domingo, 19 de janeiro de 2014

Século XXI – Início com retrocessos


Século XXI – Início com retrocessos

~ Dalete Soares de Souza


Apesar de você amanhã há de ser outro dia!
Chico Buarque.

Ao longo dos meus quarenta e poucos anos, vivi e vivenciei diversos processos de luta, mobilização, articulação em torno de um mundo melhor.

Muito cedo percebi a necessidade de tomar partido pois os desafios eram maiores que meu próprio comodismo. Aos onze anos, já estava mais que envolvida na luta dos movimentos estudantis, logo passei ao movimento comunitário e sucessivamente ao de direitos humanos.

Foram longos os caminhos percorridos, a percepção de uma coordenada invisível para que a luta não tivesse êxito foi desvelada ainda na década de 80, num encontro nacional de estudantes secundaristas.

Ná época o ministro de educação era o  lembro que Jorge Konder Bomhauser a pauta seria a não mercantilização da educação, Educação Pública de Qualidade em todos os níveis. Foi uma mobilização estrondosa, a participação foi grande, o suficiente para que sentissem medo de que nossos gritos fizessem efeitos a nosso favor.

Portanto, a Globo já estava lá para descaracterizar e criminalizar o movimento, afirmava que os estudantes haviam se mobilizado para usar drogas em Brasília, que todos os ônibus tinham sido apanhados com quantidades significativas de drogas, foram dois dias de chamamento para o fantástico, fazendo com que diversos pais saíssem dos mais diversos estados em busca de filhos e filhas que estavam participando do encontro.

Assim começou o exercício da democracia, essa , mentira que repetimos todos os dias mas ainda nunca a vivemos de fato.

Nas escolas, os diretores e professores inviabilizaram todo processo de formação e articulação baseados pela matéria do fantastico. Nós do Movimento Estudantil, ficamos anos sofrendo discriminação por conta desta tramóia da Globo, do governo e seus mandantes.

A lógica seria colocar a educação nas prateleiras do mercado. E, assim foi. Assim o é. Educação = Mercadoria.

Da década de 80 até aqui, não tivemos muitos avanços, a ditadura mudou de tática, continua só que mais articulada, aparelhada e violenta. Antes tínhamos presos e presas políticos/as em alguns dos presídios brasileiros, hoje já não sabemos a conta de quantos são.

As mobilizações de junho e julho deram um sinal do quanto não fizemos processos de formação crítico político.

Agora, não śo quem luta e é contra o modelo que são as presas da ditadura moderna, mas todas as pessoas que podem se tornar potencial risco ao sistema. Então o povo das periferias, favelas, e guetos de todos os cantos são predominantemente condenados ao extermínio.

As formas como estes se dão, são variáveis, tiram-nos tudo, a melodia e a letra da música, o colorido das nossas casas, os jardins, a cultura, o campinho da gurizada bater bola, os direitos e tudo que se possa ser digno. E, nos incutem a cultura do consumismo, do medo, da culpa entra outras coisas nojentas como os fast Food da vida.

Nada é como era, tudo agora é possível para quem pode comprar, até os diplomas...

Nos recentes acontecimentos percebemos o quanto andamos passos largos para trás, na dimensão de anos luz de graves erros, que por conta de ausência de pauta política de enfrentamento ao governo deixamos de lado.

A história irá cobrar esta inércia dos movimentos, mas precisamos ter cuidado para que não matem o pouco que sobrou de nós. Pois é bem nítida a vontade dos opressores em exterminar de vez com os movimentos, por isso a repressão é tão presente que chega até assustar, a eficiência da polícia em reprimir a luta e meter medo aos que ainda não estão na luta.

Não é atoa que a mídia está em constantes ataques contra as lutas sociais, que os espaços que respaldavam os movimentos, venham sendo ocupados por fundamentalistas e ruralista desprezíveis.

Só que a resistência ainda é muito presente, muita gente não aceita esta lógica de crueldade e de maldição, não deve ser assim, precisamos mudar.

Quem vai se atrever mudar o que aprontaram e determinaram pra gente viver, seguir a risca?

Nós mesmas/os!

Dizer um basta, exige envolvimento, articulação e muito estudo e planejamento estes exigem tempo. Então, porque não juntarmos para esta tarefa desafiante? Ainda há muito que ser feito, não há tempo para esperar, precisa ser agora.

As tragédias estão anunciadas e o estado que deveria articular políticas visando a garantia dos direitos fundamentais a vida e dignidade elementos fundamentais que minimizam a violência são os primeiros a assumirem os camarotes para assistirem as barbáries assim como o papel de exterminador da juventude, negra, pobre e semi analfabetas.

O estado se furta de garantir os direitos, mas não se omite em cometer violência, nega a saúde de qualidade, a moradia, o lazer, a educação, mas investe muito em armas letais e não letais para conter os possíveis levantes.

