perder outra excelente oportunidade para que o Brasil passe a se enxergar por meio de outras lentes.

Desde junho do ano passado, temos assistido a um movimento crescente de insatisfação política generalizada pelas ruas e por todas as partes do território. E assim, amplos setores dos movimentos sociais começaram a questionar a própria realização da Copa do Mundo, em especial a partir das condições impostas e dos critérios absurdos exigidos pela FIFA.  

Jornadas de junho: FIFA não deve ser prioridade

Pouco a pouco a população se deu conta da diferença de tratamento conferido às verbas orçamentárias. Ficou evidente que havia uma prioridade a ser concedida na alocação de recursos públicos para as obras vinculadas ao evento. Essa prática na condução das políticas públicas entrava em contradição com o discurso oficial, segundo o qual as verbas eram sempre inexistentes para as áreas sociais mais sensíveis. Seja no custeio de estádios que pertencem à própria administração pública, seja na concessão de empréstimos e outras benesses aos clubes e empresas quando se trata de campos privatizados.

As jornadas de junho do ano passado apenas catalisaram um sentimento generalizado de descontentamento com o “tudo que está aí” e que não havia, até então, sido bem compreendido nem canalizado pelos partidos e pelas entidades mais tradicionais do movimento estudantil e do movimento sindical. É bem verdade que essa onda surgia também nas praças espanholas, nas ruas da Grécia, na frente de Wall Street, nos movimentos der alguns países do Oriente Médio, entre tantos outros. As novidades quanto a forma e o conteúdo das mobilizações ultrapassavam os limites da fronteiras tupiniquins.

Talvez inclusive por esse grau de imaturidade e inexperiência com a história dos movimentos políticos, também por aqui eles parecem ter se deixado caminhar por palavras de ordem um pouco ineficientes do ponto de vista da estratégia de ampliação das próprias mobilizações. É o caso típico do “Não vai ter Copa!” ou das exigências de políticas públicas com o “padrão FIFA!”.

Todos sabíamos que a Copa da FIFA iria ser realizada. Ela nos foi enfiada goela abaixo lá atrás e não havia como evitar o estrago anunciado. A verdadeira intenção do movimento não era inviabilizar a realização do evento, inclusive porque o Brasil já havia assumido compromissos perante o mundo para tal fato. Ao que tudo indica, o que se pretendia era tão somente aproveitar a onda e o momento para denunciar os absurdos cometidos em nome da urgência e das exigências colocadas pela multinacional monopolista do “football association”. A palavra de ordem que melhor sintetiza talvez seja “Copa prá quem?”.

Saúde, educação e a submissão à FIFA
    
No entanto, por outro lado, todos sabemos muito bem que os serviços públicos essenciais, como educação e saúde, continuam a ser tratados à míngua, ao passo que os orçamentos para estádios e obras vinculadas eram assegurados e pagos em valores muito superiores àquilo que havia sido previsto inicialmente. Para Copa, tudo. Para o resto, quase nada. 

Esse quadro confuso levou importantes líderes políticos a cometerem declarações comprometedoras, sempre que o tema vinha a debate. Foi o caso do ex Presidente Lula, falando da “babaquice” de se exigir as obras de mobilidade, pois o brasileiro estaria acostumado a andar a pé e mesmo de jumento. Ou então a fala do ex-jogador Ronaldo, lembrando que “Copa se faz com estádios e não com hospitais”. Ou ainda o Ministro Aldo Rebelo, justificando os atrasos das obras com o argumento de que “em 100% dos casamentos em que havia comparecido, a noiva chegava atrasada”. Uma loucura!

Quando o movimento dizia querer hospitais e escolas “padrão FIFA”, na verdade expressava o descontentamento com a diferença de tratamento oferecido pelo Estado brasileiro no oferecimento desses serviços. No fundo, era para dizer bem alto e em bom tom que queríamos educação e saúde públicas e de qualidade. E não muito mais! Isso porque a se orientar pelo “padrão” determinado pela corporação que manda e desmanda no futebol mundial, haveria risco de superfaturamento, alta probabilidade de corrupção e quase certeza de se cometer ilegalidades. 

