sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Espanha, o rei e o comunista

carta maior
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A Espanha, o rei e o comunista

Quando escreveu sobre o rei Juan Carlos, o hispanista britânico Paul Preston foi pouco crítico ao sucessor e defensor do responsável pelo Holocausto Espanhol – uma expressão que eles mesmo usa sobre a Guerra Civil. Agora, com um livro sobre o comunista Santiago Carrillo, o problema é o oposto: só há sombras, não há luzes. Por Vicenç Navarro

Finalmente li o livro de Paul Preston sobre Santiago Carrillo. Antes de escrever minha opinião sobre o livro, sinto a necessidade de explicar minha relação com cada um deles. Não conheço pessoalmente Paul Preston. Conheço sua obra, que utilizei em ocasiões em minha atividade docente. Quem conheci foi Santiago Carrillo.

Comecemos por Paul Preston. Ele é, sem dúvida, o hispanista britânico que escreveu com maior detalhe o acontecido na Espanha durante a mal chamada Guerra Civil. Sua condição de historiador estrangeiro lhe deu acesso a fontes de informação vetadas a historiadores espanhóis. E essa condição de estrangeiro lhe deu também a liberdade e a segurança que os historiadores espanhóis não tiveram, e continuam não tendo. Tudo o que digo não desmerece o grande valor de seu trabalho. Mas é importante sublinhar e explicar por que os historiadores que estudaram com maior detalhe aquele conflito civil têm sido predominantemente estrangeiros. Ainda hoje, jovens historiadores na Espanha têm que ir com cuidado naquilo que analisam e em como o fazem, temerosos por futuro profissional. Não esqueçamos que ainda hoje, na Espanha, se levou aos tribunais um jornalista por descrever o partido fascista, a Falange, como corresponsável do genocídio contra o povo espanhol.

Uma vez dito isso, quero pois destacar que as forças democráticas devem a estes historiadores estrangeiros e muito especialmente a Paul Preston, um voto de agradecimento. Havendo esclarecido isso, acho que é justo também acrescentar alguns comentários sobre o trabalho de Paul Preston, com a esperança de que os historiadores espanhóis recheiem algumas páginas vazias daquela história contada e habilmente narrada por Preston. Na verdade, a historiografia de Preston é bastante tradicional, fixando-se nos grandes personagens e nos grandes eventos. Dir-me-ão que isso é comum na historiografia atual. Mas mesmo que isso seja comum não quer dizer que seja suficiente. A melhor história que li sobre a intervenção militar estadunidense na II Guerra Mundial foi a descrita pelo escritor estadunidense Studs Terkel, que narra a história daquele conflito do ponto de vista dos soldados que a realizaram e das pessoas comuns e rotineiras que a sofreram. São precisamente esses desconhecidos os que fazem a história. Nesse aspecto, aprendi mais do que foi a mal chamada Guerra Civil (e a ditadura que a seguiu) através da experiência contada por meus pais e familiares daquela contenda (todos eles vencidos naquela guerra e sofrendo represálias pela ditadura) do que com os livros de história. Seria de desejar que à história formal, enormemente valiosa, dos personagens, fosse acrescentada a história das pessoas comuns que a fazem. E daí a importância de que sejam espanhóis, baseados na história real, das diferentes nações e povos que a Espanha contém, os que escrevam também essa outra história. Fazê-lo acrescentaria o enorme valor ao estudar os agentes e seu contexto, que é o que falta a Preston em sua análise de Carrillo.

O que me leva à segunda observação sobre Preston: sua limitada sensibilidade na biografia para esse contexto, o que explica o que pode definir-se como seu oportunismo. Preston escreveu recentemente um livro (Juan Carlos, el Rey de un Pueblo) sobre o Monarca no qual idealizou a figura do Rei, apresentando uma das biografias mais positivas escritas sobre este personagem. É surpreendente que o próprio autor do livro ‘O Holocausto Espanhol’ seja tão positivo com o sucessor e defensor do responsável deste dito holocausto. Além disso, o livro tem não só dados errôneos, mas também silêncios significativos.
Mas meses mais tarde, Paul Preston escreveu um livro sobre Carrillo que é, da primeira à última página, a demonização desta figura comunista, apresentando-o como enormemente ambicioso e capaz de trair todos seus amigos a fim de alcançar o cargo de máximo poder. Livro esse que é a mera narrativa de “traições” a seus amigos e companheiros do Partido Comunista. O contraste entre a biografia do Rei e a de Carrillo não pode ser mais acentuado. Fica claro no livro sobre Carrillo que o autor o detesta, estereotipando a figura de um dirigente comunista que, tipicamente, não se deterá diante de nada para conseguir seu poder pessoal.