O Judiciário faz vista grossa quando quem está lesando os direitos são os patrões mas, quando há uma revolta sobre tais práticas ela é eficiente na punição imediata.

Qual é mesmo o papel do Ministério Público? Não quero nem citar as Câmaras de vereadores porque sabemos que poucos são os que ainda fazem algo pelo povo. Poderes corrompidos.

A única forma que ainda temos é lutar, organizar as massas e garantir o enfrentamento, tanto prático quanto teórico, ficar junto cuidar uns dos outros e das outras.

O episódio ocorrido em 29 de novembro de 2013 na mobilização contra a cobrança indevida da passagem do transporte coletivo em Várzea Grande deixou clara a intenção do estado em inviabilizar a luta, quando chegamos para o ato, algumas pessoas já nos alertavam que eles estavam armando para as pessoas que chamaram o ato, tinha todas as categorias policiais no local, a PM a Polícia Civil, Guarda Municipal, e sei lá mais quem...mas todas lá, em números maior que a da galera mobilizada, um aparato de guerra que ficou inerte, esperando a hora do bote, vários policiais a paisana fingindo de participante comum, quando adentramos no espaço do terminal para a ação que seria pedagógica com combinados anteriores, de repente os gritos vamos quebrar, vamos quebrar...a pah, poh, pah, já não havia como controlar, perdemos o domínio do ato e tudo estava perdido, quando percebemos que não havia saída saímos para ir embora, nisso fomos brutalmente abordados pela polícia dentre esta a mulher e outros homens que estavam desde a concentração como se fossem manifestante insatisfeitos incentivando inclusive o quebra quebra.

Levadas/os para delegacia como um troféu, a alegria estampadas no rosto dos praças, soldados...

As piadinhas o que uma senhora, cabeça branca quer com esta gurizada transviada, rebeldes?

E assim o foi, uma noite em claro sem dormir e com a certeza de que íamos para o presídio, tudo já estava programado, o delegado não ouviu nenhum dos manifestantes preso, deixou para as ultimas horas para começar a ouvir, já era sábado não tinha como correr atrás do dinheiro arbitrado para fiança, oito salários mínimos. De onde tirar este dinheiro, mesmo quem tinha guardado em banco não tinha como, já que os saques tem limites, e nos fins de semana reduzido. O que fazer? A pressão sobre as famílias a humilhação também era grande, um desespero total. Faltavam duas horas para habeas corpus e para conseguir sessenta e seis mil reais. Conseguiu-se um cheque de uma instituição sindical, mas o delegado exigiu dinheiro vivo, de onde? Quem teria esta quantidade em mãos? Não conseguindo o valor e nem o habes corpus fomos encaminhados para o presídio, Carumbé e Ana Maria do Couto Maia, a remoção dos manifestantes foi em sete viaturas, com direito a um espetáculo cinematográfico. As sirenes a velocidade e alegria dos policiais era de assustar, cheguei a pensar que eles estavam ganhando algum troféu em troca de nossa prisão, porque todos eles sabiam que não tínhamos quebrado nada, que tudo começou por eles mesmos mas, mesmo assim o ar de satisfação era muito grande, inexplicável.

Quando o CIOSP chegou, foram chamados para nos transportar eles chegaram com toda pompa, um dos policiais pegou um cinto e dizia que nós eu e a outra companheira, não iríamos apanhar, pois eles não batiam em mulher, mas que assistiríamos eles bater nos meninos...passava pela cela, passando a mão no cinto, caminhava indo e vindo dizendo, baderneiro tem que apanhar.

Para quem estava aflita para ir ao banheiro, sem ter dormido e se alimentado uma noite inteira, com sede e ainda com medo do ainda podia acontecer foi um dos momentos mais cruéis.

Ao chegarmos no Presídio, os/as agentes não acreditavam no que estava acontecendo, vocês vieram pra cá por conta de um ato, contra quem estava roubando o povo? Impossível, como eles tem coragem de jogar pessoas que estão lutando por seus direitos num lugar como este, lotado, insalubre e com outras pessoas que de fato cometeram crimes?

Houve uma mobilização nacional para arrecadar o dinheiro da fiança, o MNDH a RECID, outros sindicatos, e pessoas físicas também se articularam e garantiram o recurso.

No mesmo dia o site do MP que emite o boleto para o pagamento, estava fora do ar, não fora um acaso, mas de propósito mesmo, só no outro dia após as 16hs fora possível efetuar o pagamento que pós recurso no Tribunal de Justiça fora reduzido a um salário mínimo para cada pessoa.