Esse era o cenário da preparação do evento em nosso País, 64 anos depois da Copa que havíamos hospedado e perdido. A famosa derrota para o Uruguai, no Maracanã que havia sido então inaugurado. As atuais concessões previstas nas transações efetuadas com a direção da FIFA começaram a vir à luz do dia e o descontentamento só fez aumentar. A quantidade de estádios espalhados pelo País, a serem construídos de forma faraônica em cidades quase sem nenhuma tradição de clubes disputando futebol profissional. A submissão cultural, a ponto de os nomes dos locais dos jogos serem alterados para “arenas”. A prostração de joelhos perante exigências inaceitáveis, tais como o vácuo jurídico para o período do campeonato, quando várias leis brasileiras deixarão de ter validade apenas para satisfazer os interesses econômico-financeiros dos patrocinadores e demais empresas envolvidas.

Futebol e mercantilização: cifras bilionárias e lucros astronômicos

É bem verdade que a atual mercantilização do futebol não teve início apenas com a decisão do governo brasileiro em investir esforços para trazer a Copa para cá. No entanto, é sempre bom lembrar que muitos analistas menos comprometidos com a bancada da bola já alertavam para os riscos envolvidos na operação diplomático-esportiva empreendida por Lula em 2007. A mercantilização é um processo bem anterior e guarda relação mais profunda com a oportunidade oferecida pela atividade esportiva ao processo de acumulação de capital. A transformação do conjunto das atividades envolvidas com o futebol em mercadoria pode ser verificada pelas cifras bilionárias envolvendo os contratos dos jogadores, pelos valores monstruosos das transações de compra e venda dos mesmos, pelas receitas mastodônticas de propaganda, pelos preços dos ingressos para entrar nas “arenas” e tudo o mais. 

Uma das coisas que mais impressionam são os inimagináveis custos que o conjunto da população está arcando para bancar um evento tão efêmero como esse. Mal começou, já estará terminando. A Copa dura um mês e estádios de mais de um bilhão de reais foram construídos para receber menos de uma dezena de jogos. Mas o capitalismo tem uma lógica que implica a possibilidade de se acumular privadamente bilhões de dólares, sem que haja nenhum lastro na economia real em tais operações. Propaganda disputada a cada centímetro quadrado nos uniformes dos jogadores e nos espaços televisionados para todo o planeta. 

Nos estádios brasileiros existe a salutar proibição de venda de bebidas alcóolicas, de acordo com disposto no Estatuto do Torcedor? “No problem!” A gente muda a lei e permite que durante o certame, as “arenas” possam vender cerveja, mas apenas uma única marca – aquela da exclusividade do patrocinador. Por outro lado, nem mesmo os moradores e comerciantes dos arredores das “arenas” tampouco terão liberdade para ir e vir ou manter suas atividades normais. A FIFA exigiu e obteve a garantia de que a área envolvendo um perímetro de 2 km em torno dos estádios passará a ser submetida aos desígnios da turma de Havelange, Teixeira, Blatter, Valcke, Marin i tutti quanti. A ponto de haverem tentado até proibir a venda de acarajé em Salvador, por suposta concorrência do famoso grupo internacional de comida rápida e de péssima qualidade.

Seleção canarinho e propaganda: cadê a popularização do esporte?

Outro aspecto relevante diz respeito à própria seleção brasileira. Quando a equipe canarinho está em campo, trata-se do time portando a camiseta de toda a Nação. Ora, trata-se de símbolo pátrio, cuja imagem não poderia jamais ser explorada comercialmente. Mas a cada entrevista coletiva de autoridades governamentais, atrás do representante público está um painel com a miríade de empresas patrocinadoras do evento. Jogo da seleção é patrimônio da União e suas imagens televisivas deveriam ser colocadas livremente para serem difundidas por qualquer órgão de comunicação interessado.

Mas o que se verifica, assim como nas negociatas envolvendo as imagens dos jogos do campeonato brasileiro, é a negociação bilionária das redes de TV e as vendas disputadas de cada segundo para os potenciais patrocinadores interessados na divulgação das imagens de suas mercadorias.

Infelizmente, esse parece ser o maior legado da Copa. O reforço da mercantilização do futebol, sem nenhuma preocupação em avançar em uma alternativa aa esse modelo esportivo, que é uma mimetização da estrutura concentradora da nossa sociedade e também marcado pela desigualdade e pela competição autofágica. As novas gerações de crianças e adolescentes mais desfavorecidos continuarão na mesma toada da disputa acirrada por um lugar ao sol, sem nenhuma preocupação com a implementação de uma política pública de esportes nas escolas públicas. Oxalá que as trapalhadas e os escândalos da Copa abram espaço para um necessário redesenho do modelo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a ser realizado daqui a dois anos. Esporte não pode mais ser encarado como mercadoria. Deveria ser, pelo contrário, estimulado como instrumento de inclusão social e cidadania.


 (*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.

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