Para as gerações que perderam a Guerra e para nós que sofremos a repressão e a transição, nos custa aceitar essa dupla imagem que Preston apresenta sobre o Rei e sobre Santiago Carrillo. Parece óbvio que o Rei foi enormemente ambicioso, que traiu seus amigos e parentes, tudo com o objetivo de manter seu poder, havendo dirigido uma transição claramente inédita que nos levou a uma democracia muito incompleta, com escassíssima consciência social, com uma resistência ao reconhecimento da plurinacionalidade do Estado espanhol, e a um enorme subdesenvolvimento social, cultural e político. Por mera objetividade, Preston deveria ter sido muito mais crítico com a figura do Rei. E o mesmo em relação a Carrillo, ainda que ao contrário. Carrillo teve sombras, mas também luzes que não aparecem neste livro.

A demonização de Santiago Carrillo
Conheci Santiago Carrillo através de Manolo Azcárate, a pessoa encarregada de relações internacionais dentro do PCE, com o qual colaborei, entre outros eventos, no preparo à visita de Carrillo aos EUA, a primeira visita que um dirigente eurocomunista fez a Washington. Manolo Azcárate foi uma das pessoas que conheci na resistência antifranquista que me mais impressionou, por sua integridade, compromisso, honestidade, coragem e percepção quanto ao que a Espanha necessitava. E foi Manolo quem me pediu que ajudasse a organizar a visita de Santiago Carrillo aos EUA, o que fiz. Estando nos EUA ajudei tanto o Partido Comunista como o Socialista, durante e depois da clandestinidade. Foi a partir de então, da incumbência de Manolo, que conheci Santiago Carrillo, com quem estabeleci uma relação de amizade que ficou deteriorada quando critiquei a transição (escrita pela primeira vez em ‘Bienestar Insuficiente, Democracia Incompleta – Sobre lo que no se habla en nuestro país’), mostrando que distou muito de ser exemplar, o que desagradou profundamente Santiago Carrillo e seus colaboradores.

Santiago Carrillo não foi o demônio que Preston descreve. Preston o acusa inclusive de servilismo diante do poder, e de ser um oportunista ao extremo, carente de princípios. Não estou de acordo com isso, pelo menos na parte que eu vi e vivi. Estive presente na entrevista que teve com a direção do Departamento de Estado dos EUA, atuando, a pedido de Carrillo, como seu tradutor. E posso dar fé que, diante do Departamento de Estado, foi igualmente crítico com a política do governo federal que com a da União Soviética, sabendo de antemão que os funcionários do governo federal não esperavam nem desejavam uma crítica dele.

Estes e outros fatos que algum dia explicarei, não encaixam com a visão que Preston transmite. Carrillo tinha defeitos e graves, sendo sua falta de cultura democrática um deles. Mas, apesar de meus desacordos, Carrillo fez o que achava melhor para a classe trabalhadora espanhola, antepondo isso a todo o resto. Pode-se criticar sua estratégia na transição: eu o fiz. Mas ele e o partido que liderou fizeram muito, muito mais pela democracia que o Rei da Espanha, ao contrário do que Preston, em um refutável oportunismo, declarou.

Ver as lutas internas dentro da direção do Partido Comunista como mera luta pelo poder pessoal, sem analisar o contexto, é profundamente errôneo. Eu simpatizei com a postura de Manuel Azcárate na disputa que levou a ruptura. Mas não pode interpretar-se aquela luta como uma luta para conseguir mais poder ou para aferrar-se ao trono. Um tanto igual em sua luta com Jorge Semprun. Na verdade, a enorme decepção por Semprun como Ministro de Cultura (é extraordinária a falta de sensibilidade de Semprun, como Ministro, para a necessidade de recuperar a memória histórica – por mais livros que houvesse escrito antes) era previsível e explicaria em parte os choques que tiveram entre si.

Mas a história de Carrillo não pode ser a lista de “traições”. A história de Carrillo é, repito, com suas luzes e sombras, a história do Partido Comunista, que é muito mais interessante que a história que Preston preparou. Além disso, os atos pessoais de Carrillo devem entender-se dentro do contexto que o configurou. E se nesse contexto houvesse sido mais interessante analisar a relação de Carrillo com os militantes do Partido Comunista, que como ocorreu na maioria dos países sob ditaduras fascistas ou fascistoides, foram sempre os indivíduos com maior dedicação e compromisso na luta contra tais ditaduras. Esta dedicação, heroica na grande maioria de casos, lhes faz também vulneráveis a sua possível manipulação. E ainda que houve muito disso, também é verdade que para muitos militantes de PCE, Carrillo foi quem melhor articulou sua luta e seus compromissos. De tudo isso, que é o que tornaria sua biografia interessante, Preston não diz nada. Que lástima!

*Catedrático de Políticas Públicas, Universidade Pompeu Fabra e Professor de Public Policy em The Johns Hopkins University. Artigo na coluna “Domínio Público” no jornal PÚBLICO, 11 de julho de 2013

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