Foram duas noites tenebrosas, não tinha muito a ser feito, mas eu sabia que não era em vão, que a luta por si só já é uma vitória. Tinha a certeza de quem estava lá fora eram companheiros e que lutariam acirradamente até que todas e todos fossemos libertos. Assim o foi, passamos uma noite no presídio, não dormimos nenhum pouco, talvez foi a noite mais longa de toda vida, lá no seguro tinham outras mulheres, por descumprirem as regras do presídio, disseram elas, uma delas queria saber o motivo de nossa prisão, tivemos que explicar muito, pois ela não sabiam o que era mobilização, manifestação uma estava há cinco anos e a outra, com três anos, uma delas sabendo do nosso desespero cantou umas músicas evangélica no intuito de nos acalmar. Mas tudo era tenso, o barulho das grades a conversa dos agentes, tudo novo. 

O medo de ficar muito tempo lá foi tomando conta e eu e companheira que estava comigo começamos a chorar, choramos por uma noite inteira. Ao amanhecer, a água foi ligada para o banho, num espaço de 15 minutos desligaram, fomos orientadas pelas demais a encher umas garrafas pet, que estavam na cela quando chegamos pois esta seria nossa água do dia, chegou o chá, um pão com manteiga distante, e nenhuma notícia, estávamos no fechado não tinha visita nenhuma, era domingo e de lá, ouvíamos o barulho de conversa das visitas que as demais receberam, muito barulho, logo silenciou, imagino que saíram para outros espaços. Chegou o almoço, perguntamos a hora e disseram que era 11hs, deixaram as marmitas, mas não havia fome, deixamos de lado caso desse vontade de comer mais tarde. Deitamos e ficamos olhando a janelinha pequena, pensando no que podia estar ocorrendo lá fora.

Neste instante, chega outra mulher para dividir a cela com a gente, ela chegou aflita, contou um pouco de sua história, da sua família e logo estávamos livremente falando sobre as lutas, poder popular, sobre o estado brasileiro, sobre sistema prisional, esta prestava muita atenção, nunca havia tido contato com tais assunto, ficou triste por seguir a lógica programada, disse que iria refletir para não cair mais nas garras do capitalismo, que queria ter além do corpo livre a cabeça.

Neste momento chega outra mulher, também para ficar no mesmo cubículo, lá só tinha espaço para duas mas já éramos quatro. E o diálogo continuou, ambas já se conheciam não era a primeira vez que ela tinham sido presas, dissemos lhes que para nós não importava os motivos as quais levaram a prisão, mas importava como lutar para que as pessoas não precisassem mais serem presas. Então falamos de classe social, das intencionalidades políticas e da necessidade de organizarmos. Já no fim da tarde, chegou um documento para assinarmos, eu e a companheira que fora presa comigo, logo chegaram algumas cartas de companheiras e companheiros, das minhas filhas. Ficamos felizes com os conteúdos, e então uma pontinha de esperança começou a surgir lá no fundo a certeza de que aquela seria a nossa ultima noite ali. As outras duas ficaram alegre com a gente e disseram que nunca viram tamanho carinho por parte dos que ficam de fora por quem está lá presa. Começamos a dialogar sobre os movimentos, as famílias das lutadoras e lutadores.

De repente a agente chega na grade e pergunta novamente sobre nosso nome, nos identificamos e ela disse vocês estão indo embora, há uma festa lá fora. A alegria não coube naquele espaço, nos abraçamos todas e despedimos das que ainda ficariam lá.

Saímos á passos largos, lá na entrada estava o oficial de justiça, assinamos o alvará de soltura e ganhamos rumo ao portão, lá fora, a minhas filhas meu companheiro e um tanto outros companheiro de luta.

Os advogados amigos que foram os principais heróis desta nossa história, tantos outros, ao abraça-los todas as energias foram recuperadas, resgatadas. O carinho e atenção de quem conhece a luta por justiça e dignidade é incomparável é sublime nos remete em dobro para cima.

Após todo afago e carinho, seguimos todas e todos para o presídio central para buscar os dez meninos, e a festa, a alegria continuou.

Dias atordoados seguiram, lembrança das injustiças, da farsa montada pelo estado, dos olhares e comportamento ameaçadores, tudo isso.

Mas, a certeza de que a luta não pode nem deve parar, a alegria de ver toda família até mesmo as que repudiavam a luta antes, agora, prontas para outras possíveis manifestação. O reconhecimento da sociedade, aplausos na rua, no onibus, em espaços que não era de se esperar, já que a mídia descriminalizou a cada pessoas individualmente, fizeram uma varredura nas nossas vidas particular, a intenção era nos tornar bandidas/os a qualquer custo.

Então, como disse Dom Pedro Casaldaliga a minha luta vale mais que minha vida...assim seguiremos pois preferimos morrer de pé que viver ajoelhadas. 

Chê
Até que todas/os sejamos livres!

Cuiabá MT, 13 de janeiro 2014.

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